A primeira pessoa com ensino superior.
Parecia brincadeira, mas era verdade. Meu pai me falou isso no dia da minha missa de formatura e eu quis chorar.
Sou bisneta de uma escrava liberta, que casou com um homem branco; minha avó casou com um cassaco do BEC (1), meu pai é eletrotécnico e minha mãe só tem o ensino médio. Eu era a primeira pessoa da família com ensino superior. Depois disso, outros já entraram na faculdade. Primos, até mesmo tios voltaram a estudar.
Meu pai sabe como a educação mudou a vida dele e também sabe o que é ter vontade de entrar na universidade e não conseguir, porque na época era de fato inacessível, reservada mesmo para uma elite. Estamos falando da década de 1970.
Meu pai, depois de formado eletrotécnico, dedicou toda vida dele, 45 anos de trabalhos, à antiga Cepisa (2), onde se aposentou e tivemos uma vida inteiramente confortável graças ao curso que ele fez no antigo Cefet, hoje IFPI (3).
Foi através desse curso, que ele só pôde comprar os livros para estudar, depois que já estava formado e trabalhando, que ele conseguiu matricular a mim e meu irmão no Diocesano, onde terminamos o ensino médio. Lugar onde ele mesmo disse que jamais pensou em entrar, antigamente era colégio de gente rica. Meu pai era amigo do vigia da escola, pessoa que ele sempre fazia questão de cumprimentar quando passava a pé, saindo da Piçarra para ir à aula no Cefet, e ele dizia que nunca imaginou que os filhos dele fossem estudar naquele lugar.
Detalhe importante: na época, meu pai fazia tudo o que podia para conseguir um dinheirinho; ele vendia banana no Mercado da Piçarra, pegava o trem e ia pra Capitão de Campos fazer roça, limpava terreno dos outros...
A educação mudou não só a realidade do meu pai. Um rapaz negro, que morou numa casa de taipa nas antigas beiradas da Piçarra, como ele mesmo dizia. A educação mudou a minha vida e a do meu irmão. Nós dois ingressamos na Universidade Federal do Piauí – UFPI, no curso de Arquitetura e Urbanismo. Como disse certa vez uma professora, um curso para ricos, e a gente tava lá!
Meu pai também nunca tinha colocado os pés lá. “Comecei a andar na Universidade depois que vocês passaram no vestibular”, ele dizia. “Naquele tempo eu não vinha pra cá, porque eu ficava triste que não podia estudar aqui e era longe pra vir a pé”.
Graças ao “pouco” estudo dele, hoje a nossa vida é completamente diferente da realidade que ele teve na nossa idade. Eu sou arquiteta e meu irmão está perto de se formar.
Bom, depois de tudo isso que eu falei, você agora sabe que educação é importante. E uma coisa que desprestigia a minha inteligência é saber que muitas pessoas acham que o corte de verbas na educação não está ligado a questões ideológicas. E o pior, é ver o povo, numa insanidade terrível apoiando atrocidades contra a própria classe, julgando necessário. Nós brasileiro merecemos mais! E não vai vir desse governo que tá aí.
Eu acredito cegamente que a educação é a melhor forma de mudar vidas!
notas
1
Cassaco do BEC – antigos trabalhadores braçais do Batalhão de Engenharia e Construção do Exército, trabalhavam na construção das estradas de ferro.
2
Cepisa é a sigla de Centrais Elétricas do Piauí, hoje Eletrobrás Distribuição Piauí
3
Cefet é a sigla de Centro Federal de Educação Tecnológica, atual Instituto Federal do Piauí – IFPI.
sobre a autora
Camila de Sousa Ferreira, piauiense, é arquiteta e urbanista formada pela Universidade Federal do Piauí – UFPI, a primeira pessoa de sua família a ter ensino superior. Atualmente luta por um país democrático em todas as esferas.