Montevidéu (1.252.212 habitantes, 1996) localizada na margem leste do Rio da Prata, estende-se numa variação de até 60 metros de altitude, com ausência de sistemas orográficos acentuados. Por sua vez esse território de relevo ondulado é cruzado por numerosos e em geral pequenos cursos de água: córregos e valas. Vários desses cursos têm sido canalizados e hoje integram os braços da rede de esgoto da cidade. Os córregos mais importantes: Miguelete, Pantanoso, Malvín e Carrasco, desembocam no Rio da Prata.
O córrego Miguelete é o principal curso de água da cidade de Montevidéu e do departamento homônimo, um território mais amplo que inclui solo urbano e rural. Seu significado deriva tanto da extensão de sua bacia hidrográfica como de sua relação com importantes áreas urbanizadas desde seu nascimento na escarpa Pereira até desembocar na baía, com seu desenvolvimento linear aproximado de 21,5 quilômetros.
Assim, a bacia topográfica do córrego Miguelete, de 113,6 km2, inclui importantes áreas urbanizadas e rurais. Nessa bacia residem 325.000 habitantes, ou seja, mais de 25 por cento da população departamental. Devem considerar-se além disso as superfícies das sub-bacias tributárias: córrego Mendoza, 30,2 km2, baixada Casavalle, 10 km2 e baixada Pajas Blancas, 13,5 km2. Corresponde à área rural 52% desse total, onde o solo se destina a cultivos horti-frutíferos, em pequenas explorações agrícolas com uma superfície inferior a cinco hectares. Apesar da importância dessa rede, os montevideanos identificam-no como um curso de água urbano, que por outro lado consitutui um elemento chave da estrutura da cidade de Montevidéu, atual e potencial.
O córrego Miguelete, nas primeiras décadas do século passado, foi o estruturador de vários passeios dos montevideanos, unindo o parque do Prado com a praia Capurro. Suas águas foram suporte de atividades de lazer e esportes. Desde a década dos quarenta tem sido objeto de numerosas intervenções em suas margens, com modificação e canalização de seu curso inferior. Além disso, a bacia de drenagem natural do curso foi modificada pelo sistema de saneamento urbano, com o desvio do desaguamento de algumas áreas da bacia (23,1% da área total da bacia); com a execução atual das obras da etapa III do Plano Diretor de Sanemento Urbano, essa superfície será ainda mais incrementada
No entanto, assim como em outros cursos d’água em cidades da região, o córrego Miguelete apresenta atualmente sérios problemas de poluição. O regime hidrológico não pode suportar, nas atuais condições, a poluição trazida pelos habitantes da bacia. As três principais fontes de poluição provêm, respectivamente, da indústria, do saneamento e dos resíduos sólidos.
Identifica-se meia centena de estabelecimentos industriais, localizados na sua maioria no trecho médio do curso, com potencial contaminador, e a metade deles despejados na água de forma direta.
O sistema atual do saneamento urbano, além de não cobrir a totalidade da bacia, apresenta um mal funcionamento, com desafogadores no coletor que acompanha o curso inferior e o despejo direto próximo à desembocadura, que converte esse setor numa verdadeira cloaca a céu aberto. As obras de construção de um novo coletor, muito avançadas atualmente, modificarão essa situação de uma maneira radical.
Hoje, a bacia conta com zonas ocupadas por assentamentos irregulares, especialmente no trecho médio do curso. O problema gerado por esse tipo de assentamento não reside somente na questão dos líquidos residuais mas no despejo de resíduos sólidos associados a uma das mais importantes atividades econômicas dos ocupantes dos assentamentos: a reciclagem do lixo. Isso se vê agravado porque uma significativa proporção do material não recuperável é lançada na água.
A implantação em sua bacia de numerosas indústrias que despejam dejetos sem processar, os despejos do sistema de saneamento urbano e o processo de urbanização informal em suas margens têm contaminado suas águas, tornando-as impróprias para qualquer tipo de atividade, assim como convertendo-as num latente perigo sanitário e ambiental.
Atualmente a Prefeitura Municipal de Montevidéu encontra-se direcionada na implementação do Plano Montevidéu – Plano de Planejamento Territorial (1998-2005) – em vigência a partir do 1o de dezembro de 1998 (decreto no 28.242).
As margens e bordas urbanas do córrego Miguelete conformam uma franja verde, de grande potencial estruturador do território, na qual o Plano Montevidéu propôs um parque linear, suporte de novas atividades e usos sociais públicos.
O planejamento derivado do Plano propõe a redação de vários planos especiais. Identificam-se com valor estratégico aqueles que por seu impacto positivo, atuando somente numa porção do território – por exemplo, a bacia do córrego Miguelete – podem desencadear uma melhora arquitetônica, urbanística, ambiental e em geral, da condição de vida de todos os montevideanos.
No Plano Especial Córrego Miguelete concebeu-se a proposta do parque linear como uma estrutura unitária com significado de equipamento metropolitano e ao mesmo tempo para o serviço de bairros e zonas adjacentes, integrando uma intervenção urbana de alta complexidade que implicará em modalidades de projeto e de gestão específicas. A cidade deu as costas ao córrego, e converteu-o num lixão endêmico. Por isso nossa cultura urbana coletiva deve construir e integrar um novo córrego Miguelete e uma nova relação com o curso d’água.
Por outro lado, com relação às condições ambientais na bacia do córrego Miguelete, como já se fez referência anteriormente, encontra-se em obra a construção de redes de evacuação no marco do Plano de Saneamento Urbano de Montevidéu, etapa III.
O Plano Especial Córrego Miguelete implica num esforço de articulação entre as atuações sobre o meio físico e biológico e aquelas dirigidas à população, suas atividades, sua cultura. A participação dos atores sociais locais – cuja concretização deverá ser atingida através dos órgãos descentralizados de cada zona – constitui uma peça fundamental para o êxito da proposta. Dado que o projeto supõe a atuação da comunidade, o âmbito natural do desenvolvimento é o sistema de descentralização com participação social que se aplica à cidade de Montevidéu desde 1990.
Nesta data foi finalizada a consulta pública mediante assembléias nas zonas, nas quais os vizinhos colocaram suas preocupações, propostas e sugestões
Os objetivos principais do Plano Especial Córrego Miguelete são:
– habilitar percursos públicos em forma de parques e equipados nas margens do córrego em toda sua extensão, entre a baia e o solo rural, com ramblas para veículos, ciclovias e caminhos para pedestres;
– recuperar a qualidade ambiental e a paisagem urbana das margens do córrego mediante intervenções urbanísticas de reestruturação e requalificação, complementando as ações de infraestrutura de saneamento;
– considerar localizações próximas na realocação dos assentamentos irregulares localizados ao longo do córrego, porém compatíveis com os objetivos anteriores;
– conceber essa intervenção como uma estrutura urbana unitária, com valor de equipamento metropolitano e, ao mesmo tempo, o serviço dos bairros e zonas adjacentes;
– contribuir ao recuperar, qualificar, dinamizar e densificar os bairros adjacentes mediante o instrumento do regime específico, delimitando unidades de atuação.
Para a formulação do Plano Especial foram identificados três temas chave nos quais foram realizados estudos complementares.
O primeiro refere-se à análise da dinâmica hidráulica atual da bacia do córrego Miguelete e a elaboração e estudo de viabilidade técnica e econômica de propostas incluindo: a) pautas de direção das bacias de captação e da ribeira; b) modificação de infra-estruturas existentes e/ou c) obras novas que aumentem o volume e/ou regularidade do nível do córrego.
O segundo tema aponta para um melhor conhecimento da vida – vegetal, animal e microbiana – que se desenvolve em torno do córrego, um mapeamento preciso desta e a formulação de propostas para sua recuperação e/ou valorização. Isso implicou em: a) estudar o estado atual das diferentes formas de vida no córrego e sua bacia, com ênfase na área ecológica significativa (1) e a área do Projeto Especial Córrego Miguelete; e b) elaborar e avaliar técnica e economicamente propostas que contribuam na recuperação da biodiversidade do córrego e sua bacia, com ênfase nas áreas assinaladas.
O terceiro tema que foi estudado compreende o levantamento atualizado e geo-referenciado dos assentamentos irregulares nas margens do córrego Miguelete, assim como a direção informal e classificação dos resíduos sólidos, que constitui-se numa das atividades principais de boa parte da população de tais assentamentos.
Com relação à formulação de projetos de atuação, a realização do II Seminário Montevidéu – Ateliês de Projeto Urbano – no mês de março de 1999, resultaram num banco de idéias e propostas. Esse seminário foi realizado pela Prefeitura Municipal de Montevidéu e a Faculdade de Arquitetura da Universidade da República.
Os resultados do II Seminário Montevidéu constituíram-se na primeira validação acadêmica do Plano Montevidéu. O tema abordado desenvolveu aspectos do Plano Especial. Nenhum dos seis ateliês pôs em questão o sentido unitário do Plano Especial como projeto estratégico e de grande significado na estrutura física da cidade. (2)
notas
1
O Plano Montevidéu define como Área Ecológica Significativa uma série de porções do território departamental entre as quais inclue-se uma faixa de 25 metros de ambos os lados da ribeira dos cursos d’água.
2
Finalmente, para aquelas pessoas que desejam aprofundar-se sobre o ante-projeto do Plano Especial Córrego Miguelete, os avanços realizados encontram-se no site: www.montevideo.gub.uy/pot/miguelete.pdf.
sobre o autor
Hugo Gilmet, nascido em 1945, é arquiteto desde 1976, formado pela Universidade de Lund, Suécia. Atualmente desempenha os cargos de catedrático de Teoria na Faculdade de Arquitetura de Montevidéu e assessor da Unidade Central de Planejamento da Prefeitura Municipal de Montevidéu, Uruguai.