A catástrofe que se abateu sobre São Luiz do Paraitinga abre uma importante discussão na seara da teoria e da prática da preservação do patrimônio histórico. Mais do que isso, o desastre da destruição de grande parte do conjunto histórico da cidade, aliado à vontade de reconstrução explicitada por vários setores da sociedade, nos apresenta uma oportunidade singular de atuação nesse campo.
Reconstrução, recuperação, restauração, reciclagem, reabilitação; todos os “res” voltam nesse momento, e sobre eles devemos refletir, procurar seus significados mais profundos, exatos e ricos. Mas devemos, sobretudo, procurar o significado que responda à demanda imediata de toda a comunidade afetada pela destruição da enchente e também à demanda crítica que se faz necessária num momento como esse, em relação à história das cidades. E não é simples, muito menos assunto consensual.
Tentarei dar meu ponto de vista a partir da declaração de um governante em visita ao local: “Vamos reconstruir tudo. Utilizaremos tecnologia moderna de construção, mas faremos tudo igual ao que era”. Só faltou dizer “faremos tudo falso, imitando o antigo”. Esta declaração, além de resposta imediata que todo político tem na ponta da língua diante de qualquer situação, do tipo “temos soluções”, mostra também a ignorância geral sobre a história, vista sob a ótica do patrimônio construído e da evolução (ou involução em muitos casos) das cidades.
Se não iremos mais construir com taipa de pilão ou taipa de mão – e não faz nenhum sentido hoje em dia – porque reconstruir tal qual uma imitação? Os imóveis destruídos de São Luis, como documentos de uma época, não eram os únicos e nem os melhores exemplares arquitetônicos de um determinado período. Vamos então criar um cenário, um falso histórico? Podemos encarar as cidades ou o espaço urbano como cenário? Penso que não.
As cidades, ao longo da história da humanidade sempre foram feitas e refeitas umas sobre as outras. A vida avança. Não vivemos no passado, vivemos no presente com perspectiva – projeto – de futuro. E neste caso de São Luiz do Paraitinga, um projeto de futuro se faz urgente. Uma ação reconstrutiva deve ser adotada imediatamente. Qual é o rumo? Há que se pensar, refletir e tomar decisões, escolher o caminho da recuperação.
Seria importante fazer uma boa seleção e recolha entre os escombros de tudo aquilo que pode ser reutilizado, não apenas como material de obra, “mas como parte da memória da cidade e mesmo da tragédia”, como disse o presidente do Iphan em visita à cidade destruída. Mas seria muito importante também, que se encarasse o desafio de abrir mão da reconstrução em moldes do passado daquilo que ruiu integralmente ou em sua quase totalidade. Poderíamos partir para construções contemporâneas que respeitassem gabaritos, volumetrias e a ambiência urbana que configura a escala e as características do espaço público formado pelo conjunto e não pelos imóveis, individualmente.
Este espaço, ou essa lógica urbanística é que faz de nossas cidades antigas, como São Luiz do Paraitinga, riquezas a serem preservadas. São os espaços indutores da convivência e dos encontros entre pedestres, encontros com urbanidade e conforto público. Espaços apropriados à festa, que toda cidade deveria ser. E que as novas edificações fossem feitas com qualidade, não somente técnica, mas projetual; e com ousadia. Poderíamos ter ali um bom laboratório arquitetônico da convivência do novo com o antigo; um experimento contemporâneo vigiado de perto pelo que tivemos de melhor no passado, na construção de nossas cidades.
sobre o autor
Marcelo Ferraz é arquiteto formado pela FAU-USP em 1978, é sócio do escritório Brasil Arquitetura, onde tem realizado vários projetos com premiações no Brasil e exterior. É também sócio fundador da Marcenaria Baraúna, onde desenvolve projetos de mobiliário, desde 1986.
Marcelo Ferraz, São Paulo SP Brasil