Heitor Frúgoli Jr / Marcos Cartum: Qual a especificidade do olhar holandês sobre as grandes cidades brasileiras? Em que medida o Brasil pode servir de exemplo para as cidades holandesas?
Paul Meurs: Muitos projetos resultaram da curiosidade que existe entre os holandeses de conhecer o Brasil, que acabam, eu acho, por enxergar o seu oposto. A cidade de São Paulo tem mais habitantes que o nosso país, o Brasil é 300 vezes maior que a Holanda, a Holanda inteira cabe na Ilha de Marajó. Também tem aquela questão da memória, o crescimento das cidades, o clima, a paisagem, os temas sociais relativos ao grande contraste entre os ricos e os pobres, todas são coisas muito opostas à situação da Holanda. De outro lado, há certas tendências nas cidades holandesas de privatização, como uma decadência do espaço publico, a segregação, a busca por uma nova arquitetura (por exemplo, baseada em novos projetos com computadores) e, com relação a todos esses aspectos, o Brasil não só caminha, mas dá exemplos muito bons e experiências que estimulam a reflexão. A gente nunca vem para o Brasil para criticar ou dar uma nota ou fazer uma avaliação, a gente só vem para o Brasil discutir a Holanda.
Nesse momento, as megalópoles da Ásia — na Malásia, Coréia, Japão ou China (como por exemplo Hong Kong) — também estão muito na moda, digamos assim. Eu nunca fui para Ásia, mas queira ou não, acho que há coisas semelhantes nas grandes cidades do Brasil, sem falar que o Brasil tem uma tradição muito européia, há os arquitetos que trabalharam na mesma tradição de arquitetura moderna, então há por um lado um contexto de estranhamento, mas ao mesmo tempo você tem quase "âncoras" que ajudam a fazer algumas ligações culturais com a Holanda, como por exemplo o fato de ter Oscar Niemeyer, Lúcio Costa, Lina Bo Bardi, Reidy, Rino Levi e tantos outros arquitetos. Isso é uma coisa que se encaixa na nossa idéia de desenvolvimento arquitetônico. Já nesses países asiáticos é um pouco diferente, não há esses arquitetos nem essas tradições.
Nesse momento na Holanda acontece também um debate sobre o futuro das cidades, um balanço sobre o poder público e o poder privado, sobre toda a tendência mundial de se deixar mais espaço para a iniciativa privada, uma outra tendência de se pensar muito em termos ecológicos, além de um debate sobre o espaço público, que não é mais como na década de 50, com muita "paz e tranqüilidade". Nossas cidades estão muito mais misturadas, complexas, variadas e individualizadas, e com isso não é que o espaço público tenha entrado propriamente numa crise, mas pelo menos temos discutido como redefinir o espaço público e junto com isso também o espaço privado, o espaço semi-público e o semi-privado. Em todos esses assuntos que estão em moda na Holanda, você os encontra naqueles eixos temáticos que a gente colocou quanto às cidades brasileiras, e é por isso que também chamamos o Brasil de "laboratório de arquitetura e urbanismo", porque esse país tem as mesmas temáticas, só que o contexto é completamente diferente, então você está livre do contexto holandês quando está no Brasil e discute os conceitos e as conseqüências numa escala muito maior do que a que existe na Holanda. Com isso, a gente não quer discutir as cidades brasileiras, mas a gente quer usar o Brasil para nos ajudar a pensar melhor, mais livres mas com a cabeça mais conceituada sobre as questões que nós temos na Holanda.
HF /MC: Nessa mesma preocupação de olhar as cidades tematicamente, como é que você vê as principais cidades holandesas?
PM: Bem, Roterdã seria "moderna", com todo o espaço para a economia, como é o caso de São Paulo; Haia é uma cidade muito dominada pelo governo, pelas embaixadas e pelo poder público, então seria um pouco como Brasília; Amsterdã é uma cidade com muita cultura, mas também um pouco decadente, que sempre se acha um pouquinho melhor que as outras cidades, e isso combina muito bem com a imagem dos cariocas sobre o Rio de Janeiro, ou com a visão dos habitantes de Salvador com relação à cidade. Só que as distâncias entre essas cidades são ridículas: de Roterdã para Haia são 30 km, de Haia para Amsterdã são 40 km. Hoje em dia essas cidades não estão mais tão separadas como já foram, há muitas pessoas que trabalham em Roterdã e moram em Amsterdã, ou que num mesmo dia vão para todas essas cidades. Então, na realidade o que aconteceu na Holanda, e que já existiu no pensamento um pouco sonhador das décadas de 20 e 30, é que todas essas cidades agrupam uma corrente, um anel de cidades‚ ou o que chamaríamos de uma "cidade anel", que ligaria exatamente as principais cidades holandesas. Amsterdã tem hoje por volta de 700 mil habitantes e Roterdã 600 mil, então são todos municípios minúsculos na escala das cidades brasileiras, mas também na escala metropolitana, já que isso não é mais uma unidade. Agora teríamos, por assim dizer, uma metrópole importante na Holanda, com aproximadamente 2 milhões de habitantes naquele anel, e se você pegar as cidades satélites, chega-se até a 6 milhões, embora o "centro", o coração dessa metrópole não seja mais o centro histórico de uma daquelas cidades, mas a estrada que liga todas elas, e a periferia envolta seriam as nossas "avenidas Berrini". Só que nós temos muita dificuldade em definir essa nova identidade, a gente sempre fala e percebe que essa "nova cidade" existe, que engoliu todos os centros históricos, mas não se consegue achar o "centro" nela, nem capturar sua identidade.
HF / MC: Qual o impacto da experiência de Curitiba na Holanda?
PM: Muitas pessoas que mexem com ecologia, com planejamento sustentável, levam um susto ao conhecer Curitiba, não por ser uma cidade ideal ou uma utopia, mas uma cidade que foi pensada a longo prazo, já que durante 30 anos realmente o transporte público, o zoneamento, a malha urbana, o espaço verde, o tratamento de lixo e os programas sociais foram pensados de uma maneira integral. Foi muito chocante para os holandeses, quando fomos visitar a Secretaria do Meio Ambiente ou o IPPUC – Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba‚ órgão responsável pelo planejamento integrado e estratégico da prefeitura –, ver que todas as pessoas falam da mesma cidade, enquanto que na Holanda, se você for visitar vários especialistas, muitas vezes estão falando de uma cidade diferente. Isso realmente mostra como Curitiba, mesmo com um monte de coisas que você pode criticar, é um exemplo de como isso pode ser feito. Na Holanda as pessoas às vezes esquecem desse debate sobre a cidade sustentável, as relações públicas, a informação, a propaganda, todas essas coisas que são muito bem tratadas em Curitiba, porque isso é preciso para conquistar a população e para manter esse diálogo, e não se trata apenas daquelas reuniões chatas de bairro que ninguém vai, mas realmente de uma coisa que precisa ser feita na linguagem de hoje. Isso é um exemplo muito claro em que uma cidade brasileira pode servir como guia para as cidades holandesas, mesmo se sabendo que nunca vai haver na Holanda cidades como Curitiba, porque são apenas conceitos.
Também aprendemos em Curitiba que você tem que entender a situação local e ver todos os potenciais na estrutura existente não só em termos da estrutura física, mas também sociais. Então nós também temos que pensar na nossa estrutura e a partir disso tentar avançar.
HF / MC: Há projetos concretos inspirados em Curitiba?
PM: Um dos exemplos mais interessantes na Holanda é um bairro chamado Den Haag Zuid-West, com 65 mil habitantes, na cidade de Haia, que foi pensado e planejado na mesma tradição de Brasília, quase que na mesma época, e que hoje em dia tem muitos problemas, como a segregação social, já que está ficando cada vez mais pobre com relação ao resto da cidade, um pouco esquecido e que por outro lado fora pensado para uma comunidade mais homogênea e que hoje em dia é muito diversa. O bairro foi pensado como um espaço público muito grande, como as super-quadras de Brasília, com 27 centros comunitários que estão na maioria desativados. É uma região que tem problemas, com desafios internos mas também externos com relação ao resto da cidade, num momento em que a cidade de Haia fazia 750 anos de idade. Para essa ocasião, convidou-se especialistas de cidades modelos, cidades exemplares do resto do mundo para mostrar suas visões, para se pensar a experiência deles no contexto de Haia. Foi convidada uma equipe de Seattle, que tratou do centro da cidade, uma equipe de Berlim, que abordou os espaços verdes, uma equipe de Estocolmo, que falou do transporte público, uma equipe de Barcelona, que tratou do espaço público no centro da cidade e uma equipe de Curitiba, para estudar o caso daquele bairro e adotar as experiências de Curitiba, não tanto no transporte público, mas no combate à segregação social. Três pessoas do IPPUC foram por três vezes passar uma semana em Haia e fizeram uma proposta super atraente e inovadora para esse bairro na Holanda.
HF / MC: Quais as principais impressões do grupo sobre São Paulo?
PM: Em São Paulo talvez seja mais difícil dizer qual a lição para os holandeses, porque todo mundo fica muito chocado, é quase incompreensível para nós e talvez para vocês também como funciona e como não funciona essa cidade, entender suas qualidades e suas discrepâncias. Então, é uma cidade ao mesmo tempo muito atraente para os holandeses, porque é extremamente viva, com uma dinâmica muito grande‚ é um dos lugares mais privilegiados do Brasil em termos de emprego, trabalho, lazer, oportunidades econômicas, mas por outro lado também os holandeses aqui quase ficam deprimidos, dada uma ausência muito grande de uma forma arquitetônica. Na Holanda, a gente ainda consegue controlar com a arquitetura as cidades, mas a arquitetura não tem força, não tem poder e isso se torna claro numa cidade como São Paulo. Realmente aqui são os fluxos que dominam a cidade e é óbvio que São Paulo tem esse contraste brutal, as favelas, os cortiços, os condomínios fechados e os shopping centers, os espaços públicos tradicionais, os espaços públicos privatizados, esses são todos assuntos que parecem ameaçadores para os holandeses, porque lá nós estamos falando de maneiras de pensar a cidade, de deixar mais espaço para a iniciativa privada, mas por outro lado, claro que a gente não quer um extremo como São Paulo, e neste sentido então existe um sentimento muito dúbio sobre São Paulo, mas também muito estimulante, porque a cidade mostra muito claramente quais podem ser as conseqüências quando o governo não consegue acompanhar o processo de crescimento urbano, embora também mostre muito bem quais são os benefícios daquele espaço pela ação da iniciativa privada.
HF /MC: Quais foram os principais locais visitados?
PM: Nós obviamente visitamos pontos famosos da arquitetura paulista – Sesc Pompéia, Masp, Mube, Pinacoteca, Casa de Vidro, etc – mas o grande fascínio dos arquitetos holandeses por São Paulo vai além de arquitetura. É a cidade como fenômeno, a história do crescimento brutal. O desafio é de mostrar isso em apenas 4 dias. É uma coisa fascinante da cidade como de repente tinha todas opções, todos os critérios para crescer e realmente cresceu e foi até o céu e além. Essa é uma coisa muito forte em São Paulo. Quando nós fazemos as visitas ao Centro, que é um lugar de confronto, a gente visita a Bolsa de Valores, com os camelôs e os mendigos, todos em frente à entrada, então é realmente claro ver, perceber os dois lados da mesma situação juntos, perceber as tentativas do Centro de tentar aproveitar a localização privilegiada e a infra estrutura existente, mas também com a má fama que tem e os problemas daquela tensão que existe entre de um lado um lugar ideal e de outro lado um lugar que já foi há muito tempo abandonado para várias classes da cidade. Isso é uma coisa muito visível no Vale do Anhangabaú, a tentativa de reorganizar sua qualidade através de um projeto especial e com isso tentar atrair a iniciativa privada. Do outro lado, claro, a Avenida Paulista, os jardins, os shoppings, os condomínios, ver o que substitui aquela cidade tradicional, ver a Berrini, toda a dinâmica que tem em volta e também ver as tentativas, acho que quase fracassadas, nessa medida, de reestruturar isso, como por exemplo o complexo viário Ayrton Senna e os túneis.
HF /MC: E a quanto às visitas ao condomínios fechados, qual foi a impressão? Houve problemas?
PM: Sempre há problemas. Eu visitei Alphaville duas vezes com grupos de holandeses e sempre fomos muito bem recebidos pela construtora Takaoka Albuquerque. Eles estavam muito abertos para o debate e é claro que fizeram uma coisa impressionante, construíram em 30 anos uma "cidade", no papel de investidores. Mas na prática das visitas, sempre se criou muito problema. No ano passado, para entrarmos num residencial, demorou muito para termos a permissão, havia os vigilantes motorizados que ficavam em volta, todos nervosos, é como se os moradores se sentissem muito ameaçados, quase que como dentro de um filme. Então, os holandeses ficaram por um lado admirando a parte empresarial, o esforço de se construir um condomínio, mas ficaram bastante assustados com a conseqüência de se construir uma cidade protegida, com grades e muros.
Mas há também a constatação de uma outra questão: uma vez, quando dei uma palestra na Holanda sobre São Paulo, suas favelas e condomínios fechados, as pessoas ficaram muito chocadas e pensaram que São Paulo era uma cidade onde todo mundo andava armado na rua, e uma vez que chegam aqui, sentem um tal calor humano, tanto contato entre várias classes, também entre pobres e ricos, que para eles é um grande alívio ver essas duas coisas juntas.