Ainda se percebe como os ensinamentos de Lina Bo Bardi se mantêm presentes na prática profissional do escritório de projetos Brasil Arquitetura, recém completado 40 anos. Liderada pelos sócios fundadores Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz, a BA (como é chamada a Brasil Arquitetura, pelos seus integrantes) fez juz ao nome e conduziu projetos que se espalham do Rio Grande do Sul ao Amazonas, de forma que cada obra apresenta a potencialidade cultural do local onde se insere. Ao mesmo tempo, esses projetos são regidos pela mesma palavra de ordem: liberdade. Essa liberdade de projetar, de intervir no patrimônio, de usar símbolos, de gerar programas e de reinterpretar o Brasil vêm de Lina.
Se a escola de Vilanova Artigas tinha seu projeto social ligado à modernização técnica e à industrialização, a arquiteta ítalo-brasileira acreditou mais na cultura popular como forma de emancipação do homem e conexão com suas raízes, resultado da “vontade de criar sintaxes expressivas a partir da mímese da realidade” (¹). Essa imersão cultural é fundamental para o atendimento dos procedimentos projetuais da BA, onde literatura, história, música e costumes se transformam em importantes ferramentas para a criação do partido arquitetônico.
Se analisamos os elementos e as formas recorrentes, vemos associações (superficialmente) diretas entre Lina e BA. Que pecado cometemos em associar os grandes vãos livres em projetos como o Museu de Arte de São Paulo – Masp e o Cais do Sertão, visto que ambos são espaços cedidos à cidade? Como não conectar a poética das “pedras” (2)², entre tantos outros simbolismos presentes nas obras de Lina e da BA? Como não reparar na fusão entre o decorativo e o utilitário nos elementos de suas arquiteturas? Como não afirmar que ambas se ausentam do culto ao piloti moderno?
Mas se tudo isso parece criar um sistema dogmático de recorrências e “regras” dos projetos, mais uma vez a liberdade do projetar nos surpreende. Quando a estrutura adossada à vedação e o uso de paredes estruturais pareciam dominar os projetos, surge o Museu do Trabalho e do Trabalhador com seu “show do piloti”; quando o cinza do concreto aparente começa a seguir a tradição do brutalismo paulista, o uso de pigmentos das mais diversas cores vem para adicionar uma carga simbólica e estética para os volumes da Praça das Artes, do Memorial da Democracia etc. A liberdade de ressignificar a arquitetura e propor histórias contadas por meio dos edifícios dão uma forte carga de autenticidade à produção da BA e demonstram, ao mesmo tempo, independência e singularidade, em relação à arquitetura de Lina.
Ao meu ver, algumas lições da arquiteta ainda podem ser mais exploradas por jovens arquitetos, como a conjugação quase radical (e muito realista, se pararmos para observar os centros urbanos) entre vegetação tropical e edifício. Mas de todo modo, a Brasil Arquitetura é uma das equipes que continua o legado de Lina e, por isso, nos interessa saber como os processos e as escolhas projetuais ocorrem. Afinal, até que ponto existe essa conexão entre a arquiteta e o escritório em atividade?
A entrevista a seguir, com Marcelo Ferraz, se inicia com a afirmação de que “a Lina é a Lina e nós somos nós”, mas que logo é ponderada pela frase “temos, de certa forma, continuado um pouco o que praticamos com Lina”. Em meio à citação de personagens conhecidos (Gilberto Gil, Luiz Gonzaga, Vilanova Artigas, Álvaro Siza etc.), o entrevistado comenta uma série de projetos e os esmiuçados através de seu raciocínio projetual e de seus detalhes. Críticas e discordâncias, nessa conversa, colocam novas perguntas que, com certeza, animariam bons debates após a leitura desse diálogo.
Se o estágio e a posterior colaboração efetiva entre Marcelo Ferraz e Lina Bo Bardi compõem parte do assunto desse texto, é o meu estágio no escritório (em 2019) que cria a vontade de sintetizar tantas dúvidas e hipóteses por meio de uma entrevista. Muitas das perguntas, porém, vieram do olhar estrangeiro minucioso da catalã Marta Galisteo, que tanto se admirou com a obra de Lina e da BA; o que já parecia naturalizado, para mim, a Marta fez questão de questionar. A facilidade de explicar e a garantia do bom conteúdo vêm do nosso entrevistado, a quem somos muito gratos pelo tempo cedido. Que a entrevista a seguir gere debates e inspire novos projetos para o Brasil. Bom proveito!
[texto de apresentação de Vitor Lima]
notas
1
MONTANER, Josep Maria. Sistemas arquitetônicos contemporâneos. São Paulo, Gustavo Gili, 2016, p. 106.
2
BARDI, Lina Bo. Pedras contra brilhantes. In: FERRAZ, Marcelo Carvalho (Org). Lina Bo Bardi. 4a edição. São Paulo, Romano Guerra/Instituto Bardi/Casa de Vidro, 2018, p. 40.