Esta entrevista reune dois temas importantes no âmbito da arquitetura e de grande interesse para a contemporaneidade: a fenomenologia e o conceito de sacralidade na arquitetura.
A fenomenologia é uma abordagem ressurgida na arquitetura a partir das décadas de 1950 e 1960, como um paradigma teórico pós-modernista, em contraposição às ideias funcionalistas (1). As iniciativas nesse campo buscam traduzir fenômenos humanos em experiências multissensoriais (2), em consonância com a valorização do genius locci (3), dos processos de identidade e apropriação lugar (4) e da empatia do arquiteto em relação aos desejos e necessidades das pessoas e em prol da qualidade do ambiente. Constituindo importante tendência na área de arquitetura e urbanismo, a fenomenologia está presente na obra de vários arquitetos que ganharam prêmios Pritzker, tais como Peter Zumthor, Tadao Ando, Shigeru Ban e Herzog & Meuron. Embora as práticas arquitetônicas sejam, em geral, limitadas por fatores ligados à velocidade, custo e condições de execução de obra, os arquitetos que atuam fenomenologicamente desenvolvem uma aguçada sensibilidade para criar elementos que valorizam a percepção do ambiente e os sentidos humanos. Em geral, suas produções causam impacto e fascínio, exploram a subjetividade daqueles que delas usufruem e se tornam marcos de experiências de lugar na perspectiva multissensorial (5).
Por sua vez, a arquitetura sacra consiste na produção arquitetônica voltada para a construção de espaços sagrados, visando a transcendência e o encontro com Deus, área de estudos ligada à religião e à cultura (6). Nesse campo, e para a Igreja Católica Romana, entre 1962 e 1965, o Concílio Ecumênico Vaticano II, ocorrido durante o papado de João XXIII, é considerado um “divisor d’águas na noção de liturgia” (7), Ao aspirar a renovação litúrgica, ele trouxe inovações em vários setores, inclusive para as configurações arquitetônicas das igrejas, tais como: 1. substituir ornamentações de materiais luxuosos por elementos de beleza nobre e simples, eliminando decorações ou imagens em excesso; 2. evitar obras de arte que não sejam coniventes a uma casa cristã de oração; 3. construir edifícios para facilitar a participação ativa dos fieis; 4. produzir construções dignas, condizentes com o funcionamento de um espaço sagrado; 5. ter especial cuidado com as formas dos altares; 6. valorizar artisticamente a capela para o sacramento da comunhão; 7. incluir o batistério no projeto em desenho de modo a conciliar o seu significado de sacramento de iniciação cristã (8).
Vários arquitetos famosos aplicaram a fenomenologia à arquitetura sacra. Um dos exemplos mais conhecidos é o do suíço Peter Zumthor, que reconhece usar memórias afetivas como referências projetuais, e para quem se identifica uma arquitetura de qualidade “quando um edifício consegue comover” (9). Um dos projetos mais comentados de Zumthor é a capela dedicada ao irmão Klaus, localizada na Alemanha. Para aceitar o convite de fazendeiros da região que afirmavam sentirem paz vendo outros projetos de igrejas feitas por ele, o arquiteto impôs como condição haver tempo para projetar cada detalhe. O trabalho teve inicio em 1998 e levou sete anos para ser concluído; a obra em si foi começada em 2005 e inaugurada em 2007, tendo contado com ampla participação da população local em sua execução. O arquiteto cuidadosamente projetou desde a maçaneta da porta até pequenos detalhes de materiais, incluindo várias experiências executivas, como montar uma estrutura interna com madeira local não aparelhada, fazer a concretagem e, após aguardar o tempo de cura, incendiar o conjunto, processo que garantiu ao concreto a tonalidade imaginada por ele (10).
Trazendo a fenomenologia para a realidade brasileira e, mais especificamente, para o contexto nordestino e cearense, a arquiteta e urbanista Janice Dantas projetou a Igreja do Ressuscitado que Passou pela Cruz, cujo percurso de projeto inclui conhecimento da técnica arquitetural e sensibilidade para comunicar arquétipos, provocando experiências multissensoriais. A obra de Janice Dantas tem sido mencionada positivamente por profissionais da área e, principalmente, pelos usuários. Apresenta-se aqui uma entrevista realizada por telefone com a arquiteta cearense, tendo como objetivo compreender seu percurso criativo.
A obra: Igreja do Ressuscitado que Passou pela Cruz
O projeto da igreja Igreja do Ressuscitado que Passou pela Cruz, foco desta entrevista em função do processo de projeto utilizado em sua concepção, foi solicitada pela Comunidade Católica Shalom de Fortaleza, Ceará. A Igreja do Ressuscitado que Passou pela Cruz possui área interna com 1.440m², altura de 21m e capacidade para receber mil pessoas sentadas. Ela se encontra no município de Aquiraz (região metropolitana de Fortaleza CE) e está em execução desde 2013, construída por meio de doações. Embora, ainda não tenha sido concluído, o espaço tem atraído muitos comentários, bem como passeios culturais, retiros individuais, missas, visitas de estudantes de engenharia e arquitetura, e eventos diversos (shows, peças).
Para desenvolver o projeto a arquiteta fez imersões na leitura de temas ligados à projetação de templos e estudou materiais, além de ter investido na elaboração de maquetes e na construção de protótipos em marcenaria (como o banco feito para ambientação da Igreja do Ressuscitado que Passou pela Cruz).
Nos muitos detalhes é perceptível a sensibilidade de uma profissional que se preocupa com a incitação dos sentidos humanos e com detalhes de projetos voltados para traduzir a cultura e valorizar a experiência das pessoas, auxiliando-as a transformarem espaços em lugares.
notas
1
NESBITT, Kate (org.). Uma nova agenda para a arquitetura: antologia teórica 1965-1995. São Paulo, Cosac Naify, 2008.
2
GOMES et al., 2008;
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petropolis, Vozes, 2004.
3
NORBERG-SCHULZ, Christian. Genius Loci: towards a phenomenology of Architecture. Nova York, Rizzoli, 1980.
4
TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo, Difel, 1983
5
GUILHERMINO, Leila. Atmosferas arquitetônicas: projeto e percepção na obra de Peter Zumthor. Dissertação de mestrado. Natal, PPGAU UFRN, 2015 <https://bit.ly/3DBA9qk>.
6
SEGERER, Christian Michael. Arquitetura sacra contemporânea: levantamento e análises de obras (2000-2015). Dissertação de mestrado. São Paulo, PPGAU UPM, 2019.
7
PASTRO, Cláudio. Guia do espaço sagrado. São Paulo, Loyola, 1999, p. 4
8
VATICANO. Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia. Roma, 1963; SEGERER, Christian Michael. Op. cit.
9
PEREIRA, Rafaela Peres Fontes Ramos. Para uma arquitetura emocional: as obras de Peter Zumthor, Álvaro Siza Vieira e João Luís Carrilho da Graça. Dissertação de mestrado. Lisboa, Universidade Lusíadas, 2018, p. 11.
10
GUILHERMINO, Leila. Op. cit.