Ana Rosa de Oliveira: Como o senhor estruturou o plano piloto? O que o senhor visava na distribuição da cidade? Teve influência de Le Corbusier?
Lúcio Costa: A responsabilidade era a seguinte: era preciso fazer uma cidade que já nascesse com pinta de capital. Que não parecesse uma cidade de província. O risco era uma cidade que não estivesse dentro dessa concepção. Essa possibilidade de se transformar de fato na capital definitiva do país. Felizmente, o meu projeto atendia a essas circunstâncias. Isso implicava fundamentalmente a adoção, para os prédios públicos da parte coletiva da cidade, de uma escala muito generosa, ampla, larga para transmitir a qualquer paulista, ou carioca que lá fosse, que ao chegar se sentisse na capital do país e não numa cidade de província. Esse foi o ponto de partida – me pareceu interessante criar – normalmente os prédios públicos ficam no centro da cidade que se desenvolve em torno deles. Mas daí, diante daquela topografia e do lago que havia sido criado, eu achei interessante botar essa praça principal, praça maior – que eu batizei de Praça dos Três Poderes – e o nome pegou.
A idéia era de criar uma praça triangular eqüilátera, porque os três poderes teoricamente têm o mesmo peso, para o qual o triângulo seria o adequado, para em cada ângulo botar um dos poderes; governo, supremo e legislativo. Pareceu-me que esta praça triangular deveria ser tratada com muita sobriedade, muita largueza mas com muito apuro, muita qualidade. Então para esse efeito, eu a sobrelevei do cerrado agreste uns 5 ou 6 m, para formar um platô, quer dizer, este triângulo foi aterrado para formar um piso elevado sobre o cerrado. É como eu digo, como se fosse um Versalhes do povo, não um Versalhes do rei. Um Versalhes do povo, tratado com muito apuro. Com um lago muito bonito, bem tratado, esse foi o ponto de partida. Para ser uma cidade administrativa, eu tinha que dispor os ministérios em decorrência desta praça. Pareceu-me fundamental um eixo, que partisse dessa praça triangular, subindo em direção ao cruzeiro – tinham posto um cruzeiro na parte alta da cidade. Ao longo desse eixo, me pareceu razoável criar uma grande esplanada e dispor de cada lado os edifícios do ministério.
Os edifícios dos ministérios são simples escritórios, não havia razão para caracterizar nenhum. Eu apenas agrupei os edifícios dos ministérios dos militares, formando uma praça de um lado e do outro, outra praça com a catedral, que eram coisas bem caracterizadas. Os outros edifícios do ministério foram criados todos semelhantes , formando um alinhamento de prédios de 10 ou 12 andares, dando para esta esplanada.
Ficaram aquelas duas vias que levavam em direção àquele aclive onde deveria estar, na parte mais alta, a torre de TV, que fazia parte do programa. Depois desse eixo monumental está a parte administrativa. Mas para a cidade funcionar tem que ter habitantes, os burocratas, eles têm que morar. Então achei claro criar um outro eixo ortogonal – perpendicular ao primeiro – que seria meio curvo para adaptar-se aos limites da área, da topografia do terreno. Assim ficou um eixo encurvado, com 6 km para cada lado. Aí surgiu um problema: como conciliar a escala residencial, ao longo deste eixo, com a escala monumental do eixo principal? Então me ocorreu a idéia de construir quadras grandes, que eu chamei superquadras – pois as quadras normais tem de 150 a 200m² e eu propus quadras de 300m², formando assim uma cadeia, seqüência onde eu preservei vinte metros de toda periferia das quadras quadriláteras, para plantar dois renques de árvores, que com o tempo, formariam uma verdadeira muralha verde, definindo a quadra. Era diferente da muralha medieval de pedra, era uma muralha verde que se mexia com o vento, uma muralha viva, você vendo através dos troncos.
Assim foi. Cada quatro quadras constituíam uma área de vizinhança, quer dizer, com as facilidades de comércio local: igreja, cinema, colégio secundário, escola primária estariam dentro de cada quadra. É assim que se estabelece uma unidade de escala, aí já estava tudo ordenado de acordo com o meu raciocínio, me pareceu que seria a solução porque pegaria as duas chegadas à cidade – uma chegando do Rio e São Paulo e a outra desde Anápolis, que formariam este cruzamento.
No encontro dos dois eixos, monumental e residencial, seria necessária a criação de uma grande plataforma rodoviária para que o tráfego pudesse se desenvolver sem cruzamento. Esta plataforma seria dispendiosa. Aí ocorreu um pormenor, quando o presidente Oliveira se revelou um grande estadista. Eu propus a ele fazer apenas uma parte da cidade e deixar o restante, a plataforma para depois, mas aí ele disse: "Não, eu faço questão de fazer a estrutura toda da cidade, o arcabouço da cidade porque com esse partido que você adotou, se não for feito corretamente, a estrutura não funciona, fracassa completamente, seu plano vai por água abaixo. Eu faço questão de deixar o arcabouço da cidade pronto ... e iluminado". Ele queria o brinquedo dele iluminado...
AR: O plano piloto previa uma expansão para a cidade?
LC: Não. Aí está, eu previa, mas a tese era a seguinte: a cidade estava planejada para 500 a 700 mil habitantes, quando fosse se aproximando deste limite seriam criadas na periferia cidades satélites, pequenas, complementares. Para evitar aqueles fragmentos suburbanos que é sempre desagradável, desmoralizante... A cidade estava bem definida, depois surgiriam nessa periferia pequenas cidades, esse foi o esquema.
O engenheiro, Sr. Pinheiro que era o responsável pelas obras, uma pessoa excepcional, com a NOVACAP, tinham considerado três possibilidades: uma vez terminada a fase inicial, dos 3 anos iniciais de trabalho intensivo, 1/3 da população obreira que tinha ido a Brasília para construir a cidade, chegado o momento da inauguração voltaria para o seu "país" de origem; o outro terço seria absorvido pelas próprias atividades locais urbanas; para o terceiro terço – como eram quase todos operários de tradição rural- a solução seria criar um cinturão verde, agrícola, em torno da cidade. Esse era o programa, mas não deu certo porque todos quiseram continuar em Brasília. E a NOVACAP ficou com aquele problema, os operários tinham criado verdadeiras favelas próximas aos canteiros de obras. Embora eles houvessem declarado que não levariam as famílias, depois de 15 dias do mês, estavam todos lá, precisando morar e criando favela em torno de cada grande canteiro.
Uma vez inaugurada a cidade – abril de 1960 – não podia ficar assim, tinham que transferir essas pessoas. Aí surgiu a idéia de criar núcleos na periferia. A NOVACAP escolheu várias áreas e projetou, com um arquiteto chamado Hungria Machado, a implantação de vários núcleos para transferir essa população obreira, dando um lote para cada um.
Ao contrário do que andaram dizendo, os operários que construíram Brasília não foram abandonados, eles se transformaram da noite para o dia em proprietários, em detrimento de Brasília, que teve muita despesa para levar estradas de acesso, luz e todas essas facilidades para cada um daqueles núcleos. Esses operários instalaram-se e cresceram porque não tinham nenhuma restrição, ao contrário dos residentes em Brasília, que tinham que obedecer a uma série de critérios para manter a unidade da cidade, nestas cidades satélites não havia nada disso e surgiram milionários de lá, enriqueceram.
Porém, continuou a afluência de gente nova, as favelas que foram surgindo eram formadas por gente nova que vinha atraída por aquela miragem da capital. Talvez não fosse uma solução civilizada em termos europeus, mas uma solução que deu certo. Essa gente mora lá, e dentro dos seus limites é feliz.