Sabrina Souza Bom Pereira e Abilio Guerra: Como diretor do IAB, o senhor participou de algum congresso?
Rodolpho Ortenblad Filho: Sim, estava na delegação que foi para o Congresso da União Internacional de Arquitetos, ocorrido em Cuba. Foi na véspera da revolução de 1964; se não me engano, foi em setembro de 1963. Eu tenho até uma bolsa que tem as datas do congresso. Cuba organizou um congresso de arquitetura internacional que continuaria no México. A primeira etapa da viagem foi complicada; por causa da Guerra Fria, os aviões não podiam passar sobre o território norte-americano. Então, fizemos o seguinte: o Instituto de Arquitetos, dominado então por elementos de esquerda, conseguiu da Air France passagens até Paris. Eu, que era diretor do IAB, fui convidado. Os estudantes participantes do Congresso foram de navio.
SSBP/AG: Quais arquitetos foram neste congresso?
ROF: Ruy Ohtake, Paulo Mendes da Rocha, Pedro Paulo de Melo Saraiva e muitos colegas do Rio de Janeiro também. Foi uma viagem cheia de etapas. Nós chegamos a Paris e ficamos em um hotel bom, destinado ao pessoal do IAB; dois dias depois, fomos para Praga, onde tivemos que aguardar a vinda de um avião que nos levaria a Moscou. Se não me engano, era um Tupolev, avião quadrimotor. E quando nós entramos neste avião em Praga, constatamos que não havia bancos para sentar, mas apenas uma caixa no meio do que deveria ser a cabine de passageiros. Era uma viagem muito longa e nós dormíamos em cima das malas. Em Moscou, tivemos que aguardar a passagem de um furacão em um alojamento militar, com ordem terminante de não sair. Ali havia uma parte para mulheres e outra parte para homens, com beliches e banheiros separados. Conhecemos alguns africanos que estavam fazendo curso de pilotagem de jato e fizemos amizade com um deles, enorme, com quase 2m de altura, que era da tribo Massat. Então fugimos do alojamento, guiados por ele.
SSBP/AG: E vocês fugiram para onde?
ROF: Para o centro de Moscou, para a Praça Vermelha. Nós fomos até uma grande galeria, com vários andares, chamada Boom. Era o único lugar que vendia coisas um pouco mais sofisticadas – as vestimentas, em especial os sapatos, que os russos podiam comprar na época eram muito feias. Eles usavam uns sapatões horrorosos, tanto que no metrô de Moscou os russos queriam comprar os keds e os mocassins que estávamos usando, pois eram artigos melhores. Na galeria Boom, em pleno inverno, se tomava sorvete com champagne, que era uma das coisas mais saborosas que eles tinham à disposição. Nesse lugar, uma espécie de galeria com vários andares, muito bonita por sinal, circulava o dólar.
Voltamos para pegar o ônibus e nos demos conta que havíamos perdido a hora de voltar ao alojamento. Já era 22h30 ou 23h e não havia mais nenhum ônibus disponível, pois neste horário iam todos para o centro, para a Praça Vermelha, e só começariam a circular novamente no dia seguinte. E para voltar? Fazia muito frio, talvez 2 ou 3 graus abaixo de zero, e os cariocas não levaram agasalhos. Decidimos ficar junto aos motores ainda quentes dos ônibus e destacamos alguns colegas para procurarem táxis, que nos levariam de volta para o alojamento, decisão que se mostrou acertada.
SSBP/AG: E partiram para Cuba no dia seguinte?
ROF: Não; esperamos mais um ou dois dias até haver condições climáticas para partirmos. Entramos novamente no grande avião, com o caixotão enorme no meio da cabine; essa caixa era frigorífica e acondicionava antibióticos e outros medicamentos que eram levados para Cuba; nós nos acomodamos como deu, sentando em cima das mochilas, das malas... O trajeto de Moscou até Cuba seria pelo círculo Ártico e deveria ser uma viagem sem escala, mas, por algum motivo, houve uma parada em Murmansk, uma cidade muito fria no círculo Ártico. E na Europa era inverno... Como no avião não havia alimento algum, nos permitiram descer e entrar na cafeteria do aeroporto, onde conseguimos comer alguma coisa, tomar um café quente, suficiente para seguir viagem. Saímos de Murmansk com 30 graus abaixo de zero e chegamos, quase vinte horas depois, em Cuba, em Havana, com 38 ou 40 graus positivos, uma mudança terrível de temperatura.
SSBP/AG: Como foi a chegada em Cuba?
ROF: Os diretores do IAB ficaram no Havana Hilton, um hotel moderno que estava em bom estado de manutenção, mesmo que tivesse algumas coisas quebradas. Depois da Revolução seu nome foi trocado para “Havana Libre”. As camareiras e demais empregados eram todos cubanos e nos confidenciaram muitas coisas: a partir das 21 horas era obrigatório permanecer dentro de casa, não poderia haver reuniões em residências com mais de dez pessoas, cada quarteirão tinha um fiscal indicado pelo regime e outras coisas do tipo.
Os cubanos queriam demonstrar que o país estava bem organizado e nos proporcionavam muitas coisas especiais. A comida do hotel, por exemplo, era de primeira qualidade, mas tudo vinha de outros lugares – presuntos, enlatados, embutidos e até pão eram importados de Moscou ou do bloco soviético. Enquanto isso o povo... não digo que passava fome, mas havia uma restrição alimentar muito grande. Os cubanos eram obrigados a usar tickets de racionamento para tudo: alimento, vestimenta, sapato etc. Para se conseguir uma bicicleta, o cubano entrava em uma fila que podia durar um ano, um ano e meio; automóvel, nem se fala, e nessa época os automóveis, todos norte-americanos, já estavam em estado deplorável. A revolução tinha quanto tempo? Cinco ou seis anos.
Recebemos um boleto que nos permitia usar táxi, que parava na porta do hotel e nos levava para qualquer destino. Eu e Vilma, que me acompanhava, saímos bem cedo de manhã e pegamos um táxi e fomos até Varadeiro, onde passamos um dia inteiro. Varadeiro não tinha hotelaria, mas apenas algumas instalações muito simples, pois estavam iniciando o turismo, uma condição geral por lá. O motorista de táxi nos mostrava as residências e comentavam coisas assim: “olha, aqui era a residência de um milionário, agora é uma escola de jovens”. A revolução transformou as grandes residências dos ricaços em clínicas e outros usos. Em outro momento, ele nos disse: “eu vou levar vocês para conhecer uma granja, avícola, que é a última novidade aqui”. E nos levou em uma granja avícola, que não tinha galinhas!!! Bem, havia lá umas trezentas galinhas, em uma instalação para mais de vinte mil galinhas. E o motorista completou: “aqui do lado tem uma granja de vacas leiteiras”. Como tinha muito interesse nessa área, eu fui até lá e encontrei apenas umas trinta vaquinhas... O leite era importado, tudo era importado. A Rússia sustentou Cuba durante muitos anos, enviando alimentos, medicamentos e até roupas.
SSBP/AG: Como foi o Congresso?
ROF: Eu me inscrevi para ministrar duas palestras. Uma delas foi motivada pela regulamentação proposta pela Prefeitura de São Paulo, que começou a limitar a construção em até quatro vezes as áreas dos terrenos, dependendo do zoneamento. Eu comparei esta lei com o que aconteceu em Copacabana, que não fez nenhuma restrição ou limitação para as construções, o que resultou em um bloco contínuo, com um prédio grudado no outro; ou seja, da praia para as ruas posteriores não há ventilação. Em São Paulo se propunha algo diferente, com recuos frontais e laterais. As cidades, de certa forma, são muito diferentes. Na Europa, por exemplo, as construções encostam umas nas outras. Paris é assim, apesar de ter um limite de gabarito de altura. Em São Paulo, além de limite de gabarito havia a obrigatoriedade de recuos laterais e índices de ocupação que variavam de duas a quatro vezes a área do terreno. Eu era contra o que foi feito em Copacabana. Eu morei lá até completar dezesseis anos, na época do boom imobiliário, quando a prefeitura permitiu que construísse os prédios grudados um no outro de frente para o mar, um absurdo. No Guarujá e em Santos a situação é muito melhor, pois existem limitações de ocupação do terreno... Eu fazia essa preleção, mas quando eu estava no meio, o público começou a sair. E sabe por que? A maioria dos presentes no Congresso era de esquerda, tanto estudante como dirigentes, e só queria temas políticos, não queria saber de arquitetura.
A segunda palestra marcada era sobre o clima e houve bastante interesse. “O Brasil é continental” – falei, começando a palestra – “talvez vocês não saibam, mas Brasil é um continente que tem desde o clima amazônico, tropical ao extremo, até um clima de temperado frio no Rio Grande do Sul, inclusive a topografia e a vegetação são completamente diferentes”. Pena que eu não tivesse imagens para projetar, pois não levei, mas essa palestra causou bastante interesse.
SSBP/AG: Então, predominou a discussão política?
ROF: Tem um precedente que ilustra o que encontraríamos em Cuba. Antes de eu ir para esta viagem fui procurado pelo chinês Max Ouang, sócio do Marino Barros, que era meu construtor. Ouang, que era muito amigo do cônsul americano em São Paulo, me disse: “o cônsul quer conversar com você; ele quer que você faça uma espécie de documentário sobre o evento em Cuba”. Eu perguntei: “Ele quer que eu banque o espião? Eu não vou fazer isso de forma alguma”. E não fiz. Ele queria que eu passasse informações para o consulado norte-americano, mas eu disse que não, “afinal o Brasil é um país independente, eu sou neutro, não vou me meter nisso”. No Congresso, só se falava de política. Eu fui um dos únicos brasileiros que se inscreveu para fazer palestras, os outros passeavam ou faziam comícios. Todas as palestras tinham um caráter político, com frases do tipo “porque a burguesia domina, a arquitetura é muito limitada para o comunismo...”
SSBP/AG: Depois vocês foram para o México?
ROF: O congresso continuou no México, que já era uma cidade caótica em 1963. Você não calcula o trânsito naquela época... No México havia mais liberdade e a cultura mexicana é muito parecida com a nossa. Conheci um museu maravilhoso, o Museu de Antropologia, que era lindo! O zóculo – a praça principal, onde está a matriz, principal igreja mexicana – é uma área enorme, que estava afundando, pois tudo aquilo foi construído em cima de pântano. Como a Cidade do México foi construída sobre um tipo de aterro, parte do subsolo era muito frágil. Para se entrar na catedral era necessário descer degraus, porque ela tinha afundado. Como era uma estrutura muito bem construída, ela não rachou, mas ia afundando devagar. Uma cidade moderna, com parques municipais muito bonitos, canais ajardinados, avenidas modernas. O trânsito era horrível, pesado.