Na Dinamarca, a noção de “cidade para pessoas” (3) funciona muito bem. A Dinamarca não é um capitalismo de primeiro mundo, é de mundo zero. É uma sociedade igualitária, apesar de capitalista. Os direitos humanos são muito fortes. A bicicleta, por exemplo, é muito mais defendida do que o automóvel. Importar esse conceito é um exemplo muito bom das “ideias fora do lugar”.
Quando Jan Gehl veio para o Brasil, ele foi na Avenida Faria Lima e fez uma crítica (4). A Faria Lima, em São Paulo, é uma avenida de elite muito importante. À época, questionei o porquê de não o terem levado para o Capão Redondo, pois seria muito interessante se ele conhecesse a realidade brasileira. Ele viu a cidade de São Paulo através de um pedaço da realidade que não condiz com a totalidade. “Cidade para pessoas” omite o que é a luta de classes no Brasil, que é profunda, que é escandalosa.
Jessé de Souza (5) tem se esforçado para problematizar as classes sociais no Brasil contemporâneo. Não concordo totalmente com ele, mas está trazendo para a discussão a questão da escravidão. A cidade brasileira tem em si, quando você olha o mapeamento, por exemplo, da localização das pessoas não brancas, uma “senzala”. Jan Gehl não pensa em termos de classe, porque ele vive uma realidade muito diferente. Ele ter tanto prestígio no Brasil mostra uma mentalidade colonizada.
Gostaria muito de ter tempo de escrever, pelo menos um artigo, a respeito dos mitos e fetiches sobre as cidades brasileiras. Um deles, por exemplo, é a ideia da “cidade da exceção”, do Giorgio Agamben (6). O neoliberalismo trouxe para as cidades no mundo a flexibilização na legislação e nos direitos. No Brasil, olhamos para as operações urbanas, para a venda de potencial construtivo e percebemos que essa é a nossa cidade da exceção. Temos as leis e também temos os prefeitos vendendo exceção em relação às leis. No entanto, no Brasil e na América Latina, uma parte das cidades são estruturalmente de exceção. Não seguem o Código de Obras, nem Lei de Parcelamento do Solo, nem legislação de zoneamento, nem Plano Diretor, nada. Não tem lei para uma parte das nossas cidades. Há uma especificidade muito grande quanto à exceção nas cidades brasileiras. Assim, por que se basear em Agamben? Esse seria o segundo fetiche.
O terceiro fetiche seria a financeirização. Agora tudo virou financeirização. Escrevi um artigo para a Revista Piauí chamado “O Nó da Terra” (7), falando sobre o impasse da política urbana no Brasil. O nó da terra, no Brasil, é centenário. A terra, enquanto apropriação privada, a partir de 1850, substituiu os escravos, que eram a detenção do patrimônio. Quando observamos uma cidade como João Pessoa, na Paraíba, incrivelmente dispersa, e com uma ocupação de baixíssima densidade, sem esgoto, nos perguntamos: “como é que vamos colocar esgoto?”. Qual é o preço desse esgoto para chegar em uma ocupação tão dispersa? Na verdade, o nó da terra, esse que desenhou o século 19, que desenhou a libertação dos escravos e a escravização da terra, que está na base da sociedade brasileira, ele está aqui, fortíssimo, agora, nas cidades, e não só no campo. A renda da terra, a retenção de terra vazia é o desenho das nossas cidades.
Temos uma verticalização excessiva e precoce. Excessiva porque não seria necessário em uma cidade com tantos vazios. A verticalização excessiva e o adensamento de construção trazem o aumento da temperatura urbana, promovem as ilhas de calor, trazem um adensamento no trânsito, etc. Claro que a cidade compacta é o sonho de qualquer urbanista no mundo, mas o que temos é o exagero na densidade, na verticalização combinada com o exagero na dispersão. Sem dúvida nenhuma, deveríamos pensar em uma cidade menos desigual e não em uma cidade para pessoas, pensadas como indivíduos.
notas
3
O termo “cidade para pessoas” ficou conhecido a partir das publicações do arquiteto e urbanista dinamarquês Jan Gehl, cujo pensamento central questiona a maneira como as pessoas e a vida urbana são relegadas a partir do planejamento das cidades ao se pensar primeiro nas formas do edifício. Uma de suas obras mais conhecidas, Cities for people, publicado em 2010, Gehl aborda questões fundamentais à qualidade de vida na cidade e que se refletem na escala dos espaços, nas soluções de mobilidade, nas dinâmicas que favorecem a vitalidade, sustentabilidade e segurança das áreas urbanas, na valorização dos espaços públicos, nas possibilidades de expressão individual e coletiva e tudo aquilo que pode ser apreendido ao nível do observador.
4
LORES. Raul Juste. Sinto pena de quem trabalha na Faria Lima, diz urbanista dinamarquês. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/11/1836502-sinto-pena-de-quem-trabalha-na-faria-lima-diz-urbanista-dinamarques.shtml> Acesso em 18 de outubro de 2018.
5
Jessé de Souza é formado em Direito pela Universidade de Brasília, mestre em Sociologia pela mesma instituição e doutor em sociologia pela Karl Ruprecht Universität Heidelberg, na Alemanha, onde também obteve o título de livre docência. Professor universitário e pesquisador brasileiro, atua nas áreas de teoria social, pensamento social brasileiro e estudos sobre desigualdade e classes sociais no Brasil contemporâneo.
6
O filósofo italiano Giorgio Agamben é considerado um dos mais importantes intelectuais da atualidade. Pode-se encontrar uma discussão sobre a noção de exceção em seu livro “O Estado de Exceção”, de 2003.
7
MARICATO. Ermínia. O nó da terra. Disponível em: <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-no-da-terra> Acesso em 31 de janeiro de 2019.