AA/RP/AG: Nós queríamos agora abordar uma questão mais de natureza conceitual sobre o seu trabalho de intervenção nas favelas e remontar a fases anteriores desta política. Por exemplo, é sabido que nos anos 60 ou 70, a grande política da ditadura era de remoção das favelas. Tira-se a Favela do Pinto lá na Lagoa, no Leblon (esses são os exemplos mais recorrentes) e levam para outro lugar. No seu trabalho, as suas intervenções dizem o contrário dessas politicas, ou seja: “vamos tentar manter essas pessoas no lugar”.
Porque a gente olha para uma favela e às vezes a percebe na perspectiva da falta, ou seja: o que as pessoas precisam, o que temos que colocar...e isso também produz essa diferença, a sensação de falta. Então eu lhe pergunto também como foi a sua experiência de conversa, como você negocia os projetos, como você consegue conversar para que os moradores fiquem no local e também participem?
JMJ: Bem, a participação é uma questão para um militante que a queira assumir.
Depois que vim morar aqui e tive contato com os psicanalistas, aprendi que a demanda não é para ser respondida, é para ser interpretada, o que é bem diferente. Então tem um processo, não se pode desenhar diretamente o que se pede, tem que processar isso que é pedido o tempo necessário para você poder responder.
Então hoje, como que eu trabalho com a demanda das favelas? Primeira questão, o governo diz que vai intervir em tais favelas, então eu já me organizo, telefono para a associação de moradores, vou ao lugar e estabeleço o diálogo. Essa é a primeira transferência estabelecida entre o inconsciente do arquiteto e o inconsciente coletivo da comunidade.
“Uma cidade nos chega pelos olhos e pelos pés”, palavras de Walter Benjamim: você vai conhecendo o lugar e vai construindo uma confiabilidade. A confiabilidade se constrói ao longo do processo, não é em apenas uma reunião. Então, eu fico um mês, dois meses, até três meses frequentando o lugar para conseguir entender sua estrutura; aí sou capaz de desenhar um primeiro esquema do lugar. Nesse momento, em que consegui construir esse esquema, é que já construí também uma relação de diálogo com a comunidade que vai fazer com que tudo que eu faça obedeça ao que eles queriam. E mais, por quê? Porque a função de um projeto, para mim, não é responder ao que se pede, mas sim mostrar o que se tinha direito a desejar; e que não se sabia antes do diálogo com o arquiteto. Há uma função didática do projeto: mostrar ao outro aquilo a que se pode aspirar, mas que ele não sabia que tinha direito a isso.
AA/RP/AG: Aí você está sendo político também?
JMJ: Claro, exatamente.
A função do projeto é essa, de articular a demanda e as forças, de potencializar.
A escuta permite que as coisas aflorem, e você vai juntando fragmentos: pede um projeto que a comunidade já teve, ou fez, Pergunta as intenções que eles têm para determinado lugar ou para o todo...É sempre um trabalho de levantamento de informações, de juntar fragmentos, você vai montando um quebra-cabeças e vai ter que ordená-lo para elaborar um projeto de estruturação urbana.
A demanda e a participação da população hoje pra mim têm quatro momentos fundamentais: o primeiro é este, de ir ao lugar, caminhar, iniciar o diálogo, e não tem nada a ver com recursos ou com o cliente em particular. O segundo momento é quando a gente é contratado pelo poder público, então já teve formalmente tempo de elaborar o cronograma para produzir o projeto. Nesse momento, quando sou contratado, volto ao lugar, com o qual construí minha relação, e contrato, por minha parte, alguns consultores que vão ser os meus informantes para detalhar o projeto, porque eu não sei tudo que está lá, tudo que não se vê, eu preciso das informações das pessoas que moram no lugar.
O terceiro momento é quando, depois da licitação do projeto, se inicia a construção, aí a construtora tem obrigação de contratar 40% da mão de obra local. Essa já é uma participação diferente, com carteira assinada, etc. No Complexo do Alemão, por exemplo, foram duas mil pessoas contratadas, mil homens e mil mulheres, nas obras do PAC; foi uma coisa grande, poderosa, que gerou todo um movimento dentro da comunidade: capacitação, cooperativas... A contratação dura o período da obra, nesse caso, foram dois anos. O quarto momento é quando a obra termina, e a Prefeitura instala no local o POUSO (Posto de Orientação Urbanístico e Social) que é o lugar que vai regular os conflitos pós-obras. Conta com arquiteto, engenheiro e uma assistente social, todos funcionários da Prefeitura, que estão ali com o intuito de mediar conflitos.
AA/RP/AG: Esses conflitos que existem após as obras, a Prefeitura retorna a você?
JMJ: Não. Nessa fase o contrato comigo já terminou, e eles só processam isso dentro da própria Prefeitura. Eu já não tenho mais direito a dizer nada.
AA/RP/AG: Tem um exemplo importante, do arquiteto Demetri Anastasakis, que fez o projeto da Vila do João. Esse projeto recebe algumas críticas de não ter conversado muito com a população local, pois as casas possuem telhados de duas águas enquanto que as pessoas precisam de laje, por exemplo. Tem algum tipo de interpretação do seu projeto que foi outra do que aquela pretendida? Ou seja: as pessoas se apropriaram do mobiliário urbano, do material, das casas, de formas outras à que foi planejada?
JMJ: Sempre o cliente se apropria de forma diferente à que foi planejada, em qualquer tipo de projeto, até em um projeto formal; fazem apropriações, intervenções, às vezes deformações também. Na arquitetura popular também, mas nos lugares onde a Associação de Moradores é muito atuante, muito lúcida, politizada, a coisa flui melhor. Os equipamentos, os edifícios, até mesmo os condomínios, são mais conservados.
Um problema gravíssimo que há é que, na legislação atual, não existem os condomínios populares. Na Rocinha, em Manguinhos, em todos esses lugares, o governo entrega as unidades de apartamentos e sai de cena, como se dissesse aos moradores: “agora é com vocês”. Dessa forma, as pessoas que vão morar aí, vêm de diferentes lugares que não tinham relações de vizinhança entre si e, de repente, passam a ter um vizinho que antes não conheciam. Assim como na cidade formal, você compra um apartamento e não sabe quem é seu vizinho. Pode ser uma boa vizinhança ou uma péssima vizinhança. A diferença é que na classe média existe a figura do condomínio, então aí existem os responsáveis por zelar pelos serviços comuns, como lixo, água, iluminação de áreas comuns, etc.
Na favela, as escadas, por exemplo, nunca têm iluminação porque não existe o condomínio popular; então quem é que vai tomar conta, quem é que vai trocar a lâmpada quando ela queima? Isso de não tratar de Condomínios Populares, é um falta grave da lei.
Sei que em São Paulo, agora, a prefeitura terceirizou o serviço de condomínio, então a firma contratada é que faz essa manutenção. É interessante, eu acho esse um bom caminho, porque alguém tem obrigação de manter e não tem todo aquele problema de estar escolhendo permanentemente a figura do síndico, e não tem aquelas brigas tradicionais dos condomínios entre o síndico e os moradores.
É interessante, porque é uma coisa muito simples, trocar uma lâmpada, mas o passo é gigantesco definir , quem vai fazer isso é uma questão que vai muito além do preço dessa lâmpada.
AA/RP/AG: Você tem escrito, ou você já escreveu sobre essa sua relação com seus informantes?
JMJ: Não, nunca escrevi.
AA/RP/AG: Seria uma certa história de vida dos seus projetos, pois o que você nos falou até agora é muito interessante, antes de você ser contratado você já está lá em campo, no lugar. Portanto, seria muito instigante ver esses textos seus, da sua chegada ao lugar, quem são seus informantes, quem te recebeu...enfim, conhecer os bastidores dos seus projetos. Seria interessante saber como os relatos de vida foram colhidos, como as narrações foram montadas.
JMJ: Eu nunca escrevi sobre isso, mas concordo que é um tema interessante.