Denise Invamoto: Como se deu o processo pelo qual Warchavchik se constituiu em objeto de sua tese de livre-docência?
José Lira: Foi a partir do Mário de Andrade que Warchavchik se colocou para mim como tema de pesquisa. No doutorado eu havia estudado o rebatimento entre pensamento social e o debate arquitetônico através de alguns fios sugeridos pela obra de Gilberto Freyre no Recife. Interessava-me então entender como os regionalistas de Pernambuco se defrontavam com a problemática da modernização urbana e as posições modernistas na cultura, tendo como foco os embates em torno do urbanismo moderno, do traçado tradicional da cidade, das tradições vernaculares de arquitetura, das propostas de habitação popular. Tendo desenvolvido parte da pesquisa em acervos de São Paulo e do Rio o contraponto com o que se passava no Sudeste foi se impondo, revelando o reducionismo das leituras dualistas das relações entre vanguarda e tradição, modernidade e atraso, modernismo paulista e regionalismo pernambucano. Terminada a tese de doutorado, já em 1997, montei um projeto de pesquisa para estudar de perto a biblioteca de arquitetura de Mario de Andrade. Queria entender como ele, com base em que repertórios intelectuais e artísticos, fôra capaz de propor aos arquitetos idéias tão originais, tão fecundas, acerca do que se passava em arquitetura no final dos anos 1920. No Brasil e fora dele. Mário estava então olhando dialeticamente para as obras de Warchavchik, os projetos de Flávio de Carvalho, as realizações dos alemães, dos holandeses, de Le Corbusier entre outros, para suas apostas, seus dilemas, limites, desdobramentos possíveis ou incertos, e para sua condição de marginalidade no cenário contemporâneo. Como se sabe, em São Paulo, assim como no Rio de Janeiro, e em outras cidades do país, as obras de Warchavchik entre o final dos anos 1920 e o início dos 30, vinham protagonizando não apenas um deslocamento de vanguarda no campo da arquitetura, mas a própria possibilidade de se passar da ruptura à estabilização, de um momento destrutivo a um projeto construtivo na cultura brasileira. Intrigavam-me os significados então atribuídos a sua obra e trajetória, os deslizamentos semânticos da própria idéia de vanguarda arquitetônica, seus embates com o campo cultural e produtivo mais amplo.
DI: E como surgiu a decisão de estudar Warchavchik desde suas origens em Odessa e enfrentar o amplo arco temporal tratado na tese?
JL: Os anos de formação de Warchavchik continuavam em aberto na bibliografia. O exame do reduzido material biográfico disponível, de sua correspondência, dos currículos por ele produzidos ao longo da vida, dos relatos e entrevistas que ele havia concedido, das referências externas acerca de sua trajetória, logo revelaram as imensas discrepâncias, imprecisões e preconceitos que o cercavam. Comecei então a tentar retomar alguns dos fios sugeridos pelas fontes e a bibliografia, preencher algumas lacunas, aproximar-me tanto quanto possível aqui no Brasil do cenário ucraniano e italiano de sua formação. No lançamento da coletânea de artigos do Warchavchik, que o Carlos Martins organizou para a Cosac Naify, ele me chamou para apresentar uma parte da pesquisa, já em andamento. E eu resolvi me concentrar justamente nos anos anteriores àqueles escritos, ao Warchavchik se afirmar como porta-voz do modernismo arquitetônico entre nós, como “pioneiro”. Na tentativa de reunir algumas questões pertinentes, algumas possibilidades de entendimento de sua trajetória prévia, na condição de anonimato em que ele se formara e aportara no Brasil. Naquela ocasião, Aracy Amaral me procurou ao final pra me perguntar por que eu não ia atrás de respostas àquelas questões, por que não tentava realizar uma pesquisa in loco, inclusive na Ucrânia. Confesso que nunca havia cogitado dessa idéia, que parecia arriscada, talvez inútil. Não falo russo, a Ucrânia parecia um país muito distante, exótico, misterioso, inacessível. Talvez tanto quanto o Brasil para um ucraniano... Em todo caso, achei que valeria à pena tentar, e para minha surpresa o CNPQ concordou em apoiar a iniciativa. Comecei a vasculhar a bibliografia sobre Odessa, o mundo político, étnico, artístico ucraniano. E Para tal contei com múltiplos apoios locais, como o de Bruno Gomide, professor do Departamento de Russo da USP, e de Boris Schnaiderman, que passara sua infância em Odessa e se empolgara com o projeto. Comecei a escrever a schollars e instituições, ucranianos, russos e norte-americanos, à procura de contatos, maiores pistas, e aos poucos fui me empolgando. Ajudaram-me enormemente duas professoras aposentadas: uma de história e língua ucranianas da Universidade Brown, Patricia Herlihy, autora de uma monografia fascinante sobre Odessa; e Valeria Kukharenko, professora de literatura inglesa na Universidade de Odessa, uma senhora adorável, cultíssima, que me apresentou historiadores, arquivistas, bibliotecários, e uma intérprete fantástica, Natasha Kotenko. Generosíssimos, e encantados com a descoberta de um conterrâneo que se tornara tão importante em terras tão distantes. Ou seja, de um balanço de dúvidas foi se constituindo um projeto de campo, que estendi à Itália, graças ao apoio de colegas da USP como a Beatriz Kuhl e o Renato Anelli. De fato, o material recolhido me ajudou a pensar melhor uma das questões que eu diria centrais do trabalho, que é a avaliação dessa relação entre vanguarda européia e modernismo brasileiro, que estava na base de todas as interpretações do lugar que esse arquiteto europeu cumpriria entre nós. Mapear melhor a trajetória de Warchavchik na Ucrânia e na Itália, como ele viria a se inserir e se transformar no contato com o universo local – que não era de modo algum passivo, mas relativamente tenso, movimentado. Na pesquisa ficou evidente que Warchavchik chegara ao Brasil sem um grande referencial de vanguarda, mas com uma formação de transição, com alguma informação vanguardista, mas que então parecia migrar de um currículo Belas Artes tradicional para o modelo de arquiteto integral, com formação mais profissional e domínios de competência melhor estabelecidos. Em todo caso, um arquiteto que chegara no Brasil, como tantos outros profissionais e artistas estrangeiros que aqui aportaram no entre-guerras à procura de melhores oportunidades, anonimamente, assalariados, recrutados para atuarem em frentes dinâmicas de modernização nas obras públicas, na construção civil e no mercado imobiliário no país. Refazer o seu itinerário, recuperar as circunstâncias de seu deslocamento revelou-se assim uma oportunidade de revisão dessa leitura descendente, colonialista, etnocêntrica em história da arquitetura, e sobretudo da arquitetura moderna, incapaz de perceber a complexidade dos fluxos da modernização, da circulação internacional de atores, capitais, informações, das redes de atualização cultural global, já naquele momento.
DI: Isso é uma ideia que aparece no trabalho, de que foi no contato com essa realidade de modernização brasileira que ele desenvolveu sua produção intelectual de vanguarda, com a qual ele não teve contato na Europa.
JL: Eu tentei ser o mais honesto possível nessa reconstituição, evidentemente com todas as minhas limitações, não sendo especialista em vanguardas russas, frequentemente dependendo de fontes secundárias, e em grande parte tentando perceber o que era esse universo de vanguarda. E sem ignorar, evidentemente, o fato de que Odessa não era uma cidadezinha qualquer na geografia européia das vanguardas européias, mas um rico centro cultural, um dos centros mais efervescentes de produção de vanguarda desde o final do período imperial, ao lado de Kiev, Moscou, Petersburgo, onde nasceram, residiram ou estudaram artistas do porte de Kandinski, Larionov, Ermilov, os irmãos Burliuk, Altman, Exter. Uma cidade aliás maior do que Roma e do que São Paulo em 1918. Essa conexão de Odessa, sobretudo no campo das artes visuais, com alguns nichos de vanguarda europeus e com movimentos como o cubismo, o futurismo, o expressionismo, naquele momento foram fundamentais para a definição do que se entende como vanguarda russa, ainda que a produção arquitetônica local ainda fosse irrelevante do ponto de vista da experimentação formal contemporânea. O que procurei enfatizar, porém, é que mesmo se supuséssemos algum contato de Warchavchik, ainda estudante da Escola de Arte de Odessa, com essa renovação artística em andamento, dificilmente poderíamos sugerir qualquer ressonância das vanguardas européias em sua trajetória efetiva ou em sua produção projetual, seja nos anos de estudante seja no início de sua atuação na Itália. Em face da escassez de fontes biográficas, investi em uma direção diversa: o da história social e cultural das cidades onde ele residiu, nelas situando a renovação institucional, o ambiente de ensino e a prática de arquitetura. À procura de indícios pertinentes para pensarmos essa posição móvel, desenraizada, cosmopolita, profissionalizada, intelectualizada do arquiteto naquele momento.