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interview ISSN 2175-6708

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O livro "Warchavchik: fraturas da vanguarda" é fruto de ampla pesquisa do autor José Lira, com viagens para cidades europeias onde o arquiteto nasceu e se formou

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INVAMOTO, Denise. Gregori Warchavchik: de Odessa a São Paulo. Entrevista com José Lira. Entrevista, São Paulo, ano 12, n. 047.01, Vitruvius, set. 2011 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/11.047/4026>.


Capa do livro de Geraldo Ferraz, “Warchavchik e a introdução da nova arquitetura no Brasil, 1925-1940”. São Paulo, Masp, 1965


Denise Invamoto: Em uma entrevista em que o Geraldo Ferraz concedeu para o Ricardo Souza (1), ele afirma o contato efetivo de Warchavchik com a obra do Loos ainda na Itália, onde também trabalha com Piacentini e pode ter conhecido os projetos de Sant'Elia. Pode-se identificar alguma presença destes autores na obra do arquiteto?

José Lira: Efetivamente a gente sabe que a narrativa do Geraldo Ferraz investe nessa idéia de uma matriz de vanguarda que vem de Loos e do futurismo italiano, assim como da Bauhaus. Mas é preciso dizer que não há indícios de um contato direto de Warchavchik com essa produção, ainda que na revista Architettura e Arti Decorative, Piacentini tenha publicado no começo dos anos 20 alguns artigos sobre a produção de arquitetura européia contemporânea, com referências elogiosas a Loos, Hoffman, Behrens, Messel e Le Corbusier, e sua validade em um contexto reconhecidamente atrasado como o italiano mas de fundas raízes mediterrâneas. Mesmo aí é difícil falar em influência. E ademais se há no meio italiano uma informação de vanguarda em circulação, até a segunda metade da década, como se sabe, a produção arquitetônica local é quase impermeável a ela. Eu não encontrei qualquer indício objetivo desse contato prévio de Warchavchik com o futurismo, nem tampouco com o purismo, o neo-plasticismo ou a nova objetividade, e muito menos com o construtivismo, como outras vezes se apontou, que sequer havia produzido alguma expressão arquitetônica naquele momento. Aliás, os projetos ucranianos e italianos que o próprio Geraldo Ferraz publica, apesar de muito diversos entre si, falam antes de uma preocupação com programas tradicionais, como o palacete, o teatro, o templo, no máximo com as novas tipologias habitacionais que a reconstrução do pós-guerra estimulava, inclusive junto aos ateliês de Piacentini, Innocenti e Roster, onde Warchavchik trabalhou, e nos quais se reconhece a dominância do neoclássico, do barochetto, do Déco, da arquitetura menor, de certo Art Nouveau, ou antes de algumas correntes simbolistas tipicamente russas, como as praticadas por Ivan Fomin no início do século XX. É nesse universo repertorial que Warchavchik se movimenta neste momento. Se alguma coisa pode aproximá-lo da arquitetura de Adolf Loos é talvez algo que não é exclusivo a Loos, mas que aparentemente pertence a uma ética de depuração do estilo, de sabor anti-formalista, anti-decorativo própria à cultura arquitetônica do pré-guerra em contextos muito diversos. Ao que parece essa associação a Loos nasce das leituras da Casa da rua Santa Cruz. Mas se é possível nela reconhecer elementos loosianos, que serão praticados de maneira bastante livre, e talvez inconsciente ainda que muito potentes em projetos posteriores, o que salta aos olhos ali são justamente as suas ambigüidades e estratégias conflitivas, as tensões entre gestos de ruptura e acomodação, um referencial clássico redivivo e certo purismo que insurgia, que se evidencia no uso dos materiais, na planta, no contraponto entre as fachadas, no jogo de proporções, de aberturas, de perspectivas, nas matemáticas dessa casa ideal construída em latifúndio suburbano de uma metrópole periférica. E talvez seja isso que faça dessa casa algo tão emblemático de um momento da cultura brasileira, de um momento da arquitetura brasileira. Foi apenas por isso que achei válido dedicar um capítulo inteiro à análise do primeiro projeto para a rua Santa Cruz.

DI: Me parece que sua interpretação sobre a casa traz a ela um novo estatuto no interior do campo historiográfico e isso talvez decorra do seu modo de tratar o problema da análise de obra. Em um trecho na introdução, à página 11, você diz: “é necessário em primeiro lugar ultrapassar a condição imediata das obras como construções acabadas e conhecer sua dimensão fragmentária e dividida, haja vista sua inscrição no mundo da produção e do consumo; de um lado descortinando o interior da síntese aparente das obras, sua desunidade e disseminação, e de outro fazendo explodir a continuidade, identidade e transparência da própria experiência individual” (2). Queria que você falasse um pouco disso.

JL: Nós arquitetos, quando olhamos para as obras modernas e para a figura do arquiteto moderno, tendemos a pensar nas obras como coisas autônomas e nas decisões de projeto como gestos soberanos. Há uma tendência a pensar esta unidade, esta identidade perfeita das obras, a idéia das obras como coisas indivisas, fechadas em si, acabadas, separadas de tudo que lhes cerca. Esse é certamente um dos fetiches da arquitetura moderna, e também da historiografia. Eu diria que uma história da arquitetura que tem como objeto obras isoladas, vistas como emanação direta e soberana do arquiteto, esbarra em interpretações complicadas. Por exemplo: de obras bastardas em relação a projetos autônomos, do processo da arquitetura como produção solitária de arquitetos, das circunstâncias externas ao trabalho projetual como obstáculos à sua plena realização. Ora, jamais uma obra de arquitetura foi, e jamais provavelmente ela será um produto solitário do arquiteto. E isso por várias razões: por ela se entregar imediatamente ao uso, e portanto por sua apropriação social; pelo fato de se dar à fruição no urbano, como tal tornando-se inseparável das estruturas econômicas e de poder; pela condição coletiva de sua produção, envolvendo atores, saberes, práticas e interesses muito diversos, pelo fato dela se confundir, enquanto obra coletiva, pública, social, com processos que lhe são constitutivos, de divisão de trabalho, de divisão de competências, de divisão, regulação e valorização da terra, da propriedade, da privatividade, do capital etc. Ou seja, na constituição mesma da arquitetura há processos, relações, agências, práticas, atores, que aparentemente externos ao momento do projeto, o delimitam, o condicionam, o modelam por dentro. Ou seja, no momento mesmo em que o arquiteto projeta, ele o está fazendo sempre de acordo com determinadas necessidades psíquicas e sociais, com certas notas mais ou menos dominantes na cultura arquitetônica, com recursos materiais e construtivos bem específicas, no quadro de encomendas materiais e simbólicas, nos limites de um determinado terreno, uma legislação, fatores de localização e inscrição espacial, um determinado investimento de capital – que não é pequeno no caso da arquitetura, etc, etc. Mesmo obras de vanguarda, que se definem por transcenderem ou tensionarem tais circunstâncias da produção, por sua marginalidade em relação ao público, ao gosto dominante, aos recursos materiais, ou por seu grau de autonomia, autoria, autoridade, revelam sua inevitável aderência a certos denominadores comuns. Sem determinismo ou sociologismo, nem imperialismo formalista, eu diria – parafraseando Antonio Candido – ser necessário de uma vez por todas assegurar certa reversibilidade entre o formal e o não formal em arquitetura, surpreender o social na imanência mesma do valor estético. É hora de pensarmos o sucesso ou insucesso arquitetônico, de analisarmos ou julgarmos as obras de arquitetura não apenas a partir da intenção, da reflexão ou da decisão aparentemente solitária do arquiteto em face do vazio ou do papel em branco. Mas de pensarmos o valor das obras a partir do modo como elas se inscrevem, enfrentam e respondem a conteúdos que, pertinentes ao estético, intervém no processo de realização da arquitetura. Eu tentei, desse ponto de vista, olhar para as obras de Warchavchik, parar diante delas, olhar os projetos, as obras que foram construídas, que ainda estão de pé ou não, suas imagens, partindo dos dados disponíveis a seu respeito, articulando-as no tempo, na sociedade, na cultura, na economia, no espaço urbano, enquanto fatores da própria produção arquitetônica. Foi nesse sentido que procurei reconhecer – seguindo aquilo que Tafuri propõe em seu projeto histórico – a desunidade, a fragmentação, a divisão, a disseminação nas obras de Warchavchik, e nelas algumas das fraturas da vanguarda arquitetônica.

notas

1
SOUZA, Ricardo F. C. de; MALACO, Jonas Silva. Arquitetura brasileira: a palavra de Geraldo Ferraz. Revista d’Art, São Paulo, n. 2, 1998, p. 21-26.

2
No livro, a introdução foi revisada e publicada como epílogo.

Casa Moller, Adolf Loos, 1927-28 [Acervo José Lira]

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