Tempos sombrios são, paradoxalmente, aqueles em que a dura realidade das coisas vem à luz.
No embate eleitoreiro com Jair Bolsonaro, João Dória aproveitava a pandemia para se apresentar como “defensor da ciência”. Agora cozinha em fogo alto seu projeto de asfixia da autonomia das universidades e da Fapesp.
No âmbito federal, o suposto czar da Economia, outrora conhecido como posto Ipiranga, se parece cada vez mais como aquele sujeito que existe em qualquer turma e que, por vaidade, ato falho ou pura falta de noção, diz em público a verdade que não poderia ser dita.
Foi o caso da chamada “reforma administrativa”, vendida à população – com a inestimável cumplicidade da mídia – como uma medida antiprivilégios.
Mesmo deixando claro que militares, políticos, servidores do legislativo e do judiciário ficariam fora da tal “reforma”, o discurso do fim dos privilégios como condição de equilíbrio das contas continuou sendo o mantra do governo e da grande mídia.
Eis que vem a público o profeta do estado enxuto para ensinar que os “altos salários” do funcionalismo são na verdade, muito baixos. Em suas palavras, reproduzidas pelo Globo: "Eu acho um absurdo os salários da alta administração brasileira, acho que são muito baixos. [...] Para preservar pessoas de qualidade no serviço público, como tenho visto aqui em Brasília".
Fica claro então que, para o governo, os salários da elite estamental do Estado são muito baixos e os dos professores do ensino básico e das enfermeiras são muito altos. Para qualquer analista isento isso já estava claro. Curioso foi ver o ministro admiti-lo, assim, na lata. Cinismo ou candura?
O evento mais recente do ex-czar pode ajudar a responder. Depois de precisar “esclarecer” que as ameaças de cartão vermelho do presidente “não eram para ele”, o ministro falava a repórteres sobre a criação de novos impostos e sobre a necessidade de uma “aterrisagem suave” do auxílio emergencial.
Em bom português, vai acabar o auxílio emergencial aos empobrecidos pela pandemia e vai ter mais imposto, sim senhor. Foi nessa hora que a imprensa registrou em vídeo o ministro da Secretaria de Governo, general Ramos e o novo líder do governo na Câmara, interrompendo a entrevista e puxando Guedes, que ainda tentava completar sua fala, para longe dos repórteres.
A imagem do posto Ipiranga foi referência a uma marcante campanha publicitária em que os postos dessa distribuidora eram caracterizados como o lugar em que tudo se informa e tudo se vende.
Aplicada a Paulo Guedes hoje, só vale a segunda parte. E ele parece não se dar conta de que para tudo poder vender, nada deve ser informado.
Mas ao menos ele reconheceu, ao final, que “agora tem articulação política”. Verdade. Do Exército e do Centrão.
sobre o autor
Carlos A. Ferreira Martins é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – IAU USP São Carlos.