Favela-bairro
Érico Costa: Sérgio, como surgiu o programa Favela-Bairro e como ele será mantido?
Sérgio Magalhães: A manutenção e ampliação do programa Favela-Bairro só tem uma possibilidade: é se ele fizer parte da demanda política da sociedade. Não há chance dele continuar se não houver uma sintonia dele com a sociedade. Ele existe em função disso. Existe em função das experiências anteriores na cidade do Rio de Janeiro, experiências seculares em relação ao trato da questão habitacional, especialmente a questão das favelas. Da experiência bem sucedida e da experiência mal sucedida. A experiência mal sucedida no sentido de entender a favela como um lugar transitório, como um lugar aonde as pessoas chegavam ali, ficavam um tempo e iam embora, como um lugar passível de ser removido para um conjunto habitacional que supostamente englobaria as virtudes da sociedade moderna. O Favela-Bairro é justamente uma resposta das experiências social, urbanística e econômica que o Rio de Janeiro e Brasil passaram, quando aquele modelo anterior a que me referi, se mostrou inviável e o problema insolúvel. A partir do final dos anos 60, ocorreu a primeira experimentação em Brás de Pina que demonstrou a viabilidade à urbanização de uma favela. Depois nos anos 80, as políticas públicas foram mesmo enfáticas na questão da remoção e houve uma certa proteção para que as famílias pudessem continuar investindo em suas moradias. Isso foi o substrato que deu chance para que no começo dos anos 90 a prefeitura do Rio de Janeiro formulasse a política habitacional que concebeu o programa Favela-Bairro. Um programa ao mesmo tempo de implantação das infra-estruturas necessárias a uma comunidade urbana moderna, a integração urbanística desta comunidade infraestruturada aos bairros do entorno e a integração social através dos serviços públicos. As forças políticas partidárias dos governos, como também as forças políticas da sociedade organizada, que já estavam desejosos de encaminhar o problema das favelas para uma solução viável, viram que o Favela-Bairro poderia corresponder a esse desejo. Com isso houve o suficiente acordo para que a prefeitura pudesse investir recursos grandes na urbanização das favelas e buscar recursos externos e possibilitou que a cidade assinasse o primeiro contrato internacional de financiamento direto com o município, que foi o BID Favela-Bairro. Enquanto a sociedade continuar vendo na urbanização das favelas o encaminhamento melhor para o tema, vão haver condições políticas e econômicas que sustentem o programa.
EC: O processo de favelização é um processo econômico-social. As pessoas estão ali porque não tiveram condições de se fixarem na cidade formal. Você considera que as atitudes foram tomadas a partir do momento que os níveis de violência nas favelas aumentaram e se espalharam pela cidade?
SM: A comunidade não passou a ser agressiva. A pobreza não gera violência. Esta é uma afirmação que já foi demonstrada não ser verdadeira. Existem estudos que comprovam que violência e pobreza não estão necessariamente relacionadas. Pobreza não quer dizer violência. Há sociedades extremamente pobres com grau zero de violência. Criou-se uma confusão porque há uma superposição, no mesmo território, de comunidades pobres faveladas e banditismo. Mas o banditismo existe independentemente da forma urbana. O banditismo pode existir numa comunidade com características de favela como numa comunidade com características de cidade absolutamente formal. Uma favela, do ponto de vista formal, é um conjunto de habitações que se organizaram segundo uma orientação de espontaneidade, ocupando territórios abandonados ou subtilizados. Sob o ponto de vista da forma urbana em geral, as ruas são estreitas, sinuosas, onde não há uma prévia definição do espaço público. Este não é necessariamente o lugar da violência, o lugar do banditismo nem da marginalidade. A marginalidade e o banditismo podem ocorrer numa situação inversa, de forma urbana absolutamente regular, ruas retas, formais, edifícios de apartamento. Também não é privilegio desses dois extremos de forma urbana. Também podem em conjuntos residenciais muito bem concebidos segundo os cânones legais, como por exemplo na periferia de Paris, em conjuntos residenciais do Rio de Janeiro, São Paulo ou qualquer outro lugar. O que equaliza todos esses casos não é a forma urbana ou o fato de serem comunidades pobres. O fator de equalização é a ausência do governo.
EC: A ausência do governo nesses territórios é que permite que eles sejam ocupados por um outro poder?
SM: Sim. O papel do governo, desde o seu tempo mais remoto, é de organizar e proteger a sociedade. É o Estado que tem o monopólio da justiça. É o Estado que tem teoricamente o monopólio da segurança. Quando ele se retrai e deixa ao abandono das leis alguns territórios, esses são ocupados por quem disputa com o governo a justiça, a segurança, etc. O monopólio está rompido. A primeira questão essencial é diferenciar que comunidade favelada não é necessariamente lugar da violência, seja por uma questão social, seja por uma questão econômica, ou uma questão urbanística. É preciso diferenciar isso porque esta confusão é a matriz de um grande preconceito. É um preconceito que perpassa as décadas e faz com que a sociedade se ausente de uma providência que ela tem que exigir. Quando começamos há 10 anos atrás a política habitacional do Rio de Janeiro, no mapa da cidade onde era favela era um lugar em branco. Como se ela não existisse. Como se mesmo morando ali 20% da população do Rio de Janeiro, não existisse.
EC: Mas isto está sempre ligado a questão econômica?
SM: Está ligado à questão econômica mas não é uma questão econômica em que os moradores das favelas sejam seres à margem da sociedade. Não estão à margem da sociedade. Eles estão absolutamente integrados à sociedade. A favela é justamente fruto desta adesão dos pobres a sociedade. Os pobres têm consciência que é na cidade que é possível o progresso, e que são possíveis as oportunidades. Eles estão integrados na cidade capitalista porque eles dispõem dos benefícios dos bens de serviços que a sociedade oferece incluindo os bens duráveis. Os pobres do Rio de Janeiro, moradores de favelas, compartilham o mercado de bens duráveis. Inclusive automóveis. No entanto, em matéria de habitação estão à margem porque o Estado brasileiro e o mercado brasileiro está há muito tempo sem uma política urbana e habitacional que democratize o acesso à habitação. Enquanto nos países como os EUA e a grande parte dos países europeus o acesso à moradia é feita através do crédito abundante, o Brasil não tem crédito habitacional desde sempre. E quando o crédito habitacional aconteceu, ele era cartelizado. Ele era oferecido para a empresa e não para a pessoa.