"Only through time time is conquered".(T. S. Eliot, Burnt Norton)
Presença marcante e estruturadora no tecido urbano de Nova Friburgo, a fábrica Ypu é uma vivaz referência da cidade ao longo do tempo. A vontade de contribuir para que Ypu assim persista, e conquiste mais tempo, perdure no tempo é o que move este artigo, pois somente através do tempo o tempo é conquistado, ensina o poeta.
Fundada em 10 de julho de 1912 por Maximilian Falck, tendo por primeiro sócio Willian Peacoc Dennis, Ypu começou como uma pequena fábrica de ligas, suspensórios e passamanarias. Sendo o seu primeiro pavilhão estabelecido no antigo sítio Ypu, de propriedade de Falck, o nome do lugar transmitiu-se à fábrica e foi registrado como marca de seus produtos. O desenrolar de sua história registra a saída de Peacoc Dennis, sucessivas entradas de novos sócios, e a resolução administrativa por uma sociedade de cotas de responsabilidade limitada (1).
Com o seu desenvolvimento, Ypu passou a fabricar também artefatos de couro e metal, e teve êxito comercial em todo o país. Foi um tempo em que a fábrica participava ativamente da economia da cidade. Nesse setor, Ypu ombreava-se com outras tradicionais indústrias friburguenses, entre elas, a Arp (fios e bordados, fundada em 1911), a Fábrica de Filó (lingerie, adquirida em 1968 pela Triumph International, hoje Triumph International Filó S/A), e Sinimbu (aviamentos, fundada em 1953).
Ocorre, porém, que por uma série de descaminhos, das mais diversas naturezas, a fábrica Ypu é hoje uma massa falida. Paredes mofadas, janelas quebradas, teias de aranha, infiltrações, imensos espaços subutilizados, deteriorados, e uma incomparável sensação de perda foi o que presenciei em minha recente visita à fábrica (Figura 2).
O patrimônio de Ypu está em leilão há vários anos e não consegue ser vendido. Os proprietários tinham dívidas trabalhistas imensas com seus funcionários, sendo uma centena deles, organizados em cooperativa, os atuais responsáveis pela gestão da fábrica. Esses cem funcionários mantêm a produção da linha de couros da indústria. Para tanto, a pequena cooperativa compra, produz e vende em pequenas quantidades, pois a administração não tem recursos para estoques. Parte desses produtos é comercializada na loja, hoje arrendada por terceiros, e que antes era administrada por Ypu (Figura 3).
Todas as informações acima narradas me foram repassadas por amigos e conhecidos locais e, também, por comerciantes e empresários de diferentes ramos e pontos da cidade. Foi igualmente desse modo que fui informada de que muitos políticos locais usam Ypu como plataforma na época de campanha, apregoando propostas, ainda sem êxito.
Por outro lado, é de se admirar o esforço dos cooperativados para manter a fábrica ativa, e seu trabalho contribui também para que as amplas dependências de sua excelente edificação ainda estejam de pé. Diante de tudo isso, e em nome do meu amor por Nova Friburgo, e do imenso respeito que tenho pela sua história, permito-me refletir sobre a conservação da fábrica, propondo a sua reutilização. Para tanto, iniciarei por esses dois conceitos, que me parecem cabais para a permanência da fábrica no tempo.
Em primeiro lugar, o conceito de conservação. Segundo Jukilehto (2), conservação é “o termo geral para a salvaguarda e proteção do patrimônio histórico, e como a ação de prevenção da sua decadência”. Tais termos e ações envolvem todos os atos para prolongar a vida do patrimônio cultural e natural. Dessa perspectiva, uma primeira idéia que se afigura pertinente é a da proteção institucional, visando a tutela do patrimônio cultural que Ypu representa para a cidade. Neste ponto, vale convocar outro nome importante das teorias patrimoniais, Camilo Boito (3). Conforme Boito, a conservação muitas vezes é a única coisa a se fazer, sendo obrigação de todos, da sociedade e do governo, tomar as providências para a sobrevivência do bem, conforme assinala Kühl (4).
Considerando agora o conceito de reutilização, este se faz presente na história da preservação do patrimônio desde Viollet-le-Duc (5), que já contemplava essa possibilidade para a sobrevivência das obras medievais (6). Nesse sentido, afirma Viollet-le-Duc (7), o melhor meio para conservar um edifício “é encontrar para ele uma destinação, é satisfazer tão bem todas as necessidades que exige essa destinação, que não haja modo de fazer modificações”.
Seguindo a idéia da reutilização como um meio de conservar o patrimônio, e valendo-me da máxima “livre pensar é só pensar”, uma das mais populares de Millôr Fernandes, tomo a liberdade de sugerir algumas possíveis destinações para a fábrica. O objetivo dessa reflexão propositiva é oxigenar o quadro atual, visando a contribuir para a abertura de um debate sobre os destinos do conjunto da fábrica Ypu. Devo dizer, ainda, que faço isto espontaneamente, mas fundamentada por minha longa convivência com a cidade de Nova Friburgo.
Estou escrevendo este artigo apenas duas semanas depois de meu retorno de Nova Friburgo, onde fui passar os feriados de Corpus Christi, quando fiz minha mais recente visita à fábrica Ypu. Ao passear por ela, fotografá-la, e mentalmente inquiri-la, a primeira idéia que me ocorreu foi a do quão apropriado seria o conjunto da fábrica para uma instituição de ensino, podendo contemplar diferentes níveis, com um bom planejamento de turnos. Por exemplo, poderia abrigar uma universidade, com um colégio de aplicação que atendesse às crianças da região nos horários diurnos, e cursos universitários e de pós-graduação noturnos. A excelente localização da fábrica e a facilidade de acesso levam a pensar também que, em conjunto com uma instituição educacional, seria muito apropriada a instalação de um centro de convenções no local, convergência esta muito usual hoje em dia.
A sua situação é muito favorável às instalações educacionais e de convenções, com seu acesso principal logo na entrada de Nova Friburgo pela rodovia RJ 116 (Figura 4), a partir da qual se atravessa uma ponte sobre o rio Bengala, acessando a via secundária. Esta é pavimentada em blocos de cimento, margeia o rio Bengala sombreada por árvores de generosas copas, contornando toda a fábrica (Figura 5). É muito usada por pedestres e praticantes de caminhadas e de cooper, dando acesso à localidade de Muri e interligando os bairros de Ponte da Saudade e Perissê (Figura 6).
A tipologia da fábrica em tudo lembra a de uma escola do início do século XX, de influências européias, com sua portada encimada por uma torre de relógio, seus blocos de salas com esquadrias ritmadas voltadas para o sol da manhã, seus fluxos organizados, seus generosos pátios internos (Figura 7). Além disso, o parque da fábrica conta com equipamentos esportivos e grandes jardins (Figura 8). No caso da convergência com um centro de convenções, este poderia ocupar a área das grandes oficinas, hoje desativadas.
Do ponto de vista das históricas vocações da cidade, a educacional sempre despontou, com os tradicionais colégios onde estudaram grandes nomes da cultura brasileira, como Carlos Drummond de Andrade e Sobral Pinto, ex-alunos do Colégio Anchieta. Além dessa prestigiosa instituição, a cidade abriga o Colégio de Nossa Senhora das Dores, o Instituto de Educação Nova Friburgo (antigo Grupo Escolar Ribeiro de Almeida) e o Ginásio Nova Friburgo (antiga Fundação Getúlio Vargas), que sedia o Instituto Politécnico. Entre as faculdades, destacam-se a de odontologia, na antiga casa do Segundo Barão de Duas Barras, um projeto eclético de que participou Glaziou, e a de filosofia, em prédio modernista.
Nova Friburgo é uma cidade de interesse histórico, por sua formação segundo um projeto imperial de colonização européia; e de interesse paisagístico, com seus jardins e espaços livres desenhados por Glaziou (8). É também uma cidade de interesse turístico, pelos motivos antes citados, e por seu entorno natural, pejado de atrativos aquáticos e rupestres. Esse caráter sugere a apropriação de cursos como turismo, gastronomia, geografia, história, arquitetura e urbanismo.
A cidade é também um forte pólo de produção de lingerie, o que faz pensar em cursos como moda, desenho industrial, engenharia de produção. Além das indústrias tradicionais citadas no início deste texto, Friburgo tem também a tradição de perfumaria e cosméticos, como os da empresa Suavitrat, o que sugere cursos na área de farmácia e bioquímica, com ênfase em cosmetologia. Por fim, seu setor agrário e alimentício (queijarias, apicultura, doces) é bastante ativo, e poderia ser muito beneficiado por faculdades de agronomia, engenharia de alimentos, engenharia florestal.
Observadas as obrigações legais, em especial, para com os funcionários, tudo isso poderia ser viabilizado, por exemplo, por projetos de expansão de universidades, federais ou estaduais. Tal providência beneficiaria não apenas a cidade, mas todos os municípios e distritos circunvizinhos, contribuindo para manter nesses locais a população mais jovem, rejuvenescendo o setor econômico. Cantagalo, Macuco, Cordeiro, Bom Jardim, Cachoeiras de Macacu, Casimiro de Abreu, Além Paraíba são alguns desses possíveis beneficiários. Além disso, uma medida como essa ajudaria a aliviar a demanda pelas universidades da capital carioca.
Vale acrescentar que todas as facetas de Nova Friburgo apontadas nos parágrafos acima estão incorporadas no imaginário acerca da cidade, e em suas representações na mídia. Esses aspectos são expressos, por exemplo, em guias turísticos, como atesta a sua apresentação no Guia Quatro Rodas (9), abaixo transcrita:
São várias “cidades” em uma. No centro fica a urbanizada, com bancos, hotéis executivos e passeios tradicionais, como o teleférico. A romântica se espalha pelos arredores da estrada para Muri e Lumiar, onde o clima de serra se faz mais notório em pousadas que são verdadeiros refúgios no meio da mata. E ainda tem a rural, com hotéis-fazenda e pontos de venda de mel e queijos à beira da rodovia para Teresópolis. O circuito da lingerie, uma das bases da economia local, une todos os estilos, em shoppings e lojas concentradas na chamada Ponte da Saudade.
No guia australiano Lonely Planet (10), popular no mundo inteiro, a cidade fluminense é inicialmente citada por um histórico dos primeiros imigrantes suíços, que teriam chegado em 1818, os quais são assim relacionados à atualidade friburguense:
Sendo pessoas engenhosas, tiveram grande sucesso, e hoje visitantes de Nova Friburgo ainda maravilham-se com a arquitetura típica da vila e com a aparentemente perpétua florescência de flores. Existem também muitas atrações naturais resplandecentes: cachoeiras, bosques, trilhas, montanhas ensolaradas pela manhã e noites frias (11).
Todas as “cidades” presentes em Friburgo, citadas pelo Guia Quatro Rodas, e essa cidade do legado dos imigrantes, enfatizada pelo Lonely Planet, ganhariam muito com a conservação e reutilização da antiga Fábrica Ypu, e, por ora, agradecem a atenção. Eu também, friburguense por vínculo afetivo e legado familiar, agradeço. Muito obrigada! (12).
Eliane Lordello, arquiteta e urbanista (UFES, 1991), mestre em Arquitetura, (PROARQ/FAU/UFRJ, 2003), é doutora em Desenvolvimento Urbano pelo MDU/UFPE (2008), onde defendeu a tese Sete Cidades: um estudo das representações sociais das cidades brasileiras patrimônio mundial na Web, orientada pela Profa. Dra. Norma Lacerda.
notas
1
PREFEITURA MUNICIPAL DE NOVA FRIBURGO. Histórico da fábrica Ypu. Nova Friburgo: Prefeitura Municipal de Nova Friburgo, 1996.
2
JUKILEHTO, J. “Conceitos e idéias sobre conservação”. In: ZANCHETTI, S. (Org.). Gestão do patrimônio cultural integrado. Recife: UFPE, 2002, p. 11-19.
3
BOITO, C. Os restauradores: conferência feita na exposição de Turim em 7 de junho de 1884. Cotia: Ateliê Editorial, 2008.
4
KÜHL, B. “Apresentação”. In: BOITO, C. Os restauradores: conferência feita na exposição de Turim em 7 de junho de 1884. Cotia: Ateliê Editorial, 2008.
5
VIOLLET-LE-DUC, E. E. Restauração. Cotia: Ateliê Editorial, 2006.
6
Beatriz Kühl (2008, p. 23, grifo nosso) reflete que a antipatia criada em relação às obras de Viollet-le-Duc como restaurador fez com que muitas vezes deixasse-se de apreciar a coerência de suas formulações teóricas, de seus aspectos e questões inovadores e ainda atuais. Entre estes últimos, cita os que seguem: O fato de recomendar que se deva restaurar não apenas a aparência do edifício, mas também a função portante de sua estrutura; procurar seguir a concepção de origem para resolver os problemas estruturais; a importância de se fazer levantamentos pormenorizados da situação existente; agir somente em função das circunstâncias, pois princípios absolutos podem levar ao absurdo; a importância da reutilização para a sobrevivência da obra, pois restaurar não é apenas uma conservação da matéria, mas de um espírito da qual ela é suporte.
7
VIOLLET-LE-DUC, E. E. Op. Cit., p. 65.
8
Para um histórico da cidade de Nova Friburgo, ver LORDELLO, E. Por um futuro mais doce para o Park Hotel. Minha Cidade, São Paulo, 2008. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/minhacidade/mc220/mc220.asp> Acesso em: 19 jun. 2009.
9
NOGUEIRA, K. (Ed.). Guia Quatro Rodas. São Paulo: Abril, 2009, p. 556.
10
ST LOUIS, R. (Org.). Lonely Planet Brazil. Victoria: Lonely Planet Publications, 2005, p. 199-200.
11
Tradução nossa. No original: Being a resourceful people they had great success, and today visitors to Nova Friburgo still Marvel at the town’s quaint architecture and apparently perpetually blooming flowers. There are also plenty of resplendent natural attractions: waterfalls, woods, trails, sunny mountain mornings and cool evenings.
12
Eu agradeço a todos os amigos friburguenses que contribuíram com informações para este artigo; e ao meu irmão João Luiz Lordello e à minha amiga Mariah Simonato, pelas atenciosas leituras prévias do texto.
sobre o autor
Eliane Lordello, arquiteta e urbanista (UFES, 1991), mestre em Arquitetura, (PROARQ/FAU/UFRJ, 2003), é doutora em Desenvolvimento Urbano pelo MDU/UFPE (2008), onde defendeu a tese "Sete Cidades: um estudo das representações sociais das cidades brasileiras patrimônio mundial na Web", orientada pela Profa. Dra. Norma Lacerda