Ao final dos anos 1980, pouco depois da precária (como se vê agora) superação da ditadura, o grupo de rock Titãs emplacava um de seus maiores sucessos.
Numa letra só aparentemente simples, o talento poético de Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Britto deixava claro que o relativo bem-estar econômico do chamado “milagre econômico” não bastava para uma sociedade que desejava voltar a respirar depois de tantos anos de chumbo.
Era o que significavam, para uma geração acostumada com censura, aqueles versos repetidos com ênfase e certa euforia militante:
a gente não quer só comida
a gente quer comida, diversão e arte
a gente não quer só comida
a gente quer saída
para qualquer parte (1).
Uma década e meia depois, um presidente recém-eleito dizia ao país que a diversão e a arte não seriam suficientes enquanto um brasileiro – qualquer brasileiro – não tivesse direito a três refeições por dia.
Mais uma década e meia e somos governados por um presidente que quer acabar com a arte; criminaliza a reflexão e a produção de conhecimento e propõe a quem pensa diferente, escolher entre ser eliminado ou ir para qualquer parte.
Que, num único dia, diz que quer dar filé mignon ao filho que sabe “fritar” hambúrguer; chama os nordestinos de “paraíba” e afirma que não há fome no Brasil. Ou, segundo a Embratur, no Brazil!
Qualquer um de nós, andando pela antiga capital do clima e futura ex-capital da tecnologia, pode ver com seus próprios olhos uma quantidade de moradores de rua e de pedintes nos semáforos que há muitos anos não estavam ali.
Em algum momento alguém precisará cantar – ou gritar – que não é possível se divertir nem há saída para qualquer parte quando o Brasil voltou a ter milhões de brasileiros no mapa da fome da ONU.
Não é preciso acreditar na ONU. Ou nesta coluna. Apenas baixar os vidros de seu carro.
nota
1
Verso da música “Comida”, letra de Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Britto, música inserida no álbum da banda Titãs “Jesus não Tem Dentes no País dos Banguelas”, de 1987.
sobre o autor
Carlos A. Ferreira Martins é professor titular do IAU USP São Carlos.