A quase dois meses da invasão russa na Ucrânia e faltando seis para a eleição mais importante do Brasil país desde a redemocratização (parcial e controlada) na década de 1980, as esquerdas e as forças democráticas estão mais fragmentadas e hesitantes do que seria prudente.
Talvez isso decorra de uma histórica dificuldade de pensar de maneira articulada o ambiente nacional e as enormes mutações que o planeta atravessa neste início do século 21.
O golpe no Brasil foi vendido – não só pela grande mídia – como uma questão interna, descolada da intensa reorganização da extrema direita internacional, que toma enorme impulso a partir da crise econômica de 2008-2009.
O mito da polarização como problema central a ser superado pela democracia brasileira é um bom exemplo do que poderíamos chamar de as diferentes estratégias do Príncipe.
O mercado e a grande mídia insistem numa oposição simétrica entre Bolsonaro e Lula e buscam desesperadamente a tal terceira via, que alguém já definiu adequadamente como um capitão que soubesse usar talheres. Parecem assim seguir os ensinamentos do velho florentino atualizados aos tempos das redes sociais e das empresas analitics.
Do lado das esquerdas, que não é possível declinar no singular, as confusões prevalecem. Há setores, nos arredores do cirismo mas não só, que continuam comprando e vendendo a versão de que foi a rejeição a Lula quem provocou Bolsonaro, numa insistência que irritaria até o aviador francês.
Se olhamos a situação internacional seria necessário perguntar quem foram os Lulas que provocaram os Erdogan (Turquia), os Orbán (Hungria), os Salvini (Itália) e tantos outros, para não falarmos do recém catapultado à celebridade Zelensky.
E mesmo em países em que uma esquerda moderada conseguiu se manter ou voltar ao poder, como Portugal ou Espanha, há a novidade de uma extrema direita (Chega e Vox, respectivamente) que desloca ou ameaça os partidos da direita tradicional.
As eleições da França serão decididas num segundo turno entre a direita tecnocrática de Macron (a terceira via que a elite brasileira adoraria) e a extrema-direita repaginada de Marina Le Pen, que certamente ganhará os votos de Zemmour, o recém surgido à direita da direita.
Como é óbvio que não foi Lula quem provocou a emergência de tantas forças de extrema direita espalhados pelo planeta, quem ou o quê terá sido?
As décadas de 1920 e 1930, no século passado, em que emergiram os fascismos clássicos na Itália e na Alemanha, mas com desdobramentos ao redor do planeta, mostram a explosiva combinação entre crise econômica, empobrecimento acelerado das classes médias e o jogo perigoso das elites econômicas que acreditaram poder controlar os movimentos totalitaristas assim que eles tivessem completado o serviço de eliminar organizações, partidos e movimentos de esquerda.
À crise estrutural de 2008-2009 somaram-se os desafios ao Império representados pela emergência econômica e tecnológica da China e pelo novo papel da Rússia como potência alimentar e energética. A polarização interna impede Biden de implementar seus planos de recuperação econômica com base na infraestrutura e na reorganização econômica interna. A guerra e a repressão às demandas sociais são a resposta clássica.
Como já se viu, diante das novas urgências do Império, Biden não teve nenhum problema em propor amizade a Maduro e, discretamente, já acenou a Bolsonaro que questões como a Amazonia ou as juras de amor a Trump são menores diante das circunstâncias.
Esse quadro aponta para continuidade da guerra que, deixemos de tapa-olhos, está longe de se dar apenas na Ucrânia. E também para a necessidade de juntar todas – e todas quer dizer todas – as forças políticas ainda interessadas em barrar o avanço dos fascismos, aí incluído o bolsonarista.
As últimas pesquisas indicam que o salto alto de quem estava brincando de calendário retroativo para a posse de Lula é tão perigoso quanto as dúvidas morais dos sommeliers de candidato a vice.
sobre o autor
Carlos Alberto Ferreira Martins é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.