Um dos grandes desafios da política mundial neste período de reorganização dos imperialismos é a curiosa polarização entre uma direita do século 21, antenada no controle dos novos meios de comunicação e nos modos de recepção da informação pelas massas, e uma esquerda que oscila entre os paradigmas e modus operandi do século 20, entre as saudades de Rousseau e a revalorização de Stalin.
No âmbito internacional, o que temos visto ao longo destes dois meses de guerra na Ucrânia, é a esquerda oscilando entre os extremos da reiteração abstrata do principio da não intervenção como critério inegociável e alguns casos, minoritários mas significativos, de olhar para Putin como o sucessor de Stalin.
Do outro lado, são mais interessantes as leituras de analistas profissionais, da direita política, vinculada ao trumpismo no caso dos estadunidenses ou não. Ex-militares ou agentes dos serviços de informação, inclusive europeus, têm trazido leituras “frias” do conflito para logo depois se queixar de perseguição e acusações de simpatia pelo “putinismo”.
Compreende-se que essas acusações causem perplexidade a quem, por dever de ofício, deve buscar a informação nua e crua antes do tratamento necessariamente ideológico que seus superiores políticos lhe darão.
Para voltar ao exemplo clássico, os serviços de inteligência ocidentais, Colin Powell à frente, sabiam perfeitamente que Saddam Hussein não tinha as armas de destruição massiva usadas como justificativa para a invasão que deixou mais de meio milhão de mortos e a quinta maior reserva petrolífera do planeta nas mãos das empresas estadunidenses.
Mas todos sabiam que a comunicação era parte tão decisiva da guerra quanto o poderio bélico, trazendo a um novo patamar o que os analistas militares chamam de guerra híbrida. Ou seja aquela que se dá tanto no âmbito material da destruição de corpos e riquezas quanto no que desde o Vietnã se convencionou chamar da conquista de corações e mentes.
Esse longo excurso era para dizer duas coisas. Primeiro, que não cabe mais pensar os embates internos de qualquer país separados de uma conjuntura internacional de intensas crises e dramáticos rearranjos. E, segundo, que o inegável crescimento planetário das posições de extrema direita passa pelo descrédito das formas tradicionais de organização partidária, mas isso não é apenas um desgaste natural senão parte de uma estratégia, cruel mas competente.
Se olharmos para o Brasil a partir desse quadro encontraremos a curiosa situação de uma esquerda (e também de setores democráticos) que acusam o bolsonarismo de tosco e burro sem perceber que ele vem demonstrando ao longo de três anos uma extraordinária capacidade de pautar o debate e levar adiante seu programa. É o curioso caso do adversário incompetente mas que, até agora, vem ganhando de 7 a 1.
Quando o bolsonarismo tinha que lidar com as gravações que escancaravam o balcão de negócios no MEC e a canalhice explícita dos generais da mal chamada justiça militar fazendo piadas sobre as torturas, ganhou de presente do STF a condenação do deputadinho e isso lhe permitiu retomar o comando da pauta com a “graça” concedida.
Como se viu nestes últimos dias a isca funcionou outra vez. Textos e textos discutindo se a prisão e depois o perdão são constitucionais ou não é tudo que o bolsonarismo queria. De boa parte da esquerda ao porta voz oficioso dos Marinho, todos pedem que Lula se manifeste a respeito.
Ele, que não é perfeito nem infalível, mas já apanhou muito na vida, sabe que o candidato que está a frente nas pesquisas não segue a pauta dos adversários.
O critico de arte e pensador marxista T. J. Clark escreveu no começo da década passada sobre a necessidade de uma esquerda capaz de descer do céu das utopias e “olhar o mundo”. Não sei se Lula é essa esquerda. Mas é o que temos de mais próximo.
Ao menos ele sabe que a grande maioria da população brasileira, aquela que tem que viver com dois salários mínimos ou menos, não quer discutir se a condenação e o perdão do deputadinho são constitucionais ou não. Quer saber se conseguirá comer algo amanhã ou na semana que vem. E, como diz a campanha, “quem tem fome tem pressa”.
Clipe "Quem tem fome, tem pressa"
sobre os autores
Carlos A. Ferreira Martins é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.