Mariana Wilderom: Vocês fizeram o projeto em um mês?
Carlos Pardo: Sim! Bem, a partir da construção do metrocable, a administração de Fajardo se dá conta de seu potencial, de como poderia recuperar um bairro que durante os anos 80 e 90 foi o bairro mais violento da cidade [o metrocable ficou pronto em 2003]. O lugar, antes, era uma favela impossível de se chegar, era preciso ir com alguém conhecido do bairro junto contigo, do contrário não era possível ir.
Então, a partir do metrocable se abre uma janela, uma possibilidade de sair e entrar facilmente e também despertou a consciência de seus habitantes, que se sentiram mais integrados à cidade, que por fim estavam superando a sensação de viver na periferia.
Então tudo começou a mudar um pouco, do ponto de vista social. E é aí que a administração de Fajardo chega com uma série de projetos. Um deles foi uma ponte que liga dois bairros: Andalucia e Francia, que eram dois bairros inimigos, literalmente, pois atiravam uns nos outros. Essa ponte é um símbolo de união.
Então fizeram intervenções de todo tipo: recuperação de espaços públicos de toda esta via que vai subindo com metrocable, conectaram bairros que eram antes inimigos e não podiam nem se ver.
Relocalizaram habitações que estavam em áreas de risco, em quebradas que caíam e construíram novos edifícios. Mas tudo no mesmo bairro e isso tem um sentido social muito importante. Porque em muitas cidades retiram pessoas de um lugar colocando-as do outro lado da cidade. Isso acaba com as raízes de uma família, com seus amigos. Então neste caso, eles removeram as pessoas para 30, 50 metros de distância de seus lugares originais.
Então metrocable já chegava aí. Hoje esta linha conta com uma extensão que vai até o parque Arví.
Quando começamos a construir a escola, a Biblioteca España estava quase construída, mas seus projetos começaram quase na mesma época.
O terreno fica a uns 500 metros da estação de metrocable, mas não se pode vê-lo da estação. Já existiam dois colégios antigos que também eram um pouco inimigos. Isso era um problema social da comunidade. E o projeto deste colégio também visava contribuir para recuperar o tecido social.Pois por conta da violência todos desconfiavam de todos [mostrando o terreno original na tela].
Então existiam estes dois colégios e um pequeno lote no meio, vazio, mas com uma topografia muito acentuada. Havia dois caminhos que conectavam este bairro. A via principal estava em cima, se entrava pelo lote por cima e a parte de baixo era acessada por esses dois pequenos caminhos. Então nos pareceu muito importante manter estas conexões. Este foi um ponto de partida. Nos demos conta também, quando visitamos o lote, da condição de mirante que este terreno tinha. Era preciso tirar proveito disso.
Daí que pensamos essa arquitetura do lugar. O lugar começa a lhe dar pistas, a lhe dizer o que deveria ser aproveitado, os caminhos. E daí que é preciso que o projeto arquitetônico pertença unicamente a este lugar. Eu considero que a arquitetura que fizemos, pertence a este lugar, não se pode ser feita em outro. Fizemos um passeio pelo bairro buscando elementos arquitetônicos urbanos, entendendo um pouco como vive essa gente, como eles constroem no bairro, por que construir assim?
A topografia tão forte obriga-os a fazerem escadas para subir, a ter ruas escalonadas, que permitem também que as casas se relacionem muito: com suas portas abertas, ouve-se a música tocando na casa. Além disso a família constrói um piso e quando os filhos se casam, constroem outro andar acima e é assim que vão aparecendo as escadas, isso é muito latino americano.
Foi por isso que fizemos essa pesquisa dos elementos que são próprios do lugar, isso tem um significado. Queríamos que o projeto estivesse cheio de elementos locais para que as pessoas se apropriassem dele. Seguramente, resultaria num edifício moderno, melhor elaborado...
Mas nos interessava muito que o edifício pertencesse à comunidade, que rapidamente se apropriassem dele. Não era justo chegar com um edifício e fazer isso [faz gesto de “pouso de um objeto”]... que as pessoas iam dizer “isso não nos pertence, isso não é nosso, não o entendemos, não consigo entrar, como se usa isso?”
Se você chega com uma arquitetura importada, holandesa, finlandesa ou japonesa, não vão entender o que está se passando. Então fizemos esse passeio em que olhamos o que nos interessava e nesse bairro, para eles, a cidade sempre está lá, eles a tem como pano de fundo. Então aparecem esses espaços que marcam a paisagem urbana. As pessoas usam os espaços residuais para jogar.
Claro, em uma topografia tão forte vimos que seria impossível que as crianças conseguissem brincar nas ruas, esperando que os carros passem, Não há praças, nem parques e se existem, são muito pequenos. Então havia uma carência de espaços públicos pela topografia e pela falta de vontade política. Pois eles podiam fazer, mas nunca fazem. Fazer um parque, fazer um espaço vazio não dá votos. O que dá voto é fazer um edifício grande, de 5 pisos, que se veja de longe. Fazer espaços públicos não dá votos. Mas este prefeito sim, pensava nisso. Não lhe importavam votos. O que ele queria era ser real e entender o que as pessoas necessitavam.
Existem outros elementos chaves desses bairros em ladeira que são os terraços. Era o que falávamos agora há pouco, da arquitetura que se vai fazendo de maneira progressiva, por adição: o primeiro piso, depois se montam o segundo piso. São terraços importantes onde se secam as roupas, onde as crianças brincam com seus triciclos. Eles usam esses espaços, não é só a cobertura da casa. Então nos interessava aproveitar isso: o terraço como mirante.
Então, sobre esses dois colégios que já existiam. São dois edifícios velhos e me chamava muito a atenção: a imagem do colégio era tudo, menos um colégio. Era uma prisão, com grades, que escondiam os alunos como se fossem delinquentes. E então começamos a pensar como faríamos tudo ao contrário, porque afinal de contas, não queríamos repetir isso.
A primeira ideia, naquela reunião do mês seguinte ao primeiro encontro, como eu os contava. Então apareceu isso, depois de pensar muito.
Era a essência do que seria o projeto já estava aí: havia uma intenção muito clara em gerar a cobertura, que obrigatoriamente teríamos que entrar pela parte alta do terreno. Como nos demos conta da carência dos espaços públicos, incorporamos isso ao programa. Porque o programa arquitetônico nos pedia um colégio científico com salas de aula, salas de computadores, mas nunca te pedem isso. Isso [aponta para o grande terraço jardim em uma imagem do projeto] nunca vão lhe pedir: e aí está um espaço público de quatro mil metros quadrados. Tínhamos números muito claros. Mas este foi um aporte nosso ao programa: a cobertura vai se tornar uma praça para que se possa utilizar as pessoas do bairro e os estudantes. Como um espaço intermediário entre o bairro e a escola.
MW: E como foi trabalhada a relação do programa escolar com o lugar, com o existente?
CP: Então isso apareceu, desde a primeira ideia. Também aparecia a ideia de levantá-lo um pouco do piso, deixando o terreno livre embaixo, onde poderiam ser desenvolvidas outras atividades. Em algum momento até pensamos em colocar abaixo uma piscina, mas depois nos demos conta de que o sistema de manutenção era muito caro. Num colégio público, aos seis meses já não teriam colocado cloro, nem cuidando e acabariam por fechá-la. Mas depois este espaço inferior se converteu num lugar muito interessante.
Como eu falava, este é um edifício que se integra de maneira radical ao lugar, não só do ponto de vista topográfico. Porque dá uma sensação de prolongação desta montanha. Parece uma nova geografia. É modificar a geografia com a arquitetura. Esta praça também servia para conectar, através de uma escada, o colégio existente. O outro edifício não, porque era muito abaixo [refere-se a outra escola da região].
Esse caminho que vimos originalmente, que as pessoas usavam, a partir dele, fizemos uma rua escalonada que conectava os níveis do edifício e nossa ideia é que a conectássemos com o caminho existente. Mas não nos deixaram: “não há dinheiro, fazemos depois”... Mas sabíamos que não fariam, discutimos muito, mas chegou a um ponto que não podíamos mais fazer nada. Faltavam só 20 metros, era pertinho, mas não conseguimos. A escola foi cercada na parte interior, infelizmente. Mas ao menos é um fechamento com uma malha muito aberta, muito transparente e em qualquer momento podem tirar. Espero que a tirem. Acaba sendo uma referência no bairro, mas sem querer ser um ícone ou nada. É tranquilo, horizontal.
Esse espaço acima [aponta para o volume que é o único elemento sobre a praça mirante] é a aula múltipla. Era um espaço que já constava no programa. Queriam que fosse um espaço para os estudantes mas que servisse também à comunidade. Mas que quando a comunidade o utilizasse, não afetasse o funcionamento do colégio. Os elementos de madeira são estratégias mais arquitetônicas, que ajudavam também a unificar o edifício, deixando-o menos fracionado. O edifício está localizado no sentido norte sul. Então o nascente e o poente geram uma insolação muito forte, então usamos como elementos de filtro de luz.
As salas também estão recuadas, gerando uma varanda entre as salas e a fachada e também há este espaço intermediário. A planta é muito simples, mas sempre tenta conectar muito os ambientes ao exterior. Porque vimos isso no bairro. Para eles é fundamental sempre ter esta conexão com as montanhas ou com a cidade. São pessoas muito ligadas ao exterior, vivem nas ruas.
Então é isso, a aula múltipla – que não terminaram. O projeto previa uma série de painéis, mas nunca há dinheiro. A praça mirante com a cidade ao fundo. A biblioteca neste projeto é muito pequena porque há a Biblioteca España muito perto.
Isso é diferente do que você me mostrou [refere-se aos CEUs]: ao terem tratado de concentrar todos os equipamentos da comunidade em um só lugar, fazendo com que o resto do bairro perca vitalidade, sendo só residencial. Então a gente nunca vai se encontrar, se ver nas ruas. Esta situação: a biblioteca aqui, o colégio, o metrocable, fazem com que a gente se dê conta, se conheça. Para mim, concentrar os edifícios me parece que não é a solução. Não constrói cidade, sociedade. A mim, me parece, que a estratégia de concentrar todos os edifícios estimula que se formem guetos, funcionando como ilhas independentes. O que se propunha este projeto era conectar o bairro e a comunidade.
MW: Sim, de maneira que esta conexão não se perdesse com o fechamento de um gradil ou portão. Algo que poderia ser feito por um diretor com uma concepção um pouco diferente, severa. Ele poderia fechar alguns acessos ou controlar os horários pondo a perder esta ideia maior de conexão. Isso me parece ser uma fragilidade da proposta de um Centro Educacional Unificado.
CP: Sim, aliás este foi um pedido pessoal de Sergio Fajardo: “eu espero que este colégio sirva para derrubar os muros”. Porque de fato, os colégios existentes eram cárceres. Estavam fechados por muros, nem se quer por gradis. Porque não se pode ver nada através de muros de três metros de altura, então eram verdadeiras prisões sem qualquer relação entre o mundo interior e exterior. Ele queria eliminar as barreiras físicas e mentais. Há uma mensagem bonita nisso, porque romper a barreira mental significa dizer que a escola pertence à comunidade e não é um edifício isolado, concebido como uma prisão.
Nós fomos muito radicais, quando ouvimos isso, entendemos que o conceito era uma escola aberta. Para nós não deveria haver gradis, mas os colocaram depois. Segundo o prefeito, a ideia era que fossem parques educativos. Que as pessoas pudessem usar e que as crianças não tivessem que jogar na rua.
Mas isso acabou acontecendo de um jeito um pouco diferente e acho que isso ocorre em toda a América latina. Diretor do colégio é quem tem a chave da escola. Pois chega no fim de semana, quando há um feriado, o diretor fecha o colégio e viaja, deixando trancada a quadra de futebol, que era a opção de lazer para as crianças. Só resta a elas brincar na rua.
Nós não queríamos grades, queríamos que as crianças pudessem desfrutar do colégio por 24 horas todos os dias da semana. Claro que temos que ser sensatos quanto à esse tema, porque há o problema da segurança. É um bairro muito pobre em que se pode roubar cadeiras, portas.
MW: Para a arquitetura escolar paulista isso é muito importante, ter que criar edifícios resistentes à roubo, depredação e ausência de manutenção
CP: Sim, mas não é preciso ser tão radical. A princípio, é possível realizar campanhas educativas com as pessoas e, a medida que a população vai se apropriando do edifício, eles mesmos vão cuidar.
MW: Sobre os números da escola: quantidade de alunos, faixa etária...
CP: Até onde sei são quase 3.200 alunos em três turnos (manhã, tarde e noite) utilizando os três edifícios, da faixa etária dos 2 anos até os 18. Sendo que os mais novinhos não assistem aulas no edifício novo. Acredito que as salas de aula abertas e estes espaços avarandados convidam para uma nova concepção de aula.