Luciano Barbosa: Quais as construções públicas ou privadas, incluindo edifícios, vias, espaços públicos, infraestruturas diversas, etc. são mais marcantes na cidade de Natal? O senhor acredita que a população em geral se dá conta da existência dessas construções marcantes?
Moacyr Gomes: Tenho percebido um absoluto alheamento, não só dos arquitetos e urbanistas, como dos habitantes em geral, em relação à cidade e à sua historia. Essa é uma característica lamentável. Por ter vivido tanto em Natal e ter nela minhas principais raízes, sofro profundamente com isso porque vejo que, a cada geração, isso piora. Existe um cidadão fazendo um trabalho hercúleo de levantamento de memória em relação à Rampa, o senhor Augusto Maranhão, que não conheço pessoalmente, mas acho-o admirável. Ele não é arquiteto. É um empresário de transporte e está fazendo um trabalho importante, talvez sem recursos, mas está conseguindo resultados.
LB: Ao que parece os esforços dele resultaram no projeto de recuperação da Rampa.
MG: Parece que vão restaurar o museu da Rampa! São tantos os desencantos, que estou procurando, já que falamos em falta de memória, sair da memória da cidade.
LB: Vai ser difícil o senhor sair da memória da cidade tendo em vista a quantidade de projetos importantes que fez ao longo de seis décadas de atuação.
MG: Na realidade, creio que sou um dos primeiros arquitetos a chegar a Natal depois de Palumbo. Ele chegou em 1929; eu, em 1955. Nesse longo hiato, a cidade teve a sorte de contar com a participação do Escritório Saturnino de Brito, que prestou um serviço inestimável à cidade, hoje quase esquecido. Tem um livro mais ou menos recente de sua trajetória em Natal produzido por professores da universidade, muito bom, que resgata parte da evolução da cidade antes da existência da CAERN, já que até então os serviços de saneamento de várias cidades do Nordeste eram concessões ao Escritório Saturnino de Brito, que se valia do que havia de melhor em termos profissionais da época. Deixou importantes obras, entre elas a Praça Augusto Severo, que além de bonita tinha o objetivo de corrigir o problema de alagamento do mangue do Potengi que chegava às proximidades do Teatro Alberto Maranhão. Lembro-me dos canais de drenagem interligados por pequenas pontes muito charmosas e o coreto, que davam aquele aspecto encantador. Parece que ainda existe um resquício de uma delas, após tantos anos de desamor e indiferença dos natalenses. São imagens de infância. Pois bem, voltando ao tema, esses arquitetos fazem parte da história de nosso desenvolvimento urbano. A praça foi projetada nos moldes franceses, e, por coincidência, em 1953, eu morava na Praça Augusto Severo, vizinho à Praça Paris, no bairro da Glória, Rio de Janeiro, que tinha linhas semelhantes, sendo muito maior. Eram todas muito bonitas e indispensáveis, num tempo em que as pessoas ainda podiam frequentá-las com segurança. As cidades vão mudando, e lamentavelmente suas memórias vão sendo esquecidas. Aí, nos meus devaneios de nostalgias, caminho nesses dois cenários, ambos com o nome de Augusto Severo, em homenagem a um grande potiguar que ficou na história da navegação aérea, um no Rio de Janeiro, onde vivi o melhor de minha juventude, outro em Natal, que abrigara minha infância e adolescência e mais tarde minha maturidade. Belos tempos, bela gente! Bom, pintei o quadro emocional. Vamos voltar a organizar, de acordo com a idade, as mais antigas: o Teatro Alberto Maranhão, por sinal irmão do citado Augusto Severo, é um deles, sem dúvidas, que eu conheci antes da reforma, ainda como Teatro Carlos Gomes, onde aconteceu o início da Intentona de 35, e eu morava nas proximidades. Quase o tiroteio me pega no meio da rua com oito anos de idade.
LB: O teatro é de 1904, mas foi logo reformado com projeto de Herculano Ramos, não é isso?
MG: Houve uma primeira reforma, e depois outra nos anos 50 feita por Meira Pires, o teatrólogo, que era meu amigo particular e meu companheiro nas peladas juvenis. A reforma foi bem feita e consta ter sido orientada por um cara que não era nem arquiteto. Era um desenhista, apaixonado por arquitetura, que andou uma temporada por aqui e fez alguns projetos interessantes. Então um dos seus trabalhos teria sido a reforma do teatro. A praça, evidentemente, como eu conheci, era marcante. Nos anos trinta, o dirigível Graf Zeppelin sobrevoou Natal, baixou sobre a estátua de Augusto Severo e deixou cair um ramalhete de flores. Hoje, é o caos. De praça não tem mais nada. Voltando a andar pela cidade, o Forte, evidentemente pelo seu aspecto histórico, é o marco mais importante de todos. Posteriormente, o Forte teve nos anos 1960 e 1970 uma reforma dentro do projeto de preservação e aproveitamento turístico. Procurou-se dar uma utilidade ao Forte do ponto de vista de atrair a visitação. Eu fiz parte do grupo de arquitetos que fez a primeira ponte de aproximação na Praia do Forte. Eram João Maurício e o saudoso Daniel Hollanda, e eu vinha chegando naquela época. Eu retornei a Natal nos anos 50, depois voltei para o Rio. Quando voltei novamente, com a intenção de ficar aqui, já tinha João Maurício, Daniel Hollanda, Jorge Vargas Soliz; já tinha Raimundo Gomes e Manoel Coelho, José Maria Fonseca, os três últimos já falecidos; pouco depois veio Marconi Grevy, além de um valoroso grupo de desenhistas que também deram grande colaboração a esse importante momento histórico no desenvolvimento da cidade e sua arquitetura. Então, juntos, fizemos um trabalho de recuperação com essa ponte, e tivemos que submeter à aprovação de Lucio Costa. Aquele projeto era nosso, como já falei. Ela fazia um bom trecho reto, e uma pequena curva, não lembro bem. Sempre recomendo a quem queira fazer um levantamento histórico desta cidade, que procure o João Maurício, que considero uma espécie de arquiteto/historiador de Natal. Quando aqui retornei, me associei com João Maurício e Daniel Hollanda, e abrimos o primeiro escritório profissional de arquitetura em Natal, que se chamava PLANARQ. Saindo então do Forte, chego à Ribeira, berço da história, que tem ainda o edifício creio que chamado Fabricio Pedroza, próximo aos Correios da Ribeira, ali na Av. Hidelbrando de Gois. Foi o primeiro prédio de quatro ou cinco pavimentos que vi em Natal, que é uma arquitetura muito interessante, com características do modernismo. Depois vem o edifício dos Correios e Telégrafos, também marco histórico considerável; aí vêm a velha Ribeira, a Dr. Barata; tudo aquilo ali é história. É a própria história da Natal paradisíaca. A Estação Ferroviária, sem dúvidas, é outra história que dá um livro, por sua grande participação no desenvolvimento do estado. Ali, na Ferreira Chaves, tem um prédio também marcante, que é o prédio do antigo IPASE, projeto de Rafael Galvão, arquiteto de muito renome no Rio de Janeiro, inclusive foi um dos arquitetos do finado Maracanã. O prédio é muito interessante, com fortes características do modernismo, com alguns exageros na escada toda em vidro, mas só que forrada de vidro no lado poente de maneira que quando se sobe a escada fica-se exausto. Inclusive, já trabalhei nele, no quinto andar, quando era o DNOCS. O prédio da esquina da Receita Federal, em diagonal com o Banco do Brasil da Ribeira, para mim, tem uma beleza ímpar e foi projeto de um desenhista pernambucano, que veio da Escola de Belas Artes do Recife, chamado Souza Lélis, que desenhava muito bem, bico de pena de Ingres; era fabuloso. Eu vi o projeto original, quando fui levado, pelo meu querido amigo Roberto Freire, ao escritório dele, na Travessa Venezuela, por trás da Tavares de Lira, num primeiro andar. Uma salinha deste tamanho, uma prancheta ali, muito desenho na parede, enfim, um ambiente modesto para abrigar um homem com tanto talento.
LB: Então ele não era arquiteto, era desenhista, era autodidata?
MG: Era desenhista e tinha curso de modelagem e detalhes ornamentais na Escola de Belas Artes de Recife, curso esse que fazia parte do currículo das Belas Artes desde a chamada “Missão Francesa” de D. João VI, que deram origem às escolas de Arquitetura. Nessa transição, herdou-se toda aquela elite de velhos professores de modelagem, de desenho artístico. Ainda cheguei a ser aluno dos professores Del Negro e Ubi Bava, no curso de arquitetura da antiga Escola de Belas Artes do Rio. Sou fruto dessa época, alcancei o que restava da Semana de 22, de Artigas, de Varchavchik, Atílio Correia Lima, desses grandes vultos da história brasileira. Todo esse legado marcou definitivamente meu destino profissional. Levei muitos anos me esforçando para deixar de copiar Niemeyer. Uma vez me convidaram para trabalhar no escritório dele; aí eu pensei direitinho e conclui que não passaria de uma modesta cópia do mestre.
LB: Iria ficar na sombra de Niemeyer?
MG: Eternamente! Aí é inevitável, em arquitetura, quando você quiser fazer alguma obra importante, evite olhar o mesmo tema feito por algum arquiteto famoso, porque você estará inevitavelmente influenciado. Você entendeu meu raciocínio. Fiz força para cortar o cordão umbilical com Niemeyer, um cara fantástico. Aí, se fosse chamado a fazer um museu, como o de Niterói, por exemplo, que é uma das obras mais lindas da produção desse gênio, teria que tentar um partido arquitetônico oposto, se ele fez redondo eu tentaria de fazer quadrado; ao invés de copiá-lo, teria que ter a audácia de tentar concorrer com ele, mas no bom sentido.
LB: E a arquitetura moderna brasileira como momento de afirmação cultural do país?
MG: Foi um momento em que Oscar, Lucio Costa, irmãos Roberto e outros de igual valor conseguiram despertar na Europa e nos Estados Unidos o respeito pelo Brasil como país de cultura, porque depois da Semana de 22, quando os arquitetos brasileiros começaram a aparecer na Europa, o europeu disse: “ora, aquilo não é terra só de índio, de jacaré, de cobra andando no meio da rua, não! É uma terra de gente civilizada.” Aí vieram os grandes expoentes em todos os ramos da cultura, trazendo para o Brasil um período fantástico de afirmação cultural que durou até a atual fase em que somos absolutos donos da “Medalha de Ouro” da corrupção. Então, é justo que se cobre o respeito das gerações posteriores para esses valores que já tivemos. Mas é claro que eu vou acreditar nos que vêm depois. Pode ter coisas do mesmo valor só que em moldes diferentes, mas a história não pode se acabar. Voltando à velha Ribeira, das modernistas eu citei algumas, mas tem ainda o Grande Hotel, cuja inauguração eu assisti, com 10 anos de idade ou coisa parecida, já que eu morava na Ribeira, quase a 100 metros do hotel.