Thiago Stivaletti: Por que aceitou adaptar o livro Mãos de cavalo, de Daniel Galera, para as telas?
Roberto Gervitz: Em 2008, li Mãos de cavalo e me interessei em adaptá-lo, mas ao ligar para o Daniel Galera, soube que os direitos já haviam sido negociados. Tempos depois, soube que Monica Schmiedt os havia adquirido. Nos encontramos e eu lhe falei do meu interesse em desenvolver tal projeto. No final de 2010 ela me consultou sobre tal possibilidade, e em janeiro de 2011 eu já estava trabalhando no roteiro. Foram sete tratamentos em que me aproximei paulatinamente dos personagens, da estrutura narrativa e da essência do que eu queria filmar.
TS: De certa forma, Hermano vive o dilema de muitos homens: o medo de assumir a paternidade e a vontade de se lançar no mundo, em grandes desafios. Como foi o processo de transformar esse dilema em imagens, na narrativa do filme?
RG: O medo é um tema que permeia os meus filmes. Em última instância, o medo de viver e o medo de morrer – de alguma maneira, o primeiro embute o segundo. Mas esse medo que trazemos se traveste muitas vezes de atitudes temerárias. O cinema que admiro é aquele que nos faz ver e pensar para além das aparências. A vida é em si um grande desafio, não é fácil viver e o medo é um escudo. O medo masculino da paternidade é um tema que me parece relevante, pois embute esse medo primordial de que falei. Deixar de ser filho, virar pai, é um caminho sem volta na vida de qualquer um. E acredito que os homens têm uma maior dificuldade de deixar a adolescência para trás, embora Adri e Hermano sejam dois personagens que, cada qual à sua maneira, se negam a crescer.
Construir uma ideia, uma narrativa em cinema não é obviamente um processo de ilustração e nem de tradução de um livro. É irrelevante se discutir tal processo em termos de fidelidade, pois são duas linguagens totalmente diferentes. Eu li o livro duas vezes, refleti sobre ele e, a partir daí, o esqueci. O que resulta é uma adaptação livre, um roteiro inspirado no livro, fiel apenas à leitura que fiz.
TS: Por que a coragem é um sentimento tão importante no filme?
RG: Não é possível falar do medo sem falar da coragem. Aquilo que parece um ato corajoso pode ser um gesto covarde. Por outro lado, o que é visto como covardia pode ter como parâmetro mistificações que nada têm a ver com a nossa condição de mortais. Muitas vezes é preciso descobrir onde está e em que reside a verdadeira coragem. Mas é certo que sem coragem não é possível viver e nem desejar.
TS: Como foi o processo de escrita do roteiro? O que foi preciso extrair e deixar de fora do livro?
RG: Galera é um escritor de talento, rigoroso, que pensa como um escritor deve pensar: literariamente. Mas para além da qualidade de sua escrita, o que me atraiu foi a construção de um universo de aprisionamento e de culpa, de anestesiamento do viver. Um mundo fechado em si mesmo, em que predomina a ausência de um olhar mais generoso para o outro e para a própria vida, um reflexo dos tempos que vivemos.
Me interessou, por um lado, a visão que o personagem tem do seu passado como algo absoluto e determinante de uma vida sem pulsação e, por outro, a possibilidade de desconstruir esse olhar e a partir daí recomeçar.
O maior desafio que enfrentei na roteirização é que o discurso principal do livro acontece na cabeça do personagem. A estrutura de Mãos de cavalo é a de um grande flashback que se passa na adolescência de Hermano, universo que já havia visitado em Feliz ano velho. No roteiro privilegio sua fase adulta (35 anos), quase ausente no livro, e o passado apenas pontua o presente e com ele dialoga. No processo de criação a questão da paternidade masculina surgiu com força, vinda de algum lugar guardado no meu inconsciente. Também sentia falta no livro de um desenho mais complexo das personagens femininas, às quais me dediquei bastante na escritura, pois têm papel essencial na transformação de Hermano.