Estimativas da ONU apontam que 70% da população mundial estará concentrada em centros urbanos em 2050. No Brasil, o movimento será intenso: 91% dos brasileiros habitarão cidades já em 2030. Tamanho adensamento criará novos problemas, agravará os existentes e irá gerar novas demandas, ampliando o quadro de incertezas. As soluções apontam para um uso cada vez mais intensivo da tecnologia. No caso do desenvolvimento das cidades, a tecnologia poderá ser empregada também de uma forma diferente da que se vê hoje, vinculando-se mais diretamente ao usuário. Ao invés de favorecer a uma gestão centralizada, poderá alavancar a inserção da coletividade na concepção de soluções para a gestão urbana e seu funcionamento.
Em um contexto global, isso já ocorre há tempos. Na época em que a Apple lançava o iPhone, a Nokia, em busca de um contraponto ao protagonismo da concorrente, investiu US$ 8,1 bilhões na aquisição da Navteq, então líder na produção de sensores de tráfego. Essa tecnologia permitia centralizar a gestão de dados sobre cidades. Paralelamente, surgia uma startup também voltada ao monitoramento urbano, mas que coletava dados via crowdsourcing combinando-os com os de GPS – produzidos pelos iPhones de seus usuários. Hoje, o app da empresa, o Waze, está em boa parte dos smarphones do planeta, assim como outros baseados também em informações fornecidas voluntariamente. Já a Nokia, entre 2007 e 2012, viu seu valor de mercado reduzido de US$ 140 bilhões para R$ 8,2 bilhões.
Percebe-se nas últimas décadas uma forte tendência em que os serviços urbanos contarão mais com a tecnologia colaborativa, em que o indivíduo é integrante ativo e consciente na gestão de cidades, fornecendo voluntariamente avaliações, sugestões e exigências. Esse é o conceito das Cidades Responsivas, que, apesar do uso intensivo de soluções tecnológicas, difere frontalmente das smartcities. Estas, como a Nokia ambicionou fazer no passado, valem-se de dados captados por sensores para o abastecimento de centrais de planejamento de onde partem as decisões. Já a responsividade existe a partir da participação e do engajamento dos indivíduos, e tem um funcionamento orgânico e em tempo real.
Num mundo onde pessoas produzem conteúdo a partir de seus hábitos e escolhas cotidianas, podendo compartilhar suas impressões e decisões de forma crescente a partir da tecnologia, o modelo usual vigente aponta para o esgotamento. Diversas questões irão se impor na gestão de serviços públicos e privados responsivos. Uma delas é como se poderá produzir respostas concretas na mesma velocidade em que surgem os dados. Outra é como garantir que a população urbana como um todo tenha a acesso a tecnologia para poder imputar dados. Para tanto, cidades que procuram ampliar seus níveis de responsividade valem-se de Big Data, IoT e Inteligência Artificial e farão o mesmo com o que surgir no futuro para viabilizar e aperfeiçoar uma sociedade baseada em dados, que busca sustentabilidade e bem-estar coletivo: a chamada Sociedade 5.0.
Esse movimento surge pontualmente de forma dispersa. Uma cidade se torna inteligente ou responsiva na medida em que as “respostas” se avolumam até configurarem um novo ambiente. Na maioria dos casos essas inovações partem de startups que apresentam soluções tecnológicas, ágeis e inusitadas, para solucionarem problemas e atenderem às expectativas de grandes contingentes de pessoas. No meio urbano, Uber e AirBnb usam o Big Data para identificar trajetos e imóveis, precificá-los e, com base nos dados fornecidos por usuários, apresentar uma oferta mais satisfatória que as disponíveis anteriormente. Por meio da interação com os usuários, promovem melhorias e correções transformando seus mercados.
Surge daí um conceito que, da iniciativa privada migra para a gestão pública, como o 5º Plano Básico de Ciência e Tecnologia do governo japonês, que define políticas de inovação voltadas à inserção de cidadãos em decisões administrativas. É esse crowdsourcing que diferencia as Cidades Responsivas das Smartcities. Nas últimas, sensores coletam dados para que Big Data e IA produzam um gerenciamento centralizado.
Embora traga avanços, gera preocupações e conflitos, por coletar as informações dos usuários à sua revelia. É o que possibilita multar pedestres que atravessam fora da faixa de segurança na China, assim como o monitoramento do deslocamento de pessoas feito pelo governo em São Paulo. Por meio de smarphones, o grau de adesão ao isolamento social dos paulistas é avaliado – uma estratégia inteligente por objetivar o controle do espraiamento da pandemia, mas que impossibilita a transparência na utilização dos dados. Ao invés de terem seus trajetos monitorados por câmeras e sensores, indivíduos podem fornecer suas impressões e expor suas demandas, compartilhando experiências urbanas que vivenciam, gerando inputs fundamentais para a criação de soluções e sendo efetivamente conscientes de seu protagonismo.
Este é o principal conceito de responsividade. Como será o ambiente em que milhões de pessoas, a partir de diferentes lugares, atuarão desta forma ainda é uma realidade a ser descortinada. O certo é que a gênese virá das pessoas, e não dos algoritmos. São elas que, a partir de suas ações, irão gerar macro padrões para as dinâmicas e para o desenvolvimento urbano. Nesse sentido, investir na formação e no acesso ao desenvolvimento humano de todos os indivíduos, é ponto de partida para uma sociedade responsiva.
A formação para quem pretende trabalhar na geração de soluções para este ambiente é, necessariamente, horizontal. Não se compõe de poucas especialidades, mas de estudos que possibilitem um entendimento holístico das transformações presentes e que sejam também capazes de antecipar as que virão. Passa pela análise de soluções já existentes, que tiveram impacto positivo e que, fundamentalmente, precisam misturar dois mundos: o prático e o acadêmico, estando em constante reflexão na ação. Esta mescla envolve ações multidisciplinares que abarcam a filosofia e a antropologia, a administração de empresas e a ciência de dados, a economia e os estudos urbanos. Gerar satisfação aos habitantes de um ambiente incerto e líquido vai muito além da capacidade de análise estatística. Trata-se de criar uma “reprogramação” do modus operandi no desenvolvimento das cidades. Utopia? Ficção? Até pode ser. Mas ao final, não seriam justamente elas capazes de identificar as novas realidades possíveis?
sobre os autores
Luciana Marson Fonseca e Lucas Rocha Obino Martins são, respectivamente, pesquisadora e coordenadora e idealizador e curador do MBA Cidades Responsivas, iniciativa de OSPA e Escola Livre de Arquitetura – ELA, em parceria com a IMED.