Este texto é dedicado a guias de arquitetura, assim como a todas as obras que cultuam as personalidades e as realizações dos grandes arquitetos. Por mais homenageados que tenham sido, é sempre rota segura para historiadores que evitam caminhos difíceis, que buscam receber em suas faces as luzes dos luminares, que querem se associar ao sucesso. Além disso, os guias de arquitetura sempre contêm palavras doces, elogios, frases de efeitos. São tranqüilizadores, sobretudo quando se quer que a ordem do mundo não apresente essas faces perturbadoras dos problemas urbanos.
Este texto também é dedicado a uma reflexão sobre as formas que as críticas teóricas, ideológicas, políticas, entre outras formas candentes, podem assumir numa notória, famosa escola pública de arquitetura, que vive um momento de colapso em sua capacidade de diálogo público, com a cidade e seus professores.
Este texto ainda é dedicado ao questionamento do “papel das escolas de arquitetura” na realidade urbana, nos problemas de projeto, gestão e estudos urbanos. Nesse sentido, o texto tem como pressuposto o compromisso de nossas escolas com a crítica das políticas urbanas, com a luta cidadã contra a corrupção da gestão urbana, de forma pública, conspícua, independente – mas a que custo?
O caráter dos guias dos cinquenta anos de Brasília
Nestes cinquenta anos de Brasília, guias de arquitetura podem significar o oposto de “rota segura” para a compreensão dos problemas urbanos da cidade, se forem comprovadamente associados a grupos de profissionais com um histórico bem específico: de conduta de repressão ao ativismo político e ao pensamento crítico que confronta a corrupção territorial e das políticas urbanas da capital do país. Pior ainda, se o prestígio do nome da principal escola pública de arquitetura de Brasília está associado à repressão crítica e política da luta contra a corrupção na universidade e na cidade, por um lado, e por outro, ao escapismo dos guias, como forma de produção intelectual deslocada, cara, cortesã e “hegemônica”, representativa de uma forma perversa de alienação (1).
Neste texto, antes de mais nada, devo render reconhecimento ao portal Vitruvius pela coragem de assegurar a palavra a quem pede, qualificadamente, o direito de falar a seu grande público de assinantes. Não sei quantos dos leitores deste respeitado portal da arquitetura e urbanismo brasileiros têm pensado no assunto, mas não é tão simples manter a mente aberta diante da possibilidade do advento de opiniões contraditórias sobre a cidade, a prática profissional dos arquitetos, os interesses políticos dos arquitetos, a qualidade do que se produz em arquitetura e urbanismo no Brasil, as virtudes e vícios de nossos heróis, malandros e vilões, sobre tudo o que interessa aos praticantes e aos estudantes – assim como aos estudiosos dos próprios arquitetos.
Roberto DaMata se refere claramente a vários males da intelectualidade brasileira que fazem adoecer a alma nacional. Uma é a subserviência a referências não-caboclas, não-brasileiras, não-ratificadas por autoridades locais que se consideram os grandes julgadores do pensamento crítico “aceitável”. DaMatta denuncia as marcas claras de uma intelectualidade arrogante e sem brilho próprio, mas que não se exime de destruir e perseguir sistematicamente tudo aquilo que foge de seu controle (2).
As unanimidades que nos dão a necessária convicção
Quando, em 2003, propus um provocativo artigo sobre o modo como as nossas entidades nacionais estavam a criar o Conselho de Arquitetura e Urbanismo – intitulado “Toda unanimidade é burra” (3) – soube do forte criticismo que esse texto gerou. Soube, pois os críticos não se dignaram a escrever e assinar suas críticas, em Vitruvius ou em missivas ao autor. Ao contrário, pressionaram o portal a pensar bastante antes de aceitar artigos como aquele! Essas críticas “na surdina” somente confirmaram a tese central do próprio artigo: o desejo autoritário de criar unanimidades e eliminar o debate! Trata-se, então, de criar a certeza, criar a verdade, através da unanimidade avassaladora, totalitária, insofismável. Literalmente, como disse o grande Nelson Rodrigues, “toda unanimidade é burra”.
Raymundo Faoro não se referia precisamente à universidade brasileira (braço público e braço privado, confessional ou não) quando expõe o modo como os intelectuais também fazem parte do jogo patrimonialista, tanto dos modos de apropriação mais direta e devastadora dos recursos públicos, quanto das formas que contribuem para o controle social do que podemos chamar, hoje, de “pensamento crítico”. Pena que Faoro não tenha investido sobre o patrimonialismo intelectual na matriz de produção dos próprios intelectuais: a universidade (4). Com algum esforço, cedo ou tarde chegaríamos aos intelectuais do urbanismo brasileiro, como no caso da reacionária Brasília.
(Ironicamente, Raymundo Faoro virou um Palácio de Brasília, pois agora é essa a denominação do imponente Ministério da Justiça, obra de Niemeyer: Palácio Raymundo Faoro, que não é a sede do combate ao patrimonialismo).
Uma cidade sem história, mas cheia de esqueletos no armário
Quando, em 2010, propus outro provocativo artigo sobre o modo como, aos cinquenta anos, Brasília não tem uma história crítica, que – em especial – examine as relações perigosas entre o governo e os próprios arquitetos, até o portal Vitruvius hesitou (5), fundamentadamente, abalado por pelo menos uma ação judicial contra outro trabalho anteriormente publicizado. E como o artigo abria séria discussão sobre figuras nacionais como José Sarney e Tancredo Neves, além de Oscar Niemeyer e Jaime Lerner, assim como figuras “distritais” como Joaquim Roriz e José Roberto Arruda, assim como o “local” Paulo Zimbres, sem dúvidas sua publicação exporia o portal – que refletiu e publicou.
Esses elementos devem ser dados no contexto desse momento que antecede as eleições nacionais de 2010, quando o Presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva, ataca barbaramente a liberdade de imprensa, de um modo quase chavista. Logo o Lula, que sem a imprensa mais corajosa e responsável, que o anunciou e o “mediatizou” como liderança civil brasileira, não seria nada!
A história (muito mal contada) de Brasília, cidade-sem-história
Em um ponto muito menor, a questão da história mal contada de Brasília gerou intrigantes reações locais, que pretendo apresentar aqui, para a reflexão dos colegas leitores de Vitruvius. Aliás, a reação que gerou foi anterior à própria publicação do texto pelo portal Vitruvius.
Quando o texto da cidade-sem-história ainda estava em finalização, eu o submeti, em fevereiro desde ano, ao excelente geógrafo Aldo Paviani, professor emérito da UnB, e pessoa tão crítica com relação aos descalabros brasilienses quanto pessoa íntegra e coerente nos seus criticismos. Paviani considerou o artigo um tanto “apimentado”, mas que merecia ser levado a um grupo mais amplo, para o debate. Com meu assentimento, ele o repassou a um grupo de quase duas dezenas de professores e pesquisadores associados ao Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais – NEUR, pertencente ao CEAM – Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares – da UnB. Esse encaminhamento teve dois inesperados desdobramentos: o primeiro foi uma reação pública de baixíssimo nível de uma grande historiadora de Brasília, cujos termos e conseqüências civis não serão tratados aqui. (Em tempo: a reação de baixíssimo nível foi seguida, um par de dias depois, por um pedido privado de “bandeira branca”, coisa de gente que detrata publicamente e tenta se retratar privadamente).
A academia, autora de guias, reage com raiva cega
A segunda reação foi institucional. Alguns dias depois da divulgação feita por Paviani, do texto sobre a cidade-sem-história, o Conselho da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília, em sua 286ª reunião (26 de fevereiro de 2010) resolve afirmar, com censura, que o artigo:
- denigre a imagem da instituição;
- desqualifica de maneira vazia e ofensiva a produção acadêmica da unidade;
- merece uma Nota Oficial (que foi aprovada, mas que nunca vi) em que o Conselho da FAU UnB demonstra a sua rejeição total às agressões contidas no documento citado;
- deve demandar da Administração Central da Universidade de Brasília as providências administrativas cabíveis em relação à conduta do professor (6).
Bem, isso é o que eu chamo de crítica acadêmica institucionalizada: O Diretor de uma Faculdade não gosta de artigo “crítico” de um professor, reúne o Conselho da Faculdade e, sem convocar o autor do nefasto manifesto (servidor público, professor da sala ao lado, 18 anos de docência, 30 de formado etc.), e exige que esse Conselho Acadêmico repleto de doutores repudie de forma raivosa, visceral, o odioso argumento contra os historiadores de nossa academia. Ah, se os corruptos fossem tratados assim...
Quando a história deve caber em um guia turístico
Afora a possível falta de decoro na sumária condução da reprimenda pública e institucional – liderada por um diretor de faculdade que parece certo de que seu direito de reprimir é intrinsecamente unilateral, absoluto e infalível – temos aí o indício de que as coisas realmente vão muito mal em Brasília (pelo menos nos círculos que exibem as credenciais de excelência na produção acadêmica, que representam a universidade pública em Conselhos de Governo que, por sua vez, sanciona as grandes operações imobiliárias, as grandes consultorias, o monopólio do projeto urbano por um só grupo de profissionais urbanistas, num círculo de privilegiados), temos outros problemas de mérito na terminativa reprimenda pública do prestigioso Conselho da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UnB, contra meu artigo da cidade-sem-história.
A ética da crítica na academia
Os Conselhos de Faculdade devem discutir a produção acadêmica de todos os seus membros, mas de forma sistemática, e não oportunista, deletéria, ad hominen. Nos casos em que um de seus membros se comporta como um enfant terrible – ou, no caso, um ancien terrible... –, seus trabalhos devem ser discutidos publicamente, na melhor tradição acadêmica, com réplicas e tréplicas. Esse artigo sobre a cidade-sem-história foi objeto de convocação, por mim e com a autorização do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares, da UnB, para a discussão pública, em 11 de março último, sem que um só membro do Conselho da Faculdade de Arquitetura, que “examinou profundamente o documento” comparecesse. A manifestação do Conselho da Faculdade revelava-se como censura primária, como assédio moral, baseado na sua inassediável posição de poder.
A cidade-sem-história, precariamente denunciada
Na ausência de verve crítica que vá ao mérito dos argumentos sobre a cidade-sem-história, eu mesmo ofereço pelo menos três argumentos críticos à minha crítica – já que a discussão acadêmica acabou em truculenta repressão, no melhor estilo do Senhor das moscas (7):
Crítica à cidade-sem-história: guias turísticos e de obras notáveis, assim como livros contendo melosas adoxografias, apologias, adjetivados encômios e panegíricos podem conter enorme volume de informação histórica positiva.
Contra-argumento: nada contra os cândidos guias, de um modo geral. No entanto, essa máxima forma de produção acadêmica destinada ao grande público está visceralmente associada aos vinte anos de desertificação intelectual de uma escola de arquitetura que foi uma das mais engajadas no grande debate urbano da cidade, em todas as suas políticas públicas, num combate diuturno, que fez escola – pelo menos em mim. Os “guias” estão associados ao colaboracionismo com governantes corruptos, com dirigentes universitários corruptos, com a devastadora corrupção territorial dos vinte anos, em Brasília. Os “guias” estão associados à exclusão de intelectuais combativos, à morte da multidisciplinaridade, a um reacionarismo profundo, que dissocia, neste momento, a FAU UnB de suas origens combativas, de responsabilidade pela cidade; os guias são símbolo de um ciclo da própria evolução urbana em que a democracia foi facilmente apropriada pela corrupção; os pensadores da cidade mostraram que, por omissão crítica e por colaboracionismo em alto nível, a cidade está mesmo entregue à sanha dos oportunistas e carreiristas.
Por quê há, aos 50 anos de Brasília, reações tão fortes a uma crítica tão fácil de rebater?
Explicação 1: É o espírito da época, o Zeitgeist brasiliense, que levou até mesmo o democratíssimo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva a orquestrar, neste mês de setembro de 2010, um ataque contra os setores da imprensa que criticaram as evidentes limitações políticas e intelectuais de sua candidata à Presidência da República.
Explicação 2: É porque os destacados historiadores da academia estavam, por uma coincidência extraordinária – que, infelizmente, demonstra a postura diversionista e oportunista denunciada pela cidade-sem-história – a preparar o lançamento de um importante livro, exatamente na linha dos “guias turísticos e das apologias a personalidades”, chamado Guia de obras de Oscar Niemeyer (8). É uma impressionante coincidência – cruelmente prevista no artigo da cidade-sem-história – e, sobretudo, trata-se de mais um guia – com as belas imagens da arquitetura do grande Oscar Niemeyer, nec plus ultra como convém às nossas vicarices acadêmicas, aos nossos diversionismos políticos, bem ao gosto de nossa deslumbrada aristocracia acadêmica.
Negociando a história da cidade
Como conclusão, coloco duas questões, centrais à reflexão da cidade-sem-história e à Ata 286:
- qual é o papel de uma escola pública de arquitetura – aliás, a escola pública de arquitetura, no caso de Brasília, fundada pelos fundadores da cidade – no debate público de seus problemas urbanos, de suas políticas urbanas, de defesa de sua comunidade, em um período tão vulnerável quanto o que – há vinte anos – atravessa Brasília, sob a intensa corrupção criada por governantes, grileiros e especuladores imobiliários?
- o que os professores das universidades públicas realmente professam, num tempo em que os governos interessados em apoio qualificado às suas políticas públicas, vêem que a academia não se nega a participar de suas obras e oportunidades “de forma negociada” e particular, que lhes corrompe a independência de julgamento e pensamento – esperada, pela comunidade, dos privilegiados intelectuais brasileiros e brasilienses?
notas
1
É exatamente isso que é afirmado em artigo publicado na revista Minha Cidade. BARRETO, Frederico Flósculo Pinheiro. Brasília aos 50 anos: a cidade sem história, por pura conveniência. Minha Cidade, São Paulo, n. 10.117, Vitruvius, abr. 2010 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/10.117/3407>.2
DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro, Rocco, 1997.3
BARRETO, Frederico Flósculo Pinheiro. Toda unanimidade é burra. Arquitextos, São Paulo, n. 03.036, Vitruvius, maio 2003 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/03.036/682>.4
FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Porto Alegre, Globo, 1958.5
Nota do editor – o artigo foi publicado no portal Vitruvius em abril de 2010, conforme nota 1. Como fizemos em duas ocasiões anteriores, quando publicamos artigos polêmicos de autoria de Frederico Flósculo Pinheiro Barreto, a publicação do presente artigo não pressupõe o apoio do editor aos argumentos aqui tratados. Salientamos que alguns fatos aqui tratados são desconhecidos por nós e diversas das ideias aqui apresentadas não são compartilhadas por nós. Mesmo sendo desnecessário alertar o leitor sobre nosso posicionamento – pois fala melhor nosso histórico de atuação à frente do portal e de outras iniciativas –, o que está em questão é o debate democrático e o acesso necessário de todos à divulgação e difusão de suas ideias.6
Essa ata de um Conselho de Faculdade, que condenou o artigo publicado em Vitruvius, somente foi aprovada em 9 de julho de 2010. O acesso público a essa ata foi posterior a essa data. As decisões tomadas eram desconhecidas de membros estranhos ao Conselho da Faculdade, como eu, até então. Após a aprovação, o repúdio ao artigo da cidade-sem-história passa a ser público, acadêmico, notório – e sem direito a réplica ou reflexão, no mesmo local da conflagração.7
Lord of the Flies, o famoso romance de William Golding (1954), que trata do estado de progressiva selvageria que se desenvolve em um grupo de garotos abandonados em uma ilha tropical, depois da queda do avião que os transportava. Sem a supervisão de adultos, os garotos involuem até cometer atos de inacreditável indignidade. Até mesmo uma escola de arquitetura, se abandonada a uma geração ambiciosa, mas que não demonstra amplitude crítica e política, pode se transformar num lugar de prioridades duvidosas, surpreendendo-se com obviedades. Somente a reflexão crítica e partilhada pode quebrar esses ciclos viciosos, é minha contribuição.8
FICHER, Sylvia; SCHLEE, Andrey Rosenthal; FRANÇA, Joana. Guia de obras de Oscar Niemeyer: Brasília 50 Anos. Edições Câmara. Brasília, IAB/Câmara dos Deputados, 263 p.
sobre o autor
Frederico Flósculo Pinheiro Barreto é arquiteto e professor do Departamento de Projeto, Expressão e Representação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUnB.