Heitor Frúgoli Jr / Marcos Cartum: Fale um pouco sobre sua trajetória profissional e a sua história pessoal. O que o levou ao interesse pelas cidades brasileiras, por sua história e arquitetura?
Paul Meurs: Eu me formei em 1988 em Delft, na Holanda, na Universidade de Tecnologia, em Arquitetura e Restauro. Na época em que eu escolhia um assunto para minha tese de graduação, achei que seria muito interessante pegar um estudo de caso de fora da Holanda, talvez um centro histórico de uma cidade muito distante do contexto holandês, em condições muito diferentes. Eu pensei que a América Latina talvez tivesse alguma coisa a ver com a Europa em termos de tradições, e a escolha do Brasil foi meio por acaso: eu escrevi uma carta para o IPHAN em Brasília, e recebi uma resposta sugerindo que eu pegasse Salvador como estudo de caso. Eu nunca tinha ouvido falar no Brasil, nunca tinha saído da Europa antes, não falava nada de português, mas achei interessante. Assim que comecei a entrar no assunto, fiquei muito curioso em conhecer Salvador e o Brasil. Durante esse projeto, primeiro fiz algumas pesquisas na Europa, fui à sede da Unesco em Paris, que tem todos os dados sobre Salvador, que é patrimônio da humanidade. Depois de algum tempo, fiz uma viagem de três meses ao Brasil, tentando aprender português e ao mesmo tempo conseguir todas as informações que eu precisava sobre o Pelourinho, que nessa época ainda estava arruinado. Depois elaborei um projeto na Holanda, que apresentei um ano depois. Durante esse projeto fiz grandes descobertas, porque constatei que o valor e o significado da memória e do patrimônio no Brasil é diferente, quando comparado ao caso holandês. O Brasil, de uma forma geral, tem muito mais aquele momento vivido, o momento de formação de uma cultura e, com isso, tem inventado também uma memória e um significado para essa memória.
Depois da minha graduação, procurei uma bolsa na Holanda para recém formados, artistas e arquitetos, que dá liberdade total para você se desenvolver, ganhei essa bolsa e voltei ao Brasil. Aí o professor da FAU-USP Nestor Goulart Reis Filho me convidou para fazer um projeto para o CPC — Comissão do Patrimônio Cultural — da USP, em torno de uma ruína do primeiro engenho do açúcar do Brasil, em Santos, o Engenho dos Erasmos, porque na história dos documentos havia uma parte em holandês e ele aproveitou a minha presença para traduzir esses documentos e ver se tinha alguma coisa relevante [Ver Paul Meurs, Engenho Sao Jorge dos Erasmos: Estudos de Preservação, Cadernos de Pesquisa do Lap, nº 7, FAU USP, agosto de 1995, editor Nestor Goulart Reis Filho]. Então durante um ano, entre 90 e 91, trabalhei na USP e lá apresentei o projeto, sendo uma parte uma síntese da literatura, a segunda relativa aos levantamentos presentes na USP e a terceira uma proposta tentando elaborar o significado de daquela ruína, hoje situada numa área muito degradada, principalmente para os moradores do entorno.
HF /MC: Como foi recebido esse projeto?
PM: 0 projeto foi bem recebido, só que essas ruínas ficam longe do centro de Santos e também muito longe da USP, então claro que ele não foi muito para frente. Só alguns anos depois eu fiquei sabendo de uma pesquisa arqueológica que fora realizada no local por professores do Departamento de História da USP, mas mesmo assim para mim foi muito interessante tentar pensar qual era o valor do monumento, ao invés de simplesmente tratá-lo como um assunto técnico.
Nessa viagem fiquei mais tempo, conheci Brasília, Minas e o Rio, onde tive o privilégio de conhecer Lúcio Costa. E quando voltei à Holanda, fiz duas coisas: escrevi um monte de matérias sobre a arquitetura brasileira para revistas holandesas, sobre condomínios fechados, Oscar Niemeyer, Lina Bo Bardi, o caso de Curitiba, shopping centers, fiz menções a Brasília e ao desenvolvimento urbano do Rio de Janeiro. Foi uma grande quantidade de matérias, e junto com isso eu elaborei uma proposta de pesquisa para aprofundar uma coisa que aprendi com Lúcio Costa: o interesse da arquitetura moderna no Brasil pelo seu patrimônio, como uma fonte para criar uma nova cultura. Pelo que entendi como europeu, na Holanda os modernistas se desligaram da história conhecida e aos poucos não queriam saber mais nada da história, assim como os historiadores também não queriam saber mais nada sobre a arquitetura moderna.
Acho que os modernistas europeus têm muita dificuldade de incorporar as tradições históricas, pois em toda a malha urbana histórica das cidades modernas se nota uma ruptura entre as tradições e a arquitetura moderna. Nós temos muito mais dificuldade que os brasileiros para construir uma ponte que iguale a história com o futuro, e acho que no Brasil, por muitas razões, há maior facilidade de se entender o passado como um dos tijolos em que o futuro está sendo construído, enquanto que para nós o passado é uma coisa muito predominante, muito mais que no Brasil, do qual a gente não consegue se desligar para reposicioná-lo ou repensá-lo. Isso é uma diferença muito interessante.
Então escrevi uma proposta e fiz duas coisas com essa idéia de aprofundamento: primeiro, eu voltei ao Brasil com mais uma bolsa do mesmo estilo, em 93...
HF /MC: ... essa foi a terceira vinda?
PM: Essa foi a quarta viagem, porque eu já havia vindo uma segunda vez ao Brasil para uma sondagem. Agora é a 13ª viagem em 10 anos. Daí, eu procurei aprofundar as pesquisas no Brasil e publiquei uma matéria, com histórias do IPHAN na relação com os modernos, que depois saiu no Brasil pela revista Óculum ["Modernismo e tradição. Preservação no Brasil" in Óculum 5/6, FAU PUC-Campinas, Campinas, maio 1995]. Como é difícil morar na Holanda fazendo tanta coisa no Brasil, com um pé aqui e outro lá, eu pensei que, para refletir, tinha que desenvolver mais sobre a parte holandesa. Então eu formulei um projeto de pesquisa que agora está virando um doutorado [A ser defendido na Universidade Livre de Amsterdam (VU-A) em 5 de dezembro de 2000], estudando as relações entre arquitetura e história, as lembranças urbanas e a memória da cidade nas cidades holandesas, na época em que elas mais cresceram e tiveram uma grande transformação, que é exatamente entre o final do século XIX e o início da 2ª Guerra Mundial, em 1940.
É difícil dizer que isso é um olhar brasileiro no contexto holandês, mas estou tentando resgatar a ligação dos arquitetos modernos da Holanda com a memória e o passado. Foi uma grande surpresa descobrir um monte de teses nas revistas holandesas do início do século 20 que têm uma semelhança muito grande com as coisas que eu aprendi no Brasil, só que isso é uma história já quase esquecida na Holanda. Por isso, eu acho que está faltando um balanço sobre a relação da cidade moderna com a memória e a postura dos arquitetos para incluir essa memória na cidade moderna, e com isso também inventar um passado, porque claro que todo ato de preservação, todo o trabalho de um órgão de patrimônio é uma maneira de se inventar traços, laços e contextos.