Há algumas semanas as redes sociais ficaram agitadas com a notícia da venda de uma obra de arte imaginária. Trata-se da escultura imaterial Io sono, do artista italiano Salvatore Garau (1953-), vendida em leilão por quase 15 mil euros. A escultura não existe fisicamente, mas apenas na imaginação do artista, ou seja, a pessoa que arrematou o lote levou para casa apenas um certificado de autenticidade. Imediatamente o assunto virou piada diante do absurdo da situação e levantou uma série de questionamentos vindos principalmente de fora do mundo da arte: como alguém se propõe a vender algo que não existe? Como alguém se propõe a comprar algo que não existe? E se isso virar moda? – além, é claro, do clássico isso é arte? Caso você também tenha se feito alguma dessas perguntas, calma. Parece ridículo mesmo, piada pronta, diriam alguns. Mas nada é tão simples assim e é preciso dedicar algum tempo para entender como chegamos ao ponto em que uma obra desse tipo se torna possível.
Antes de mais nada, é importante saber que ao analisar uma obra, é fundamental encará-la primeiramente sob o ponto de vista da história da arte, e isso acontece em duas frentes paralelas. A primeira visa compreender como a obra se posiciona diante da história, quais referências ela busca, sobre o que está assentada – é o que chamamos de lastro histórico. A segunda frente tenta enxergar de que maneiras aquela obra específica contribui para a história, ou seja, como ela adiciona informação e supera o que já foi feito anteriormente, ou até, como ela altera os rumos da história, caso tenha força suficiente para isso. Essa metodologia, apesar de bastante tradicional, tende a reforçar a visão eurocêntrica da arte. Mas como se trata de um artista italiano, fica fácil relevar essa questão por ora.
O fato é que é possível encontrar lastro histórico para Io sono. Ainda na segunda década do século 20, Marcel Duchamp (1887-1968) e seus companheiros do movimento dadá abriram caminho para que artistas reivindicassem para si a prerrogativa de decidir sobre o que é ou não arte. Com isso, o dadaísmo contesta a própria ideia de arte e a sua institucionalização (ou seja, todo o sistema da arte no qual as instituições – na época, os museus e as galerias – detinham o poder exclusivo de julgar a arte). O dadá faz uso do nonsense e da ironia para criticar esse modelo, e o mais conhecido símbolo disso é a obra Fountain (1917), de Marcel Duchamp, que nada mais é que um mictório posicionado de cabeça para baixo sobre um pedestal. Ao garantir que aquele se tratava de um objeto de arte e ao colocá-lo em exposição dentro de uma galeria, Duchamp dissocia definitivamente os conceitos de arte e beleza, entrega aos artistas o direito de decidir sobre o que é arte e ainda muda o que se entende por arte. A partir de agora o conceito da obra pode ser mais importante que o objeto artístico em si.
As implicações inauguradas por Duchamp e pelo dadá são sem dúvida maiores que as descritas aqui, mas não será necessário ir além para a construção deste argumento. O legado do movimento será resgatado em diversos momentos ao longo do século 20, notadamente após a Segunda Guerra. Seria possível citar as repercussões do dadaísmo na conceptual art, na pop art, na body art, no minimalismo, na land art e em diversas outras manifestações do pós-guerra. O dadaísmo abriu diversas possibilidades e cada um desses movimentos possui algum tipo de débito junto ao dadá. Assim como eles, Salvatore Garau também se posiciona na mira do dadaísmo, mas entre ambos existe a figura imponente da conceptual art dos anos 1960. Seria possível traçar uma linha ligando esses três pontos: dadá, arte conceitual e Salvatore Garau.
Como não se lembrar, por exemplo, do também italiano Piero Manzoni (1933-1963)? Nos anos 1960 ele produz latas com conteúdos no mínimo extravagantes, como “corda de comprimento infinito” ou “merda de artista”. Arte conceitual pura – lata e conteúdo não apresentam qualquer valor financeiro ou estético per se; a ideia, por outro lado, é portadora de força própria e questiona: o que é a arte? Afinal, qual seria a possibilidade de existir dentro daquela lata uma corda de comprimento infinito? Ou pior, como passar merda por arte?
É esse o cenário que torna a escultura imaterial de Garau uma obra possível – o artista não estava propondo uma obra imaginária, mas sim uma ideia. Ela poderia facilmente ter sido embarcada nesse histórico potente e contestador que a antecedeu, mas foi barrada por carregar consigo ao menos dois problemas. O primeiro é que a obra já chega com cheiro de mofo. Io sono parece ter nascido com 60 anos de idade. Ela te faz pensar: alguém já não fez isso antes? O segundo problema é que o próprio artista renega expressamente as referências históricas vindas do dadaísmo e da arte conceitual dos anos 1960 e tenta inaugurar outro discurso, misturando uma metafísica superficial com questões da física quântica, disciplina da qual ele demonstra ter conhecimento bastante raso. É provável que essa tentativa de um novo discurso tenha sido estratégica. Afinal, seria no mínimo hipócrita questionar os cânones e sistemas artísticos (como fizeram o dadaísmo e a arte conceitual) enquanto se faz uso de um dos maiores símbolos da institucionalização da arte na atualidade – o leilão de primeiro mercado.
Io sono possui, sim, lastro histórico. Entretanto, ela acrescenta pouco ou nada à história da arte – e isso acontece em grande medida por deliberação do próprio Salvatore Garau. Não à toa foi recebida com tanto ceticismo e tão pouco entusiasmo pelo mundo da arte – o alvoroço que ela causou fora, não encontrou correspondência em seu interior. É pouco provável, portanto, que a arte intangível vire moda, assim como também não viraram os mictórios – ainda que por razões diferentes.
sobre o autor
Ulisses Castro é arquiteto (UFMG/2006) e pós-graduando em Fotografia, Arte e Mediações no Instituto de Artes da Unicamp.