Tenho um grande amigo e guru intelectual, um dos mais importantes intelectuais brasileiros, que é o Roberto Schwarz. Ele cunhou uma expressão, “as ideias fora do lugar” (1). Essa expressão me vem à cabeça quase todos os dias. Estamos em uma sociedade em que trazemos do período colonial uma distância, uma discrepância, entre o pensamento e a prática. Entre o que é a base material da sociedade, que era escravista, e a base do pensamento ideológico, que era liberal. Nós conseguimos ser liberais sendo, na realidade, materialmente, escravistas. Então, existe uma distância muito grande entre ideologia e base material.
Isso é muito evidente nas nossas faculdades e nas faculdades de arquitetura. Conseguimos trabalhar com a ideia de que a arquitetura é um determinado ponto específico da cidade localizado dentro de um lote urbano. Abstraímos tudo aquilo que nos cerca. É como se o ambiente construído não fizesse parte da arquitetura, fosse alguma coisa específica, feita por gente famosa, que ganhou prêmio, aquilo que fica dentro do lote e que muitas vezes nega o entorno. Poderíamos dizer que o entorno nega a racionalidade da arquitetura.
Mas se existe uma função social do arquiteto no nosso país, ela sem dúvida está na cidade. Isso implica que a arquitetura tem que ter um compromisso com o espaço urbano e coletivo, que devemos estar de olhos abertos o tempo todo: quando estamos caminhando de um lugar para o outro, quando estamos dirigindo, quando sobrevoamos uma cidade, inclusive através do Google Earth. Mas em que, exatamente, precisamos pensar quando estamos olhando e vivendo o espaço?
É importante estar atento naquilo que é fundamental para a estruturação do espaço, em relação ao uso e à ocupação do solo. Podemos olhar o que está construído e o que não está construído. O que é verde e o que é pavimentado. Tudo isso faz parte da cidade e é objeto de trabalho dos arquitetos. O paisagismo, a questão ambiental, a permeabilidade do solo e o saneamento. Isso não é trabalho só dos engenheiros. É trabalho nosso, também. A mobilidade, por exemplo, tem tudo a ver com a distância entre casa e trabalho, casa e escola, casa e comércio, casa e faculdade. A desigualdade nas cidades é uma construção social, e os arquitetos precisam se encarar como participantes da sociedade, da cultura que é praticada, da ideologia da cidade, que é uma ficção.
Por que a nossa política habitacional e urbana segrega, isola, exila, põe para fora da cidade? Grande parte da nossa população não mora numa moradia projetada por arquitetos e construída por engenheiros. A cidade é construída como uma ficção. É como se o mercado imobiliário fosse a cidade, mas grande parte da nossa população não faz parte do mercado imobiliário.
A democratização da arquitetura e da cidade fará uma enorme diferença na vida de grande parte da população urbana, assim como na dos arquitetos, que terão outro ponto de vista de atuação profissional. A ideia é ampliar as oportunidades do acesso à arquitetura e disseminá-las, afinal, arquitetura é saúde, conforto ambiental é saúde e salubridade é saúde. A correta trajetória das aberturas de uma casa em relação à trajetória do sol, aos ventos, é fundamental, pois tem a ver com qualidade de vida.
Precisamos dialogar com outros setores para mostrar o quanto a arquitetura é fundamental na vida das pessoas, explicitando o seu alcance social. Isso é importante, inclusive para ampliar o campo de atuação dos arquitetos. Não há outra saída, pois temos uma profissão que está se proletarizando pelo grande número de pessoas que estão sendo formadas pelas faculdades de arquitetura e que não tem mercado de trabalho.
Nesse sentido, como se pode abrir o mercado de trabalho? O que é melhor para nós e o que vai ser melhor para as nossas cidades e para a sociedade brasileira? Uma das coisas mais importantes, sem dúvida, é a Lei Federal de Assistência Técnica (2). É a forma que temos de fazer pressão junto aos poderes públicos para que os arquitetos possam trabalhar com assessoria técnica junto à população que hoje não tem acesso aos serviços de arquitetura. E, também, no ensino de arquitetura, são fundamentais os cursos de extensão, atividades que saem da escola de arquitetura e da bibliografia dos livros e vão para a realidade.
Através da extensão universitária é possível se defender das ideias fora do lugar, da construção fictícia sobre o que são as nossas cidades, e trabalhar com a cidade real. A realidade não é apenas os centros dos mega edifícios do mercado imobiliário. É aquilo e é também a produção dos bairros de autoconstrução que estão fora do mercado. É preciso trabalhar essa realidade da cidade de uma forma “paulofreiriana” e passá-la para a população, inclusive para as faculdades de arquitetura e para os gestores públicos das nossas cidades.
A arquitetura é muito importante para a sustentabilidade ambiental, para a saúde das pessoas, para a racionalidade urbana, para a economia de custos urbanos, para a melhoria das cidades e para as vidas das pessoas. Há muito trabalho a ser feito, mas é maravilhoso e prazeroso para quem acredita que a arquitetura é necessária.
notas
1
A expressão cunhada por Roberto Schwarz surge no primeiro capítulo de sua tese doutoral, publicada em livro no ano de 1977 com o título “Ao vencedor as batatas”. Schwarz é graduado em Ciências Sociais pela USP; mestre em teoria literária e literatura comparada pela Universidade de Yale e doutor em estudos latino-americanos pela Universidade de Sorbonne (Paris 3). Professor de teoria literária na USP e na Unicamp, onde se aposentou em 1992. Ver: MARICATO, Ermínia. As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias. Planejamento urbano no Brasi! In ARANTES, Otília Beatriz Fiori; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único. Desmanchando consensos. Coleção Zero à esquerda, Petrópolis, Vozes, 2000, p 121-192.
2
A promulgação da Lei no. 11.888/2008, conhecida como a Lei Federal de Assistência Técnica à Moradia de Interesse Social, assegura às famílias de baixa renda assistência técnica pública e gratuita ao projeto e à construção de habitação de interesse social.