Renato Maia: Como é que você passou a ter essa formação?
Rodrigo Brotero Lefèvre: Eu passei a ter essa formação por sorte, inclusive. Em um certo sentido, eu me considero da tal elite, e tive condições muito favoráveis também pelo fato de eu ter sido contratado para ser professor assistente...
Quando eu fui contratado para ser professor da faculdade, em 1962, professor de história da arquitetura contemporânea, eu comecei a ter que explicar a arquitetura contemporânea para os meus alunos. Foi um esforço durante cinco ou seis anos, muito mais de explicar para mim o que era a arquitetura contemporânea, do que explicar para os alunos. Na medida em que eu conseguia entender, explicar para mim mesmo, eu conseguia dar aula.
Em grande parte, por ter que dar aula na faculdade, é que vim a ter essa visão crítica da formação que eu tinha recebido na escola.
Na própria escola eu não tive essa possibilidade. Os professores que eu tive na escola, e com os quais deu para aproveitar muito, foram três: Jon Maitrejean, Carlos Millan e Vilanova Artigas. Carlos Millan, que já morreu, o Maitrejean e o Artigas foram meus professores no 3º, 4º e 5º anos da faculdade.
Tenho a impressão de que para qualquer aluno da faculdade dessa época que você for perguntar, eles vão confirmar que esses professores foram fundamentais na nossa formação. Mas era insuficiente, porque no final nós trabalhávamos pouco com eles.
No final do governo de Juscelino Kubitscheck, a perspectiva colocada para nós como padrão, como modelo de arquiteto, era a do arquiteto com escritório próprio. A atuação dos arquitetos em empresas construtoras, em empresas produtoras de materiais de construção, era vista como uma atuação profissional menor. O batuta naquela época era o Carlos Millan, o Joaquim Guedes e alguns outros arquitetos, que tinham seus escritórios particulares e conseguiam fazer obras e publicá-las na revista Acrópole, ou em outras revistas. Isso era uma espécie de padrão para nós.
Essa visão correspondia a uma possibilidade que pareceu existir no período de Juscelino Kubitscheck, que era a possibilidade de formarmos os nossos escritorinhos particulares. Uma vez formados, e com certos mecanismos de relações estabelecidos, nós poderíamos tocar o resto da vida, mantendo esse escritório.
Mais tarde ficou claro para nós que isso era uma besteira, que não correspondia à verdade.
Num certo sentido isso influenciava toda a arquitetura da época. Uma arquitetura que vinha da tradição da arquitetura, que nós poderíamos chamar de pioneira no Brasil, das década de 30, 40 e 50, e que era a do arquiteto com seu escritório, fazendo obras, e sendo reconhecido, muito mais pelo caráter cultural que essas obras possuíam, pelo caráter de cultura brasileira, do que realmente por participarem das soluções dos problemas concretos do Brasil.
Nessa época você pega o Reidy, o Sérgio Bernardes, o próprio Lúcio Costa, o próprio Artigas, o próprio Oscar Niemeyer. Apesar da produção do projeto de Brasília e de alguns projetos no aterro do Flamengo no Rio de Janeiro, por exemplo, o fundamental das obras dos arquitetos naquela época eram edifícios isolados feitos em lotes fechados. Eram obras fechadas do ponto de vista urbano, do ponto de vista de grandes soluções de planejamento, e essas obras fechadas apareciam em si e por si mesmas.
Existem prédios, como por exemplo um predinho do Rino Levi, feito na Rua Martins Fontes, em que ele pretendeu dar uma grande contribuição social para o problema da empregada. Ele fez o prédio de apartamentos, centralizando no último andar todos os quartos de empregadas de todos os apartamentos e também colocando junto a estes quartos uma lavanderia central para todos os apartamentos. A grande contribuição para um problema social, que é de ordem muito mais geral, que envolve outras coisas que não só a arquitetura, acontecia através de soluções muito particulares e restritas, pensando que se estava adotando grandes soluções, mas que não eram.
A arquitetura brasileira da época de Juscelino teve o seu papel, que foi muito importante para a formação da cultura arquitetônica brasileira. Ainda era uma época de formação da cultura arquitetônica brasileira, como seqüência da arquitetura dos anos 30, 40 e 50, mas que vai dar com os "burros n’água" por dois processos: um processo que nós poderíamos chamar de político, que foi o processo que se instaurou depois de Juscelino até hoje; e o outro processo, digamos, na frente econômica. Isto é, as interferências do imperialismo, que se fizeram sentir cada vez mais, com maior intensidade, no início da década de 60.
Talvez o grande esforço de reconstrução da Europa e dos EUA, com a retomada do desenvolvimento depois da guerra, tivesse aí já realmente terminado e começasse uma interferência muito maior nos países do Terceiro Mundo.
Isso não se caracteriza por uma interferência direta ou brutal, mas por uma interferência que fazia com que os países do Terceiro Mundo, subdesenvolvidos, adotassem um processo de modernização determinado e fixado pelos países desenvolvidos.
O próprio Juscelino ao deixar entrar a indústria automobilística no Brasil, do jeito que entrou, não foi mais do que um processo de modernização. Na realidade, o desenvolvimento brasileiro não estava exigindo soluções tais como o automóvel, mas, como processo de modernização do Brasil nós entendemos porque o Juscelino, de repente, começa a fazer entrar a indústria automobilística no Brasil e permite que ela despeje em poucos anos a quantidade de automóveis que temos hoje.
Isso aparece em muitos outros casos.
No caso da comunicação, até mesmo com o pensamento produzido por países super-desenvolvidos, como a semiologia, por exemplo, que foi trazida, não como resposta às necessidades concretas que nós tínhamos, mas como adoção de certas formas culturais de outros países que por serem desenvolvidos, para nós, eram formas culturais importantes.
Nesse processo de modernização o que tem acontecido no Brasil parece que é uma deterioração do que existe de nosso, das nossas cidades, da nossa arquitetura, da nossa cultura, etc.
RM: Como você caracterizaria essa posição? Nacionalismo?
RBL: Não quero rotular nada. Só estou desenvolvendo algo que a meu ver tem sido um dos pontos cruciais do nosso problema.
É o caráter de modernização do nosso crescimento, e não o caráter de desenvolvimento do nosso crescimento. Em um certo sentido, o que está acontecendo é um inchamento com prejuízos para o que está em torno do inchamento. Então, a indústria automobilística quando aparece, faz inchar as cidades, faz inchar quem usa automóvel. Quem mora na periferia, sem ter nada a ver com isso, começa a ter prejuízos graves de deterioração. Andando na rua você percebe isso na nossa cidade. Em qualquer esquina você encontra esse tipo de coisa.
Você vai a uma cidade como Londres (vamos colocar logo a Inglaterra como país super-desenvolvido), e lá eles tem uma tradição de uso do automóvel que data de sessenta anos, enquanto nós temos uma tradição de uso do automóvel que data de quinze anos. Mas talvez hoje exista uma concentração maior de carros em São Paulo do que existe em Londres. Não que em São Paulo existam mais carros do que em Londres, mas existe maior concentração no centro da cidade, nas principais artérias de circulação, etc.
Não foi somente com a saída de Jânio Quadros que nós percebemos que existiam algumas coisas "furadas". De 1960 a 1964, ainda dentro daquela visão desenvolvimentista de Juscelino Kubitscheck, que era, antes de mais nada, uma modernização que nos levava a produzir esse tipo de casa que você está vendo aqui. Esse tipo de casa estava muito voltada para os problemas da industrialização da construção, antevendo, em um prazo de tempo muito curto, uma produção em massa de habitação, de edifícios, de equipamento urbano.
Nesta casa, por exemplo existe uma preocupação referente ao processo de racionalização da construção. Esta é uma casa toda modulada, tanto na horizontal como na vertical, tendo em vista um processo industrial de produção e um processo de montagem de caráter industrial, e não um processo artesanal como foi, como era, como tem sido, e como continua sendo, a construção.
Todas as peças desta casa são moduladas e apesar dela não ter sido feita através da indústria, estávamos fazendo uma experiência de laboratório para participar do processo de industrialização da construção.
Isso corresponde a 1964, ainda dentro daquela concepção do desenvolvimentismo de Juscelino.