Luciano Barbosa: Quais construções são mais marcantes em Natal no que diz respeito à qualidade do projeto? Refiro-me à qualidade funcional, arrojo estrutural, qualidade nos aspectos de conforto ambiental, entre outras.
Moacyr Gomes: Eu vou lhe dizer uma delas que me agrada muito, a Capela do Campus. É um projeto lindo, tem o caráter modernista, logicamente porque foi projetada pelo João Maurício, que viveu toda a influência daquele movimento cultural. Eu acho a Capela uma bela arquitetura. Entre outros marcos, o Centro Administrativo merece destaque por sua funcionalidade e sua marca modernista e um partido urbanístico generoso em espaços livres e composição paisagística. Posso dizer que foi um dos bons projetos de que participei em parceria com o saudoso e excelente arquiteto Ubirajara Galvão. Hoje, infelizmente, mal reformado, remendado e ultimamente invadido por um gigantesco volume arquitetônico de um estádio em construção que irá transformá-lo em meras edículas secundárias e inexpressivas, será, no futuro, demolido para dar lugar a um gigantesco complexo imobiliário, conforme anunciado pelo Governo, há três anos, e ainda não desmentido. Tudo isso depõe contra a cultura potiguar. Aliás, eu tive a sorte de só ter tido como parceiros excelentes arquitetos. Criamos o UM, anos depois que fui sócio de João Maurício e Daniel Hollanda na PlanArq. Eu saí da PlanArq e voltei para o Rio; depois retornei a Natal e me associei com Ubirajara. Um outro projeto da UM, que pode ser citado, é o Senac, aqui na rua Capitão Mor Gouveia.
LB: E sobre o Machadão?
MG: Cabe ainda destaque, desculpe o marketing, para o falecido Machadão, por seu destino trágico, e por ser, na época, o que havia de mais avançado em forma arquitetônica. Foi o projeto de minha conclusão de curso, foi um fato inédito. Foi o seguinte. No segundo ano da faculdade, eu fui aluno do professor Pedro Paulo Bernardes, que era um dos arquitetos do grupo do Maracanã. Estávamos em 49, a poucos meses da Copa de 50. O Maracanã estava com o cronograma atrasado e, por isso, estava fechado a estranhos. Então, numa das aulas, pedi ao professor que me facilitasse o acesso, e ele gentilmente me atendeu. Resumindo, terminando o curso, me encontro com ele, que me reconheceu, e sugeriu para meu trabalho de conclusão e despedida o projeto de um complexo esportivo completo, recomendando ainda que, de preferência, este fosse voltado para a minha cidade. Aí eu liguei para Natal e consegui um levantamento topográfico dessa área onde hoje existe o Centro Administrativo do estado, que tem cerca de 50 hectares, mas, naquela época, só tinha, para o estádio, 17 hectares, porque o resto ainda era ocupado por Saturnino de Brito, para os serviços de saneamento em transição para a CAERN. O governador Dinarte Mariz prometeu que doaria o terreno pra construir o estádio, mas na condição de que fosse arranjado um documento que o livrasse de uma possível crítica dos seus adversários políticos, dizendo: “Estou em uma campanha política e meus adversários vão dizer que o Governador tá acabando com a água do povo para dar para jogo de futebol”. Então fui para o Rio e trouxe o documento. Conseguimos a doação, foi feito o estádio, 40 anos depois ocorreu sua estúpida demolição, veio o desencanto, lá se foi outro pedaço de mim e o desprezo à memória daqueles valorosos homens que o fizeram com o único propósito de prestar serviço à comunidade. Mas, voltando à história, quando foi inaugurada a obra em 72, o Governador Cortez Pereira fez um discurso, em pleno gramado, dizendo: “Isto aqui é um poema de concreto”. Dias depois, veio o famoso João Saldanha e publicou em sua coluna no Globo do Rio: “Acabei de vir de uma cidade linda e vi um estádio muito bonito que o Governador chamou ‘poema de concreto’, e acho que quando concluído deverá ser uma obra prima”. Muita gente ficou pensando que o “poema de concreto” era daquele grande jornalista, mas na realidade foi uma tirada do espírito romântico desse inesquecível Cortez Pereira. Mas tudo isso não impediu o ingrato esquecimento daquele notável homem público, nem me deu medalha de ouro; me deu foi o desencanto de vê-lo demolido. Não sei se era um poema, mas era um bom projeto. Merece destaque in memoriam.
LB: De certa forma, o Machadão era um marco que identificava a cidade já desde o momento em que foi construído, não?
MG: Sim, ele passou a figurar em todas as bancas de jornal, vendiam fotografias para turistas, cartões postais, etc. Mas o detalhe mais interessante de sua visão, para quem vinha descendo de carro da Candelária, na Avenida Prudente de Moraes, nas imediações da Rua Raimundo Chaves, era o movimento que aparentava o símbolo matemático de infinito se mexendo, na medida do deslocamento do veículo.
LB: Como uma ola?
MG: Isso mesmo, parecia uma ola.
LB: Ele existiu por 40 anos como uma referência da cidade. Tentaram pelo menos evitar sua destruição?
MG: No princípio, sim, parecia uma insanidade, muitos tentaram, tanto pessoas como jornais, instituições públicas, políticos, etc., depois apareceu a dinheirama e seu poder imbatível, anestesiou o povão em nome de um legado virtual e foi tudo para o espaço. Nada do que se disser agora resgatará o que foi surrupiado do patrimônio público, os malfeitores ficarão impunes e o povo pagará a conta. Para mim, restou a firmeza e a lealdade dos muitos cidadãos e amigos corajosos e independentes, meus colegas arquitetos contemporâneos, enfim, todos aqueles que me deram solidariedade, embora me reste a tristeza do silêncio decepcionante dos órgãos que congregam minha categoria profissional, como o Clube de Engenharia e o Instituto de Arquitetos do Brasil. Por essa razão, resolvi me afastar de tudo.
LB: Mas houve manifestações! Pode não ter havido formal, mas houve. Inclusive na universidade muita gente foi contra...
MG: Sim, dos jovens sempre recebi apoio. Basta dizer que uma turma formada em janeiro do ano passado me honrou com o título: Turma Arquiteto Moacyr Gomes da Costa. Isso foi no momento que já haviam iniciado a demolição, e o convite trazia na capa a foto do Machadão, obviamente, a única maneira daqueles jovens de demonstrar seu repúdio àquela insânia. Outras quatro turmas anteriores já tinham feito o mesmo. Estou me queixando apenas dos outros mais maduros, que conviveram comigo e escafederam-se de mansinho. Entendo que aos jovens falta experiência, mas sobra dignidade. Mas, queixumes não são o objetivo desta entrevista, me desculpe o desabafo.
LB: Poderiam ter feito uma demolição parcial?
MG: Claro, podiam ter deixado pelo menos um pórtico envolvido por um verde paisagístico como testemunho da competência de nossa engenharia estrutural nativa. Foi uma coisa estúpida! Uma agressão ao bom senso e desprezo à memória de alguns de nossos engenheiros que já se foram. Poderia até ter sido totalmente poupado, servindo como escola de formação de atletas, se construíssem um novo estádio em outro lugar. Se tivessem deixado cinco pórticos pelo menos, poderia ter se transformado num anfiteatro ao ar livre sem nenhum prejuízo para a construção de uma outra arena, porque caberia no espaço disponível.
LB: Pois é, e Natal carece deste tipo de espaços, inclusive para grandes shows.
MG: Conclusão, não havia necessidade de demolir, não há explicação, senão... Deixa para lá, há muito mais coisa obscura por trás de tudo isso, do que imagina nossa vã filosofia. É que talvez aquilo ali fosse um marco testemunhal do crime cometido contra o patrimônio público, aquela mesma aberração que cometeram na África do Sul, em Cape Town, chegaram a cogitar da demolição do “Elefante Branco”. Pela inutilidade e falta de recursos para conservação, por sinal é o mais bonito de todos. No ano passado, recebi de um jornal o convite para receber o prêmio Cultura Potiguar, obviamente face ao impacto do irracional extermínio do Machadão. Eu disse: me desculpe, se eu tivesse contribuído para a cultura potiguar, essa “cultura” não teria permitido sua demolição. Me parecia uma espécie de abraço de pêsames ou uma espécie de complexo de culpa. “O senhor não é o arquiteto que fez?” “O senhor está convidado a participar desse programa.” Recusei por questão de coerência e autorrespeito, agradeci à jornalista que convidou e aos arquitetos que me indicaram. Prefiro não citar nomes por respeito a ela e aos colegas que me indicaram, que estariam jogando um bálsamo nas feridas, quer por sincera admiração pessoal ou estavam apenas cumprindo seus deveres. De qualquer forma, falavam em nome de uma sociedade passiva e acomodada, que vive de aparências. Neste patamar de minha vida, nenhum troféu me traz qualquer emoção, significando apenas um esparadrapo em cima de cicatrizes difíceis de curar, e espero que não me tomem por arrogante. Ou que isso signifique empáfia, esnobação ou soberba, vez que não sou ninguém para esnobar a cultura de ninguém. Me disseram: “Tudo bem, mas agora os arquitetos que lhe escolheram querem lhe fazer uma visita e levar o troféu”. Respondi: recebo a visita com o maior prazer, mas deixem o troféu para lá. Aí mandei uma mensagem a cada um deles, agradecendo e justificando. Na semana passada um vereador meu amigo me disse: “Eu estava na festa que você não compareceu”. Aí aproveitei para agradecer-lhe por ter sido um dos poucos políticos que tentaram evitar aquele crime contra o patrimônio do povo, naquela farsa do Complan, quando tentou vistas do processo e quase foi agredido. E, posteriormente, no plenário da Câmara dos Vereadores, junto com mais cinco colegas, escapou do opróbrio que desmoralizou aquela casa legislativa, quando esta agachou-se diante de interesses escusos. Assim, você fica sabendo por que não compareci àquela solenidade. Mesmo entendendo que lamúrias não são boa estratégia para aparecer na foto, acho necessário que a sociedade reflita sobre o que aqui está relatado. Enfim, dos três marcos que você me pediu, citei o Forte, o Pórtico e o Machadão, por coincidência participei de todos, mas não tome como autopromoção. Considere que a referência é apenas fruto de mais de 50 anos que dediquei a esta cidade sem que ela me deva nada. Uma das escolhidas já não existe mais, agora a escolha é sua.