Clarissa Freitas de Andrade: Na arquitetura de igrejas católicas, comumente se vê reformas, restauros ou intervenções. Não é muito comum haver construções desse gênero hoje em dia se compararmos a outros períodos históricos. E espaços sagrados tendem a se tornar lugares de visitação também cultural. Diante disto, como é ser arquiteta de uma obra do porte da Igreja do Ressuscitado que Passou pela Cruz?
Janice Dantas: Um encargo de muita responsabilidade; não pelo porte, já que existe uma equipe de engenheiros muito empenhada em propor soluções técnicas. A questão que exige zelo é atender ao significado. Os ritos católicos são ricos em símbolos, e como esta obra é a primeira igreja de uma comunidade nova, o principal trabalho é compreender a forma própria de viver a espiritualidade e as celebrações dessa instituição e traduzir tudo isso em arte. Igrejas costumam atravessar os séculos, tendem a viver muito mais do que nós. Então, há o empenho em produzir um lugar que testemunhe esse nosso momento histórico e também o transcenda, que consiga comunicar realidades atemporais. A narrativa bíblica faz isso: conta histórias arquetípicas, que se atualizam desde que o mundo é mundo. Projetar um edifício espiritual é como transliterar essas narrativas universais sem atrapalhar a assimilação. O cuidado é para compreender ao ponto de transmitir sem atravancar esse manancial, que existe desde muito antes de nós. Há, sobretudo, uma postura de respeito pelos que nos legaram essas riquezas, pelos contemporâneos que participam dessa construção coletiva, e pelos que virão, para fazer uma entrega incólume. Tudo além disso é vento que passa e não tem tanta importância, respondendo como é ser arquiteta dessa obra.
CFA: Quais tipos de pesquisas são exigidos para a realização de um projeto sacro?
JD: Existe uma vasta bibliografia de arte sacra, mas acho equivocado começar por ela. Vejo muitos projetos repetindo estilos que não têm mais ressonância com o período corrente, como que relacionando espiritualidade à reprodução do passado. É preciso ir à fonte das necessidades do espaço: a sagrada liturgia. A partir dela usar uma linguagem atual, legível pelo homem de hoje. Começando pelos documentos oficiais do Vaticano, como o livro “Catecismo da Igreja Católica”, para compreender a razão de construir templos e o significado de seus elementos. Há também um documento da CNBB denominado “Orientações para projeto e Construção de Igrejas e disposição do Espaço Celebrativo”, que está bem desenvolvido. Depois existem inúmeros documentos oficiais e livros de liturgistas. Com esse conhecimento, aí sim, somar a literatura de arte sacra, compreender os tipos e significados dos arcos e das cruzes, por exemplo, para não utilizá-los de forma aleatória, sem noção dos sentidos específicos que guardam. Nesta seara, os livros do artista sacro brasileiro Claudio Pastro, frutos de anos de trabalho e pesquisa, prestam um grande serviço. Há tanta riqueza simbólica para nos apropriarmos nos projetos, e está tudo disponível. Penso que quando não estamos dispostos a compreender o sistema simbólico no qual cada trabalho está inserido, podemos oferecer um resultado raso.
CFA: Quando unidos, os vitrais das quatro fachadas da igreja formam o círculo cromático. Pode explicar como se deu o desenvolvimento desses elementos e sua simbologia?
JD: A igreja do Ressuscitado é composta por figuras geométricas muito simples e simbólicas. Em planta, vemos um círculo inscrito num retângulo: o divino inscrito no humano. Quando se tocam, surgem as aberturas – portas e vitrais. Já nos vértices do retângulo se formam quatro espaços: Batistério, Capela do Santíssimo, Capela da Mãe de Deus e Capela da Reconciliação. Esses espaços fazem alusão a mistérios cristãos, que por sua vez possuem cores em sua simbologia. Assim, os vitrais que saem a partir do Batistério são vermelhos, porque vermelha é a cor litúrgica da solenidade de Pentecostes; os que nascem a partir da Capela do Santíssimo são amarelos, já que dourado é utilizado na liturgia da Páscoa; os que surgem a partir da Capela da Mãe de Deus são azuis, cor litúrgica mariana e, por fim, os vitrais que saem a partir da Capela da Reconciliação são roxos, cor litúrgica dos ritos penitenciais. Seguimos fielmente as cores litúrgicas e então, os vitrais que existem entre um e outro espaço são ligados pelas matizes cromáticas. Quando fechamos o desenho, percebemos que naturalmente completamos o círculo cromático. Ou seja, todo o arco-íris, todas as cores perceptíveis ao olho humano, estavam contempladas nos vitrais. Ao que Moysés, o fundador da Comunidade, logo entendeu como uma alusão à criação, à gênese. Mas havia um incômodo: o vitral da fachada principal, feito pelas cores entre o roxo e o vermelho ficaria muito escuro, e com o púrpura como cor central, poderia acarretar num aspecto sombrio. Dizendo desse desconforto, falei que ficaria muito sanguíneo, e então Moysés relacionou imediatamente ao sangue e água do Ressuscitado. E aconteceu uma catarse criativa, a ideia de atravessar o púrpura sanguíneo com o amarelo/ dourado da Ressurreição. E, dessa ideia, esse sangue e água, símbolos da Ressurreição, atravessariam toda a igreja, “rasgando” todo o espaço sagrado com uma gloriosa fenda: vitral, porta, piso, elementos do presbitério e ícone central.
CFA: Na igreja há, ainda, o uso massivo de materiais naturais. Por que essa prerrogativa?
JD: Há na arte sacra o princípio da veracidade dos materiais, que determina que a matéria empregada nos espaços sagrados seja verdadeira, natural. Tudo para exprimir a primazia da verdade. E se entendemos que as edificações existem como expressões humanas, chegamos à conclusão de que também nós, como parte das construções, devemos nos colocar com nossa verdade. Daí nasce a beleza. Tomando a trilogia da beleza-bondade-verdade da antiguidade clássica, o conceito fica ainda mais amplo.
CFA: Você fez uma imersão em um laboratório de madeiras para desenvolver protótipos. Algo chamou sua atenção?
JD: Sim. Fui desenvolver o protótipo dos bancos da nave. Historicamente, eles não carregam questões simbólicas, como por exemplo, a cadeira do presidente da celebração (sédia). Mas percebi que poderiam expressar a dignidade e a singularidade de cada um que os ocupará. Como se trata de uma obra executada a partir de doações, este significado fica ainda mais latente. Então fui desenvolver o protótipo com uma ideia: cada banco seria diferente, expressaria o singular de cada um de nós. Depois de muito refletir sobre como fazer a diferenciação, recebi a sugestão de que fossem feitos com madeiras com costaneiras, as marcas da casca de cada árvore. Era isso! A singularidade da madeira refletiria a singularidade humana: nenhum banco seria exatamente igual ao outro. Mas após procurar o material nas lojas varejistas de toda a cidade, por valores acessíveis para produzir apenas um banco, só consegui encontrar uma sobra de madeira com costaneira, toda empenada, furada por bichos, muito danificada. Quando cheguei com essas tábuas no laboratório, foi um estranhamento: pareciam impróprias para uso. Mas seguimos. Acontecia que procurei a madeira dando-lhe sentido, mas à medida que me aproximava dela, manuseava, cortava, lixava, ela ia me devolvendo significados: lixando as camadas superficiais e chegando ao seu cerne, ela mostrava sua beleza e dignidade. Veja: eu não lhe dei dignidade, ela mostrou apenas o que já tinha internamente. Assim é a madeira, assim somos nós. E a arte é fecunda quando evidencia verdades como esta. Os furos feitos pelos bichos, que a princípio incomodaram, não foram tamponados. Ao contrário, deixaram transparecer a força da árvore, que resistiu, sobreviveu. Tais marcas se tornaram sua beleza mais pascal. E não é assim conosco? Isso tudo não fala da condição humana?