Transa: substantivo feminino; 1. Entendimento, acordo, pacto; 2. Ligação, trama, conluio; 3. Relação amorosa; 4. Relação sexual; 5. Assunto ou questão pessoal; 6. Apreciar muito alguma coisa; 7. Sentir-se bem com; 8. Gostar: “ele não transa música clássica”; 9. Combinar ou entrar em concordância com; ajustar; 10. Fazer maquinações, planos ocultos, geralmente com intuito de prejudicar; 11. Fazer transações, negócios comerciais com; negociar. Etimologia (origem: De transação).
“Transa Marieta” é uma estratégia do coletivo Marieta para enfrentar a pandemia, mantendo o grupo ativo durante o período de distanciamento social. A intenção inicial, que se mantém, era convidar personalidades da arte e da cultura contemporânea, com o propósito de discutir uma trajetória de vida e uma percepção específica do mundo atual, em interação com profissionais de áreas diversas, com formações e experiências distintas.
Com transmissão ao vivo, uma mistura de prazer e cultura, diversão e engajamento. Não se desejava um programa jornalístico convencional, com perguntas protocolares ou polêmicas, mas um encontro de sensibilidades e inteligências. Uma atração especialmente pensada para a urgência do momento, onde todos vivem a incerteza do futuro imediato. Durante a concepção do evento ainda não havia a febre de “lives”, que logo tomaram conta da vida de todos nós.
O programa piloto foi com o escritor Milton Hatoum (1), que de forma generosa disse sim ao convite para um programa que não passava de esboço de uma ideia. A partir de então, por ideias próprias e sugestões do público que foi aumentando, o coletivo paulista, sempre acompanhado de convidados qualificados, conversou com marcantes personalidades da vida cultural brasileira: o músico e compositor Arrigo Barnabé (2), a arquiteta e militante social Erminia Maricato (3), o gestor cultural Danilo Santos de Miranda (4), o líder indígena Ailton Krenak (5), o teatrólogo José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso (6), e a festiva presença de Gilberto Gil, um dos maiores ídolos da música popular brasileira (7).
O oitavo episódio da série, estrelado pela líder do Movimento Sem-Teto do Centro – MSTC, a ativista social Carmen Silva, ocorreu no dia 26 de outubro de 2020, a partir das 18h30h, com quase duas horas de duração e transmissão ao vivo via Facebook na página do projeto Marieta (8). Foram convidados para formar o grupo de entrevistadores o jornalista e articulador cultural Bruno Ramos, a professora e arquiteta Débora Sanches, a cineasta Eliane Caffé e o ativista e líder comunitário Luiz Gonzaga da Silva, o “Gegê”. No posto de mediador, Geovanni Pirelli, membro do projeto Marieta.
A transmissão ao vivo no Facebook teve mais de 1200 visualizações, 58 comentários e 36 compartilhamentos. Agora, na íntegra, a entrevista está disponibilizada na plataforma Youtube e pode ser acessada no módulo 2 dessa edição da entrevista. No módulo 3 o leitor interessado poderá verificar o roteiro da entrevista preparado pelos entrevistadores, comparando o desejo inicial e como se desenvolveu de fato a conversa. Por fim, no módulo 4, informações sobre a entrevistada, sobre os entrevistadores, além dos bastidores do programa.
Carmen Silva compartilha com milhares de nordestinos a história de vida dos migrantes internos, que buscam nas grandes cidades do sudeste industrializado melhores condições de sobrevivência. Chegou a viver na rua, experiência que marca de forma indelével sua personalidade e dá substância e combustível para sua bandeira de vida, a luta pelo direito humano de se morar dignamente. A energia e o destemor que a levaram à sua ascensão no interior dos movimentos sociais urbanos são características que não a impediram de expressar ao longo de sua trajetória um lado mais delicado e atencioso. As invasões realizadas com sua liderança expressam essa ambiguidade, onde a coragem da invasão se concilia com a dedicação na transformação do imóvel em ambiente revigorador de vidas.
Bloco afro Ilú Obá De Min, Ocupação 9 de Julho
Vídeo Abilio Guerra
Os membros da Associação Paulista de Críticos de Arte responsáveis pela modalidade “Arquitetura e Urbanismo” da premiação anual marcaram posição ao outorgar o Prêmio APCA 2016 na categoria “Apropriação Urbana” à Ocupação Hotel Cambridge, personalizados nas figuras de Carmen Silva, Pitchou Luambo, Juliana Caffé, Yudi Rafael e Alex Flynn. Na justificativa do prêmio, o membro da APCA Francesco Perrotta-Bosch explica ao grande público os motivos da distinção:
“O hotel desativado foi ocupado em 23 de novembro de 2012 por membros do Movimento Sem Teto do Centro – MSTC. Sob a liderança de Carmen Ferreira da Silva, o ato de posse foi acompanhado pela retirada de toneladas de lixo acumulado nos anos de abandono e pela adequação das instalações do edifício para comportar cerca de 125 unidades habitacionais. O que se constata em uma visita à ocupação é uma dignidade notável tanto no interior dos apartamentos, cada qual com as particularidades da intimidade de cada família residente, quanto nas áreas comuns, cuja gestão e manutenção coletiva levam a um invejável nível de cuidado interno” (9).
A ocupação do imóvel fechado e abandonado se tornou célebre pelas lentes da cineasta Eliane Caffé, no formidável filme “Era o Hotel Cambridge” (10), tema do debate ocorrido no projeto Marieta no dia 4 de março de 2017, após a exibição do making of do filme, que apresenta cenas que explicitam a extrema importância, para as lideranças do movimento de moradias, do compromisso com a educação cidadã dos participantes das ocupações, muitos deles em estágio de extrema degradação física e moral. Carmen Silva afirma no documentário que se sente obrigada a “devolver à sociedade cidadãos plenos”. Quem visita as ocupações do movimento se surpreendem com a organização dos espaços, a presença de usos raros até mesmo em condomínios requintados, caso da biblioteca, horta comunitária, galeria de arte, cozinha coletiva etc.
Voltando ao filme “Era o Hotel Cambridge”, a cineasta Eliane Caffé apresenta o lado humano da ocupação, o encontro de tantas pessoas com trajetórias marcadas pelo sofrimento, que têm como ponto comum a busca de uma nova vida na grande metrópole paulista. São cenas emocionadas e emocionantes, que levaram às lágrimas calejados jornalistas após a apresentação do filme para a imprensa, evento ocorrido no Cine Itaú Augusta no dia 9 de março de 2017 (11). Eliane Caffé é capaz de sintetizar em poucas palavras o amálgama de gana e afeto que conforma a personalidade da líder dessa experiência social:
“Após tantos anos na militância, seu espírito livre voa bem mais alto e consciente, certa de que a vida é breve demais para prescindir de um bem que é essencial e que devemos deixarmos às outras gerações. Quem duvida disso, basta visitar uma das ocupações sob sua coordenação; basta um dedo de conversa com ela, olhando-a nos olhos, para ver e compreender seu enorme coração, sua força e paciência infinita para suportar tanta calúnia pública e ainda assim, resistir e não abandonar a barca de companheiras e companheiros” (12).
Tanto no filme como no debate ocorrido no Marieta – que contou com as participações do arquiteto João Sette Whitaker Ferreira, ex-secretário da Habitação de São Paulo, a cineasta Eliane Caffé, diretora do filme, e da arquiteta Carla Caffé, responsável pela cenografia – ficou evidente o amplo conhecimento de aspectos legais pela líder dos movimentos pela moradia. É o caso do direito à moradia, que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu de forma tímida como um dos itens a ser contemplado pelo salário mínimo, omissão corrigida pela emenda constitucional n. 26, de 14 de fevereiro de 2000, que modifica a redação do artigo 6º e deixa expressa de forma clara que a moradia é um direito essencial dos cidadãos do país (13). Nos embates no âmbito da justiça, além da Constituição cidadã também é usada como arma por Carmen Silva e outras lideranças o argumento da “função social da propriedade” estabelecida pelo Estatuto da Cidade, oficializado pela lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001.
A ação do MSTC e movimentos semelhantes delineiam uma inovação de extrema engenhosidade dentro de uma estrutura social cheia de vícios originados do passado colonial, mas com “contribuições ricas e variadas” ao longo dos séculos. A ignominiosa situação de parte significativa da população brasileira tem nesses grupos uma saída real, dentro da lei e da ordem estabelecida. Trata-se de uma tecnologia social de enorme valor, pois opera nos meandros e frestas de uma legalidade estabelecida para legitimar e perenizar a desigualdade social. A tomada de posse de edifícios abandonados há décadas, situados em áreas centrais, com passivos em impostos ou litígios de heranças, é uma ação de enorme racionalidade dentro da lógica urbana, pois confere utilidade social a imóveis inúteis, dando sentido à infraestrutura urbana já instalada. Trata-se de uma ressignificação engenhosa, tanto no âmbito material, como no simbólico, pois está em questão o fator pedagógico de se educar para a sociedade democrática.
Esse reconhecimento, que já é significativo no meio universitário, ainda é raro no meio social, onde as camadas médias e abastadas da população reforçam seus preconceitos de classe consumindo a visão distorcida vendida por jornais e redes de televisão. De forma unânime, grande mídia silencia diante da grilagem e ocupações ilegais promovidas por grandes grupos empresariais, mas reforça a imagem caricata dos “invasores de propriedades” quando se trata de gente sem eira nem beira. A criminalização dos movimentos sociais faz parte do pacote de medidas e atos reacionários que tem implicado em uma série de perda de direitos sociais duramente conquistados em nosso país. Carmen Silva foi incriminada várias vezes nos anos recentes e dois de seus filhos chegaram a ser presos a partir de acusações injustas e manipuladas. O abismo entre o significado das ações desses movimentos e a reação raivosa que merecem de parte da sociedade foi bem definida pela arquiteta Ermínia Maricato, professora da FAU USP e ativista social:
“Lideranças sociais, como Carmem Silva, deveriam receber homenagens da cidade pelos serviços prestados: abrigar em edifícios que estavam descumprindo a função social, pessoas que não teriam como pagar o abrigo por meio da pequena contribuição que fazem ali e que é destinada a manter o pagamento do consumo de água, energia, limpeza e segurança. As mulheres que lideram muitas dessas ocupações, mantêm o crime fora desses edifícios com sua impressionante autoridade. Elas organizam cursos profissionalizantes, cursinhos gratuitos para jovens, creches solidárias para as mães, atendimento voluntário de saúde, produção de alimentos...” (14)
Retirante nordestina, ex-moradora de rua, Carmen Silva transformou a própria vida graças à sua enorme determinação. Hoje, além de líder do Movimento Sem-Teto do Centro – MSTC, ela já pode colocar no seu currículo que é atriz de cinema (protagonista principal do filme “Era o Hotel Cambridge”), professora do curso de arquitetura da Escola da Cidade e escritora, afinal uma conversa sua com o Aparelhamento – rede de amigos e amigas que atua pelo reestabelecimento da democracia – virou um livro, sintomaticamente intitulado A terra prometida (15). Quem sabe, em futuro breve, possa acrescentar na lista sua participação na Câmara como vereadora da cidade. Na conversa disponível no módulo 2 dessa edição é possível acompanhar um pouco da vida dessa mulher nascida para liderar.
[texto de Abilio Guerra]
notas
1
O primeiro episódio do “Transa Marieta”, com Milton Hatoum, ocorreu no dia 20 de abril de 2020, com início às 18h30, e está disponibilizado no portal Vitruvius: GUERRA, Abilio; MASSI, Augusto; BUSSIUS, Julia. Milton Hatoum: literatura em tempos de cólera política e pandemia de coronavírus. Transa Marieta – episódio 1. Entrevista, ano 21, n. 082.02, São Paulo, Vitruvius, abr. 2020 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/21.082/7713>.
2
O segundo episódio do “Transa Marieta”, com Arrigo Barnabé, ocorreu no dia 12 de maio de 2020, com início às 18h30, e está disponibilizado no portal Vitruvius: GUERRA, Abilio; ROMANO SANTOS, Silvana. As mil faces do artista Arrigo Barnabé. Transa Marieta – episódio 2. Entrevista, ano 21, n. 082.04, São Paulo, Vitruvius, maio 2020 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/21.082/7740>.
3
O terceiro episódio do “Transa Marieta”, com Erminia Maricato, ocorreu no dia 26 de maio de 2020, segunda-feira, com início às 18h30, e está disponibilizado no portal Vitruvius: GUERRA, Abilio; SAMPAIO, Celso Aparecido; WHITAKER, João Sette; RUBANO, Lizete Maria. Erminia Maricato, arquiteta, professora, gestora pública e ativista social. Transa Marieta – episódio 3. Entrevista, ano 21, n. 082.05, São Paulo, Vitruvius, maio 2020 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/21.082/7757>.
4
O quarto episódio do “Transa Marieta”, com Danilo Santos de Miranda, ocorreu no dia 22 de junho de 2020, segunda-feira, com início às 18h30, e está disponibilizado no portal Vitruvius: GUERRA, Abilio; BOGÉA, Marta; PIRELLI, Giovanni. Danilo Miranda, um intelectual a serviço do Brasil. Transa Marieta – episódio 4. Entrevista, ano 21, n. 082.07, São Paulo, Vitruvius, jun. 2020 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/21.082/7792>.
5
O quinto episódio do “Transa Marieta”, com Ailton Krenak, ocorreu no dia 21 de julho de 2020, terça-feira, com início às 18h30, e está disponibilizado no portal Vitruvius: GUERRA, Abilio; FERRAZ, Isa Grinspum; ALTBERG, Marco; ROLNIK, Suely. Ailton Krenak, o intérprete dos intérpretes do Brasil. Transa Marieta – episódio 5. Entrevista, ano 21, n. 083.01, São Paulo, Vitruvius, jul. 2020 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/21.083/7825>.
6
O sexto episódio do “Transa Marieta”, com José Celso Martinez Corrêa, ocorreu no dia 22 de setembro de 2020, terça-feira, com início às 18h30, e está disponibilizado no portal Vitruvius: PIRELLI, Giovanni; ZOÉ, Cafira; ANGATU, Casé; DALOURZI, Marcelo; GALLMEISTER, Marília. Zé Celso, a irreverência a serviço da teatro e da cidade. Transa Marieta – episódio 6. Entrevista, ano 21, n. 083.04, São Paulo, Vitruvius, set. 2020 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/21.083/7890>.
7
O sétimo episódio do “Transa Marieta”, com Gilberto Gil, ocorreu no dia 6 de outubro de 2020, terça-feira, com início às 17h, e está disponibilizado no portal Vitruvius: GUERRA, Abilio; PIRELLI, Giovanni; CÉSAR, Chico; RIBEIRO, Djamila; ELEISON, Keyna; ALMEIDA, Luiz Fernando de. Gilberto Gil, o homem que sabe ouvir. Transa Marieta – episódio 7. Entrevista, ano 21, São Paulo, n. 084.01, Vitruvius, out. 2020 <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/21.084/7902>.
8
Transa Marieta #8 – Carmen Silva em conversa com Bruno Ramos, Débora Sanches, Eliane Caffé e Luiz Gonzaga “Gegê” da Silva, com mediação de Giovanni Pirelli, 26 nov. 2020 <https://www.facebook.com/watch/live/?v=1044883219307306>.
9
PERROTTA-BOSCH, Francesco. Prêmio APCA 2016: Ocupação Hotel Cambridge / Carmen Silva, Pitchou Luambo, Juliana Caffé, Yudi Rafael e Alex Flynn. Categoria “Apropriação Urbana”. Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.08, Vitruvius, abr. 2017 <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6495>. O júri de arquitetura dessa edição foi formado por Abilio Guerra, Fernando Serapião, Francesco Perrotta-Bosch, Gabriel Kogan, Guilherme Wisnik, Hugo Segawa, Luiz Recaman, Maria Isabel Villac, Mônica Junqueira de Camargo e Nadia Somekh.
10
Era o Hotel Cambridge (drama, 93’), direção de Eliane Caffé; produção de Rui Pires, André Montenegro, Edgard Tenembaum e Amiel Tenenbaum; direção de arte de Carla Caffé e alunos da Escola da Cidade; direção de fotografia e câmera de Bruno Risas; montagem de Márcio Hashimoto; elenco com os atores José Dumont, Carmen Silva, Isam Ahamad Issa, Guylain Mukendi e Suely Franco (atriz convidada); participação especial de Lucia Pulido e Ibtessam Umran; produção da Aurora Filmes e coprodução de Tu Vas Voir (França), Nephilim Producciones (Espanha) e Apoio (Brasil); distribuição da Vitrine Filmes.
11
GUERRA, Abilio. Era o Hotel Cambridge. Um filme que dá cores locais a um drama global. Resenhas Online, São Paulo, ano 16, n. 183.03, Vitruvius, mar. 2017 <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/17.183/6452>.
12
CAFFÉ, Eliane. Carmen Silva, uma líder acima de qualquer suspeita. Drops, São Paulo, ano 18, n. 128.06, Vitruvius, maio 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/18.128/6986>.
13
“Art. 6º – São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.
14
MARICATO, Erminia. Os excluídos da cidade e a lei. Sobre a criminalização das vítimas da exclusão social. Drops, São Paulo, ano 20, n. 142.02, Vitruvius, jul. 2019 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/19.142/7406>.
15
SILVA, Carmen. A terra prometida. Em conversa com Aparelhamento. São Paulo, Repasse, jun. 2019 <https://bit.ly/32dMq2Y>.