In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.
português
Rossana Honorato apresenta sua interpretação pessoal sobre o bairro onde habita em João Pessoa.
HONORATO, Rossana. O canto de onde conto. Minha Cidade, São Paulo, ano 14, n. 160.01, Vitruvius, nov. 2013 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/14.160/4940>.
O mar é uma referência marcante no canto onde moro. O bairro foi sensivelmente batizado com um nome que traduz as suas características territoriais, felizmente sem reproduzir homenagens, reconhecíveis ou não, a personalidades imortalizadas em nossa história sem qualquer consulta pública.
Miramar é lugar com o qual eu passei a conviver há menos de dois anos. Escolhido por sua localização geográfica estratégica no ordenamento da cidade, privilegiado por uma meia distância entre o antigo centro e a praia mais famosa da cidade, Tambaú, e abastecido de serviços de bairro que dão um pouco de autonomia à vida local: supermercado, farmácia, posto de combustível, paradas de ônibus de várias linhas...
Minha nova moradia foi resultado de uma busca no mercado imobiliário por praticamente dois anos. Havia mais desejo no olhar especializado da arquiteta do que poder aquisitivo para concluir a procura com satisfação.
Como comprei “na planta” – como o mercado denomina a negociação antes de iniciar-se a construção -, ao conhecer o projeto, me encantei: um edifício monocromático – apesar de eu adorar as composições coloridas, eu temia esgotar o meu prazer de olhá-lo ao longo da vida –, situado em uma rua sem saída e paralela a uma grande arterial que liga o Centro ao litoral, grandes janelões, quase de piso a teto, que, mais que ventilam, abrem-se à paisagem ao redor e adornam serenamente três de suas fachadas, e uma quase perfeita área de lazer: faltam-lhe árvores e sombras naturais.
Dezesseis andares estruturam a verticalidade do edifício onde mora a militante integrada aos ambientalistas em defesa da conservação da normativa municipal, que regula o gabarito de altura das edificações na orla, e era no mais alto deles que desejava residir, para desfrutar por mais tempo das visuais da bela paisagem do lugar.
As rédeas do bolso racionalizaram que o, rodeado de misticismos, número 7 seria bastante simpático, assim como é meu filho que nasceu em uma data recheada de números 7. A empreitada desafiadora me fez conferir, pós-instalada, a identidade privada de minha nova morada: 8 – um numeral que simboliza o infinito universal.
Dia a dia, a paisagem vista do andar me convida a parar um minuto que seja ao longo do dia.
Se eu quiser, posso tomar o café da manhã mirando a linha do horizonte. E eu prossigo reconhecendo como transita o astro solar de um equinócio ao outro, ao longo do calendário anual, e sempre me surpreendendo com a súbita aparição de nosso satélite em sua maior pujança: a bela lua cheia.
Em minha vizinhança, há um grande parque adornando a vista do litoral à frente: o Jaguaribe; lamentavelmente engolido, pouco a muito, pelo processo de expansão urbana sem planejamento e sem qualquer deferência aos reinos da natureza.
Vez em quando, os arredores de meu novo lar remontam a memória do bairro de minha vida, a Torre, onde vivi da infância até o ano de 2011; com rápidos e dispersos saltos por outras regiões da cidade, variando de experiências de morar, da residência unifamiliar à coletiva.
Da janela de meu quarto-escritório também paro, quando em vez, para observar a comunidade Yayá Amorim, uma das zonas especiais de interesse social da cidade, que parece assustar parte de meus vizinhos, mas para mim é motivo de muita curiosidade e de oportunidade de ‘praticação’ democrática, por me fazer escutar um repertório musical que vai do funk ao brega, do sertanejo ao hap e ao romântico popular. Noutras circunstâncias, brigas de vizinhos mais parecem vozes emitidas por novelas globais, as mais dramáticas.
Ainda que o silêncio impere em meu lugar, já me deixam perplexa as recentes autorizações de adensamento do uso do solo em uma rua tão curta e sem saída. Um novo residencial multifamiliar e uma instituição pública recém-instalada ao lado de um edifício educacional demonstram conflitos nascentes, em tão pouco tempo, da falta de controle do potencial construtivo do bairro; ao contrário do que eu imaginara garantir uma rua sem saída: a não atratividade exercida sobre parte de habitantes da cidade.
Em minha varanda, um sinaleiro diariamente transmite mensagens dos ventos. Sinto que ele acalma minha pequena família e agrada os ouvidos das amizades que me visitam sem cerimônias.
Em minha morada tento exercitar novas relações de sociabilidade; antes negadas em minha juventude. A proximidade da comunhão da vida em habitações coletivas me incomodava. Hoje, eu desconstruo o desconforto anterior com um exercício diário de alteridade frente a tantas realidades familiares distintas acomodadas sobre um ‘mesmo’ teto. Também curto diariamente a pequenina pessoa que cresce no apartamento ao lado. Procuro priorizar as reuniões e festas do condomínio e desenvolvo um esforço de disciplina que esse jeito de morar obriga.
Habito a cidade em que nasci: João Pessoa, capital do estado da Paraíba, e me regozijo somente com o fato de a ela pertencer. Território carregado dos mais diversos contrastes se reúne às singularidades do lento desenvolvimento socioeconômico municipal e da, relativamente recente, expansão urbana que ainda resguarda parte da fisionomia de sua geografia, que mistura rios a mares, a maceiós e a lagoas, parques de mata nativa e um sítio fundador que ajuda a contar a história urbana do Brasil.
Se há tanto verde e azul a içar meus olhos do sétimo andar, aos poucos e tão rápido, observo como o azul do mar se dissipa no horizonte, decretando, para mim, que eu ainda vou perambular em busca da morada de meus sonhos. Submersa em meio à mata densa de um modesto sítio urbano: um hiato cercado por uma fortaleza verde que distancia, em poucos passos, o meu desejo de me preservar do meu desejo de me misturar.
Nele, sei que me acostumarei a conviver com as primas das muriçocas mais famosas do mundo, que reúnem em meu bairro, uma vez ao ano, gentes de todas as partes da cidade a entoar um mantra coletivo: João Pessoa sonha...
nota
Este texto resultou de exercício extraordinário apresentado à disciplina: “Estado, Planejamento e Território II”, ministrada pelo Arquiteto e Professor do IPPUR, Doutor Mauro Kleiman. Campina Grande, julho de 2013.
sobre a autora
Rossana Honorato é professora assistente da UFPB, pesquisadora do Laboratório do Ambiente Urbano e Edificado – LAURBE – DA – CT – UFPB. Arquiteta e urbanista e mestre em Ciências Sociais (Sociologia Urbana) pela UFPB e doutoranda em Planejamento Urbano e Regional do Programa Interinstitucional UEPB – IPPUR-UFRJ.