Os dias que antecederam o prazo final para desincompatibilização dos candidatos às eleições de outubro foram marcados, como de praxe, por um festival de inaugurações por todo país, e São Paulo não foi exceção. Contudo, não tendo conseguido inaugurar a tempo as duas primeiras estações daquela que talvez seja a principal obra de seu mandato, a linha 4 do metrô, cuja construção se arrasta há seis anos, o ex-governador José Serra encontrou um substituto original: com grande aparato, deu início, no comando de uma escavadeira, à demolição de dois grandes quarteirões com cerca de 40 mil metros quadrados de área total nos Campos Elíseos, o primeiro bairro especialmente destinado à elite paulistana, que remonta a 1878, e local originalmente escolhido pelos barões do café para erguer seus palacetes. Bastante satisfeito, declarou à multidão de jornalistas que o cercava que a destruição de parte do patrimônio histórico e arquitetônico da cidade era para ele “uma terapia” (1) – palavras que, para bons entendedores, são bastante reveladoras de um aspecto de sua personalidade. Os dois quarteirões a serem arrasados abrigam uma enorme diversidade de usos e de construções: prédios de apartamentos (um deles chegou a constar das páginas da Revista Acrópole), casarões centenários, um quartel brutalista do corpo de bombeiros, etc, mas sua maior atração era sem dúvida o prédio da antiga rodoviária, do início dos anos 60, que já foi cartão postal da cidade e pode ter servido de inspiração para alguns ícones da arquitetura contemporânea, como será mostrado mais abaixo.
A justificativa do governo do Estado para esse urbanicídio em massa atende pelo nome de “Complexo Cultural Teatro da Dança”, que pretende abrigar “diferentes equipamentos culturais, devido à carência de espaços específicos, para a encenação de musicais, óperas, shows de música popular e outras manifestações artísticas, contando para isso com “três teatros: um para dança e ópera com 1.750 lugares; outro para 600 ocupantes, destinado a teatro e recitais; e uma sala experimental, com palco reversível e capacidade para 450 espectadores”, de acordo com uma notícia no site do governo do Estado (2). O autor do projeto – escolhido a dedo – é o escritório de arquitetura Herzog & de Meuron, galardeado com o prêmio Pritzker de 2001, e cuja obra mais conhecida talvez seja o Estádio “Ninho do Pássaro” em Pequim. Ainda segundo o informe do governo, “ao contrário da Sala São Paulo, o novo complexo será um centro cultural aberto e vivo”. A Sala São Paulo, explicitamente reconhecida como um local “morto” pelo próprio governo tucano que a idealizou, fica em frente ao futuro Teatro da Dança e sedia a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), que se tornou notória ultimamente não tanto por sua excelência musical mas pelos polpudos salários pagos a seus músicos e a seu ex-maestro – 100 mil reais... mensais, acertados por meio de contrato secreto e com valores em dólar (3), isso em 2002, e que ainda recebeu 4,3 milhões de indenização depois de ser demitido devido a um rodízio de mandatários tucanos (que como é sabido, adoram se dar umas bicadas). Tudo com dinheiro do contribuinte, é claro.
O festival de gastança da Osesp, no entanto, é uma ninharia quando comparado ao custo astronômico do Teatro da Dança, obra que aliás já dobrou de preço antes mesmo de iniciada: orçada inicialmente em 300 milhões de reais, a última estimativa é que custe 600 milhões (4), deixando no chinelo até mesmo a Cidade da Música do Rio, um já clássico exemplo de desperdício e malversação de dinheiro público. E tudo indica que, tendo em vista os notórios padrões tucano-petistas de moralidade e eficiência, esse valor será amplamente superado. Digo tucano-petistas porque, em pleno ano de eleições presidenciais, o governo federal resolveu dar uma mão para seus adversários, entrando com boa parte do dinheiro do projeto através do BNDES.
A “explicação” dada pelo ex-governador para um projeto de custo material e social tão absurdamente exorbitante é emblemática do grau de delírio a que chegou a classe política brasileira. Segundo Serra: “as obras culturais ficam mais no tempo do que as de infra-estrutura [...]. Por exemplo, a gestão do Covas é muito lembrada pela Sala São Paulo, que não foi a sua maior obra. Covas começou o Rodoanel, esticou três linhas de metrô, fez muitas coisas. Mas, na verdade, o que se lembra é no caso da cultura porque é uma realização singular, e não rotineira”. Não é preciso ser Freud para compreender que as verdadeiras intenções por trás da propaganda oficial não passam de um capricho de um político que busca satisfazer sua vaidade fazendo algo que “fique mais no tempo” e que seja mais caro e mais grandioso do que o realizado por Covas, um de seus rivais no PSDB.
E apesar de tudo isso, o debate acerca de uma obra tão discutível nas universidades, nas entidades de classe, na imprensa, tem sido quase inexistente. Alguns arquitetos se limitaram a criticar o fato de haver sido indicado (sem concurso) um escritório estrangeiro, atitude essa que pode facilmente dar margem a interpretações do tipo “eu também quero o meu”, inclusive porque deixaram de lado questões como o custo obsceno da obra, seu impacto, sua efetividade na melhoria do bairro, a expulsão de centenas de moradores e comerciantes, muitos dos quais ali instalados há décadas, e a devastação que causará ao patrimônio arquitetônico da região, principalmente com a perda da antiga rodoviária de São Paulo, cuja fachada de bolhas de acrílico multicolorido, outrora considerada kitsch, por coincidência ou não se viu replicada em megaprojetos badalados da arquitetura contemporânea: é praticamente idêntica à do Estádio Camp Nou em Barcelona, de Norman Foster e semelhante à do Allianz Arena e do Estádio da Basiléia, dos próprios Herzog e de Meuron.
A revolta dos arquitetos tupiniquins é de certo modo compreensível, uma vez que Herzog e de Meuron embolsarão pelo projeto uma quantia fabulosa que vai de 6,5% a 8,5% do valor total da obra. Devem ser os arquitetos mais felizes do mundo a julgar pelo tamanho da bolada, mas é altamente recomendável que utilizem parte dessa fortuna para contratar um escritório de relações públicas a fim de minimizar o estrago feito por declarações como as de Serra e de Jacques Herzog, que em entrevista à Folha confessou candidamente que o Teatro de Dança é destinado a nada menos que a nossa querida elite brasileira (5) – algo que ninguém dizia mas que todo mundo já sabia, visto que questões como saúde, educação, segurança e transporte público nunca foram mesmo o forte dos nossos governantes. Mas pelo menos, antigamente a elite tirava dinheiro do próprio bolso para pagar iniciativas como o Teatro Cultura Artística ou o acervo do Masp. Uma perguntinha simples: será que na Suíça, o país da democracia direta e terra natal da dupla de arquitetos, uma obra pública multimilionária destinada à elite seria sequer cogitada pelos governantes?
Outra perguntinha inócua: por que a função principal de um dos prédios mais caros do Brasil será abrigar atividades ligadas à dança? Uma arte respeitável, sem dúvida, mas por que não um prédio de 600 milhões (para começar) dedicado às histórias em quadrinhos? Ou ao cartum, ao repente, ao cordel, etc? E por que deixar de lado o esporte, tão ignorado pelo poder público quanto a cultura? Que tal um complexo esportivo destinado ao nosso tão sofrido basquete, por exemplo? Agora, por que justo a dança? Será que é porque a agora ex-primeira-dama do Estado e esposa de Serra é bailarina de profissão?
O Teatro do Absurdo constitui a mais recente adição a um projeto de “renovação urbana” dos governos estadual e municipal, denominado “Nova Luz”, que consiste basicamente em arrasar um dos bairros mais antigos e tradicionais da cidade (o de Santa Ifigênia, não o da Luz, este já devidamente arrasado pelas obras da linha 4 do metrô) para transformá-lo numa espécie de Vila Olímpia central (6), ou algo que tucanos e DEM considerem sofisticado, bonito e “globalizado”. Cinco anos e milhões de reais após o anúncio do projeto, os resultados até agora são exatamente opostos ao pretendido: quarteirões inteiros foram demolidos, os poucos comerciantes e moradores que davam alguma vida ao local foram expulsos, o maior pólo gerador de empregos da região, o centro comercial do setor têxtil que deu um novo uso à velha rodoviária, preservando sua original arquitetura, foi convenientemente interditado pelo Contru (Departamento de Controle do Uso de Imóveis) assim que os lojistas e trabalhadores começaram a se mobilizar para resistir à perda de seus negócios e seus empregos (7). Por outro lado, nem um centavo dos milhões gastos até agora foi utilizado no restauro de qualquer das inúmeras jóias arquitetônicas da região tais como o antigo Hotel Escala, situado na esquina da Rua do Triunfo com a Rua dos Gusmões, cuja esplêndida cúpula desabou há pouco tempo (e o restante do prédio pode ter o mesmo destino caso obras de consolidação não sejam realizadas urgentemente). No ambiente desolado que se tornou a “Nova Luz”, os viciados em crack não só foram justamente os únicos que proliferaram como, desde o início do projeto se espalharam rapidamente pelos bairros vizinhos. Como se tudo isso não bastasse, a Prefeitura tramou outra artimanha maquiavélica para expulsar de vez os donos de imóveis da região e praticamente confiscar suas propriedades: aumentou o IPTU dos imóveis da Cracolândia, o local mais degradado do Centro em mais de 80%, enquanto que em trechos da Avenida Paulista, uma das áreas mais nobres da cidade, houve diminuição de 3%! (8)
O projeto “Nova Luz” e o Teatro do Absurdo merecem ser incluídos numa pequena, mas tristemente célebre, linhagem da história do urbanismo – a dos delírios megalomaníacos. Um dos últimos e mais desastrosos exemplos foi o “Centrul Civic” do ditador Nicolae Ceausescu em Bucareste, apelidado carinhosamente pelos romenos de “Ceaushima”. A diferença entre ambos é que o “Centrul Civic” foi um dos fatores principais que levaram à deposição e subseqüente execução do ditador romeno, enquanto que em São Paulo, o “Nova Luz” merece a indiferença de uma opinião pública apática e anestesiada. Afora esse detalhe, tais projetos têm tudo em comum, a começar o fato de só serem possíveis em regimes ditadoriais, e aqui no Brasil estamos de fato vivendo um tipo de ditadura, mais sutil porém não menos insidiosa – a ditadura da corrupção, caracterizada pela impunidade dos crimes cometidos pelos governantes, pelo desprezo aos direitos individuais e coletivos (como se viu na expulsão desumana de moradores e comerciantes da Luz, Campos Elíseos e Santa Ifigênia) e pela manipulação da sociedade utilizando-se de doses maciças de propaganda, que por meio de sofisticados métodos de propaganda e manipulação, buscam convencer os cidadãos de que arbitrariedade é firmeza, que desperdício é investimento, de que destruição é progresso. E como todo delírio autoritário, o “Nova Luz” foi concebido à imagem e semelhança de seus idealizadores, os tucanos, que gostam de se apresentar (bem como a classe política brasileira em geral) como democráticos, modernos, esclarecidos, progressistas – e alguns deles talvez até realmente se vejam assim; faz parte do delírio – quando na verdade são arcaicos, autoritários, arrogantes (com o povo), servis (com os poderosos), e – talvez o mais assustador – completamente dissociados da realidade.
Há outro pecado comum a esses projetos mirabolantes: considerar os prédios antigos como o grande problema, quando na realidade, raramente o são; o problema geralmente está nas pessoas, e quase sempre nos políticos – quanto aos prédios antigos, são parte da solução, como bem ensinou Jane Jacobs, entre várias outras razões, porque, por serem mais baratos, são o lugar ideal para estudantes, jovens casais, famílias de baixa renda, pequenos empreendedores, negócios recém-abertos, etc, gerando vida, dinamismo e renda para a região onde se encontram. É assim que os prédios antigos são considerados em todos – repito, todos – os projetos de requalificação urbana dos países desenvolvidos nos últimos quarenta anos. Na verdade, um governante honesto e minimamente competente (algo que São Paulo não conhece há anos) resolveria o problema da degradação dos bairros da Luz, de Sta. Ifigênia e dos Campos Elíseos com uma fração do dinheiro desperdiçado somente com o Teatro do Absurdo, pois é fato que uma das principais causas da deterioração desses bairros foi justamente ter sido abandonada durante décadas pelo próprio Poder Público, que agora resolve gastar bilhões de reais num projeto de “revitalização”. Tais bairros clamam simplesmente por duas obrigações elementares do Poder Público: segurança e limpeza, requisitos insuficientes para recuperar a área por si sós, mas que uma vez presentes, criarão as condições para atrair novos moradores e comerciantes à região, estes sim os verdadeiros agentes da mudança, sem a necessidade de se demolir um só prédio e de se gastar um centavo com desapropriações – atos de força que só se justificam por medidas de grande necessidade e de benefícios sociais ou econômicos incontroversos.
O mais perverso dessa história é que o sacrifício da rodoviária, de centenas de empregos, de negócios, de moradias talvez tenha sido totalmente em vão. Ao invés de levianamente se criar um mero factóide no apagar das luzes da atual administração tão somente para ganhar visibilidade eleitoral, um mínimo de prudência recomendaria que a decisão sobre uma obra tão custosa, tão complexa e de execução tão demorada fosse deixada para a próxima administração a ser eleita em outubro, não sendo implausível que no próximo governo o Teatro de Dança vá dançar, até porque é certo que o governo do estado passe para as mãos de um adversário ou mesmo de um inimigo de José Serra (sendo que entre os últimos se inclui seu próprio colega de partido Alckmin, o mais bem situado nas pesquisas por enquanto), bastando um momento de lucidez para que decida engavetar um projeto superlativamente faraônico e sem sentido. Sugiro que, neste caso, seja feito no lugar o Museu da Corrupção, o Monumento às Vítimas dos Governantes Desvairados e uma prisão para políticos corruptos, aberta à visitação para grupos de escolas. Mas, na hipótese e que sua construção venha mesmo a ocorrer, o grande espetáculo se dará mesmo ao redor desse aquário gigante para a elite ver e ser vista, com a legião de mortos-vivos do crack dançando a dança de São Vito, os do lado de dentro e os do lado de fora lançando olhares mútuos de espanto, ódio e desprezo. Afinal, o lúmpen e a elite têm muito mais em comum do que imaginam.
notas
1
Folha Online,23/03/2010. Serra defende legado cultural de seu governo. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u710900.shtml
2
Portal do Governo do Estado de São Paulo, 23/03/2010. Governo inicia 1ª etapa das obras do Complexo Cultural – Teatro da Dança. Disponível em: http://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/lenoticia.php?id=208690
3
Folha Online, 25/07/2002. Governo de São Paulo reduz salário do maestro da OSESP. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u25957.shtml
4
Estadão.com.br, 13/04/2010. Demolição de rodoviária começa a mudar a Luz. Disponível em: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100413/not_imp537573,0.php#noticia
5
Folha Online 05/12/2009. "SP é laboratório do modernismo", diz arquiteto Jacques Herzog. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u662155.shtml
6
Bairro da moda das multinacionais, dos novos-ricos e da juventude dourada paulistana, distante 8 quilômetros do Centro.
7
Folha Online, 10/02/2009. Comerciantes relacionam interdição de shopping no centro de SP com desapropriação. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u501666.shtml
8
Folha Online, 17/11/2009. IPTU na cracolândia terá reajuste maior do que na avenida Paulista. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u654562.shtml
sobre o autor
Jorge Eduardo Rubies é presidente da Associação Preserva São Paulo.