Lívia Loureiro: Até que ponto o “Novo Realismo” influenciou a obra de vocês?
Sérgio Ferro: Você fala de qual “Novo Realismo”?
LL: Do “Novo Realismo Francês”.
SF: Mas na pintura, nas artes plásticas?
LL: Na pintura, nas artes plásticas.
SF: Mais ou menos, são movimentos praticamente contemporâneos. O nosso aqui e o deles lá. Havia evidentemente um clima global, mundial, neste sentido a utilização da “coisa”, da “coisa” como tal se encontra, no teatro ou na arquitetura, pouco importa. O movimento, digamos, que mais influenciou, e influenciou a todos, foi a “Pop Art Americana”, do Rauschenberg, e do Jaspers Johns. Eles foram de uma certa maneira, os pioneiros. Talvez não em data, porque sempre você pode encontrar alguém que dez anos antes fez coisa semelhante, mas no sentido de impacto mundial. Nesse período, dos anos 50 e 60, o Departamento de Estado adotou uma política cultural muito eficaz. A União Soviética estava naquela imbecilidade do “Realismo Socialista” ainda e os americanos adotaram uma política muito sábia que foi apoiar francamente, com todos os meios possíveis, as manifestações artísticas mais díspares nos Estados Unidos, desde que: primeiro, não tivessem uma dimensão política muito evidente; e segundo lugar, pudessem ser apresentadas como documentos de liberdade. Deveriam ser as mais diversas, as mais díspares. Ao mesmo tempo que eles, por exemplo, financiavam o Rauschenberg, o Johns, financiavam também o Serra, financiavam também os minimalistas, etc. Não havia uma “estética” do Departamento de Estado, ou uma corrente, mas ao contrário, a linha deles era financiar, favorecer e promover qualquer movimento, qualquer tendência desde de que aparecesse como manifestação de liberdade individual – “cada um faz o que quer” – e que não tivesse um conteúdo político muito escuso.
LL: Mas vocês absorvem isso de uma maneira crítica?
SF: Nós absorvemos esta tendência reintroduzindo a política. Essa foi nossa diferença – estávamos sob a ditadura. Uma diferença relativa. Boa parte da intelectualidade americana antes da guerra de 39-45 era de esquerda, com muitos trotskistas. O Trotski estava no México, era fácil visitá-lo. Gottlieb e vários outros pintores militavam muito. Durante a guerra, há uma despolitização da arte americana – e promoção sistemática da arte despolitizada pelo Departamento de Estado dos EUA. O prêmio do Rauschenberg em 1964, na Bienal de Veneza, coroou esta política cultural. Mas isso não significa que os pop americanos sejam historicamente os pioneiros da nova tendência. Pierre Restany, o porta voz dos neorrealistas franceses, diz que não são. Mas isso pouco importa. Sob o ponto de vista da repercussão, Rauschenberg e Jasper Johns são os iniciadores.
LL: Outra dúvida, já no Brasil, com relação aos conceitos desenvolvidos pelo Mário Schenberg, pelo Waldemar Cordeiro e por você na Pintura Nova. Se você pudesse fazer uma panorâmica, diferenciando os três e se conseguir colocar o Flávio nessa trajetória, seria interessante.
SF: Fico perplexo diante das versões atuais sobre aquele período. O que me lembro tem pouca correspondência com o que tenho lido. Sem duvida os concretistas e neoconcretistas foram artistas importantes e sérios. Mas ao lado dele havia montes de outros, igualmente importantes e sérios. Naquele tempo, ao contrário, eles eram considerados “chato-boys”. O mundo em luta, e eles ocupados com quadrinhos e bichos móveis. Eram quase decepcionantes. Aliás, o mesmo acontecia com Caetano. Hoje tem uma estatura e volume, mas não tinha na época. Muito mais presentes e contundentes eram Chico, Edu Lobo, Vandré. Mas pouco a pouco o balanço muda de lado e fica parecendo que os mais destacados sempre foram o Caetano, Gil e Bethânia.
O mesmo ocorre com as artes plásticas. A maioria ativa e suas várias correntes foram desaparecendo do cenário nas descrições sucessivas daquela história – por razões sérias, não por acaso, o que não quer dizer que há bandidos entre nós. A permanência dos concretos e neoconcretos deve muito à sua tenacidade na comunicação. Os Campos, Haroldo e Augusto, e o Ferreira Gullar foram e são incansáveis na promoção deste movimento. E faziam muito bem. O Wesley, o Fajardo, o Baravelli, começaram a ir no mesmo caminho mas não foram tão persistentes. Muitos não cuidaram da autopromoção e foram sumindo. Simplifico, é evidente, mas fico com a impressão, diante das atuais versões deste período, de uma variante das fotos do Soviet supremo: a borracha passa e sai um, depois outro, sobram poucos.
Não era assim então. Mario Schenberg, Waldemar Cordeiro, Lina Bardi e eu vivíamos colaborando, às vezes brigando, mas juntos. Eram os quatro que estavam na liderança. Com o Schenberg eu participei de inúmeros júris. Júris muito injustos, porque antes de ver a obra a gente queria saber quem estava passando mais dificuldade. Uma assistência social dos artistas plásticos. Lina também estava constantemente lá. Organizamos as “Propostas”, equivalente do “Opinião” do Rio – abertas a todas as correntes contestatórias, sem hierarquias. Não havia estrelas brilhantes solitárias com corte acompanhando. O que importava era cantar a liberdade da arte, toda ela, face à ditadura. O que hoje nos é contado – a saga de alguns “avant-guardistas” geniais – deixa de lado o que mais contava então.
Um dos que foi sumindo é o Flávio. É verdade que ele não era fácil. No tempo em que todos corriam atrás do sucesso, ele encarregou sua vizinha lá do Bixiga como “galerista”. Hoje não tem o reconhecimento que merece – apesar do empenho de sua família. Mas vejam o que ocorreu ontem [abertura da “Ocupação Flávio Império” no Itaú Cultural]: a alegria e a participação geral no atelier de serigrafia. É o Flávio: procura de técnica e linguagem ao alcance de todos – o que não diminui em nada a qualidade do que faz. Tem bons antepassados: segundo Mallarmé, este era o projeto de Manet. Flávio fez isso em tudo que tocou e que não devemos separar: teatro, ensino cenografia, arquitetura e pintura. Não conheço outro artista brasileiro tão coerente no seu espalhamento criativo.
LL: Isso é um traço marcante na obra do Flávio.
SF: E também no teatro. É uma atitude que segue a injunção de Benjamin – e que aplicávamos tanto em arquitetura como na pintura e no ensino. Cada obra ou aula tem que mostrar claramente o que é, mas também como veio a ser. Benjamin afirma que o autor deve ser também um produtor, ensinar a produzir. O prédio da FAU-USP [Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo] é um modelo disso. Estruturalmente corretíssimo, mas Artigas não hesita em didatizar o desenho, exagerar um pouquinho aqui ou ali. Não por formalismo, mas para explicitar com maior clareza os princípios que o orientam.
Em todo trabalho,Flávio procede assim. Em pintura, também o canteiro do quadro permanece no quadro.
LL: Você poderia falar mais sobre essa questão do canteiro no quadro?
SF: A história do quadro tem que estar no quadro. Como ele veio a ser, como ele nasceu, como se desenvolveu. Não só no sentido que as várias etapas da produção têm que deixar algum vestígio, alguma marca. Mesmo que desapareça a produção, a leitura dessa produção deve ser fácil. Mesmo que não deixe todas as pistas, todas as pegadas, todas as etapas, deverá sempre ser possível, com um olhar simples, sem recorrer à mistérios geniais, dramas psicológicos, saber como aquilo foi produzido.
Felipe Contier: O Flávio Motta, em pintura, que é uma referência para você...
SF: Para Flávio Império também.
FC: ...O que o Flávio Império pegou do Flávio Motta?
SF: O Flávio, em especial, pegou duas coisas, eu uma só. O Flávio Motta era um professor genial. Desorganizado – acho que ele nunca planejou uma aula do começo ao fim –, mas um gênio da palavra. De uma sensibilidade literalmente doentia. Ele nos ensinava história da arte com uma regra básica sempre: nós estudávamos Cézanne, por exemplo, e depois a gente ia para o museu e descascava o Cézanne. Desde aquelas análises mais clássicas, decompor as retinhas, as curvinhas, análise das cores, até tentar forçar a barra, exagerar, diminuir, transformar, etc. Ele repetia, eu já falei mil vezes, aquela frase do Mao bem conhecida: “pra conhecer a pera, precisamos estudar, ler, mas uma hora precisamos comê-la”, senão, não vamos saber nunca se é a pera ou a maçã. É a mesma coisa em história da arte. Isso ele fazia, o Flávio Motta, e não só conosco, todos os alunos passaram por esse método: ler, estudar, analisar, mas num momento dado ir enfrentar a obra diretamente.
FC: o Flávio Império fez análise de quadro como você faz, de pintar copiando?
SF: Fez sim. Só que, sobretudo na Europa, como eu lá não podia ser arquiteto, não podia ser nada, então eu fui muito mais pra pintura. Lá eu transformei isso em método de pesquisa para o laboratório Dessin/Chantier. Eu fazia pintura para o laboratório, e me acostumei. Falando de maneirismo eu faço pintura maneirista, falando de barroco eu faço pintura barroca, falando de Van Gogh e faço a pintura do Van Gogh, etc. Eu acho que como método, para mim, sempre foi essencial como historiador. Aí a minha pintura fica realmente esquisita, porque o que é que faz aquele bonequinho todo maneirado, aquela menininha, aquela bundinha, o pezinho, num tempo em que a pintura normalmente faz outra coisa? A minha pintura faz parte do meu trabalho teórico. Claro que depois eu transformo o quadro e vendo. Eu tenho que viver.
FC: Para o Flávio Império isso nunca foi um método?
SF: Não. Ele nunca usou isso como método. Porque o Flávio nunca fez esse trabalho de laboratório teórico. Mas o Flávio Império pegou um outro aspecto do Flávio Motta, que eu acho importantíssimo: proximidade com as coisas, com o povo, com simplicidade e uma grande ironia, uma grande alegria. O Flávio, Flávio Motta, vê delicadeza, sensibilidade, no menor gesto do povo. Me lembro de uma aula que ele deu sobre cartão postal. O cara que chega aqui na rodoviária, desembarca do pau de arara, demorou três meses para chegar aqui, e quer dizer para a mulher... Não sabe escrever, não tem nada; então ele compra aquele cartão postal com coração fazendo bing bing, dizendo “te amo querida”, “sou seu para sempre” e manda pra mulher. Esse cartão muda nessa hora. Não é mais aquela coisa kitsch, vulgar, idiota, não é mais o mesmo cartão, de jeito nenhum. Ele entra num outro circuito, ele está carregado. E o Flávio, o Império depois do Motta, faz muito isso. O Flávio pega um cacho de banana e já começa a ver o universo lá dentro. Eu sou incapaz de fazer isso. Ele tem essa empatia com o dado elementar, com o dado fundamental. E muita ironia também. O Flávio representou o Brasil em uma Bienal, não me lembro mais, na América Latina: fez uma série de quadro lindos. Era o período mais agudo da guerra do Vietnã. Pegou joguinho de soldado de chumbo e gravou lindamente no gesso, depois fez um contramolde, um relevo extraordinário. Eram quadros assim: a estátua da liberdade meio caricata e o nome do quadro é “Pena que ela seja uma puta”.
O Flávio Motta tem um trabalho, que um dia vai ser descoberto. Todo dia faz um diário. Sistemático. Só que é um diário desenhado, não é um diário escrito. E segundo o dia, segundo o que acontece, segundo o que ele quer dizer, ele passa da grafia do Steinberg, por exemplo, no dia seguinte, em função das coisas, à do Goya, no terceiro dia, Rembrandt. Extraordinário o diário visual do Flávio Motta! É fantástico, porque ele faz isso há trinta anos, todo o dia.
Além disso o Flávio Império e o Flávio Motta participaram em muitas manifestações juntos, de arte. Os dois, o Flávio Império e o Flávio Motta, iam para a Av. Brasil, não sei onde, com as bandeiras que pintavam. Eu nunca conseguia fazer isso, ia morrer de vergonha, me esconder debaixo do bueiro.