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GHIONE, Roberto. A virada. Movimento Ocupe Estelita começa a dar esperanças. Minha Cidade, São Paulo, ano 14, n. 168.03, Vitruvius, jul. 2014 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/14.168/5231>.
Resistir!! Ocupar!! Eis o grito de guerra que procura virar o jogo do modelo de cidade em construção, que teve, como fato marcante, a convocação para Audiência Pública pela Prefeitura do Recife no dia 17 de julho de 2014, exatamente um mês após o vergonhoso e covarde ato de reintegração de posse do Cais José Estelita ao consórcio de empresas proponentes do projeto denominado “Novo Recife”. Naquela data, o Batalhão de Choque da Polícia Militar expulsou os ocupantes que clamavam por uma cidade inclusiva, democrática e sustentável, com a força bruta que remete às épocas obscuras da ditadura. A estratégia do terror escolheu um dia de jogo do Brasil pela Copa do Mundo, contando com a anestesia geral da população, hipnotizada atrás da bola em dia semiferiado. O sangue e as lágrimas derramadas pelos integrantes do movimento Ocupe Estelita marcaram as contradições da democracia de aparências, neste tempo em que a questão urbana ganha contornos épicos.
Hoje, equipes técnicas da Prefeitura apresentam as diretrizes básicas para definir um projeto urbanístico para toda a área de influência do empreendimento, em processo que procura ser transparente e participativo. Movimentos sociais e entidades comprometidas com um projeto de cidade estimulante de um desenvolvimento inclusivo e integrador foram convocadas para realizar a virada do modelo construído para lucro de poucos, e, em contrapartida, privilegiar os benefícios sociais da propriedade urbana.
Este triunfo aparente do processo democrático, inclusivo, integrador e participativo revela a negligência e inoperância que, durante décadas, entregaram o desenvolvimento urbano aos interesses da iniciativa privada (amparado em leis superadas para as necessidades da cidade contemporânea), com a cumplicidade do poder público, comprada em épocas de campanhas eleitorais. A sensação de “já vou tarde” manifesta-se na cidade colapsada, violenta, imobilizada, segregada e excludente. Cidade já não mais para ser vivida, mas sofrida nos intermináveis engarrafamentos, nas calçadas e espaços públicos deteriorados, na sensação de violência, na improvisação e descaso com o transporte público, com a infraestrutura, com o patrimônio cultural e ambiental, e com as condições de habitação e urbanidade dos setores mais carentes da sociedade.
O projeto denominado “Novo Recife” foi a gota de água; o detonante de um processo que concentrou, em torno do grupo “Direitos urbanos”, a força necessária para dizer “chega” a um sistema excludente, irracional e insustentável de construir a cidade. Ela resiste, através dos grupos sociais esclarecidos, à arrogância e autoritarismo do capital associados à complacência do poder político.
A virada do jogo parece estar começando. A cidade, ferida com duas facadas no coração, ainda dá sinais de vida. A sociedade, sua essência vital, reage com energia aos desatinos de décadas de inoperância. A cobrança é irredutível, constante e inteligente, provida de sólidos argumentos técnicos e jurídicos, que não permitem espaços para fugir de objetivos que coloquem o bem estar social acima de qualquer outra prerrogativa de caráter particular ou setorial.
A cidade vivencia dias históricos, marcados pelos embates ideológicos entre um status quo associado ao poder conservador do capital, da mídia e da política, e a utopia da transformação social e urbana encarnada por grupos esclarecidos que possuem, como principal recurso, o uso inteligente das conexões através das redes sociais e um inquebrantável espírito de luta em defesa dos ideais de justiça e integração.
Resistir!! Ocupar!! Gritos de guerra que entraram na história da cidade. Desafios que colocam, na consciência do Prefeito, a decisão política acerca de um processo carregado de irregularidades. Que determinam se a história o julgará como herói ou vilão. Que colocam à prova a capacidade dos profissionais locais para elaborar o projeto de cidade que Recife e seus cidadãos merecem, tanto quanto a própria democracia como sistema de escolha do bem estar geral.
sobre o autor
Roberto Ghione, arquiteto, é formado pela Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. Pós-graduado em Preservação do Patrimônio, Crítica Arquitetônica e Planejamento Urbano pela Universidad Católica de Córdoba. Titular do escritório Vera Pires Roberto Ghione Arquitetos Associados, Recife, PE.