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my city ISSN 1982-9922

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O texto apresenta uma situação que ocorre nos bairros tradicionais de várias cidades brasileiras, quando perdemos não apenas patrimônio histórico, mas uma arquitetura capaz de gerar vida urbana, para reconstruir em seu lugar uma cidade sem identidade.

how to quote

SULZBACH CÉ, Ana Rosa; VIEIRA FIGUEIRA, Cibele. Devemos construir cidade destruindo-a? Preservação da paisagem e vida urbana. Minha Cidade, São Paulo, ano 14, n. 168.04, Vitruvius, jul. 2014 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/14.168/5234>.



A discussão sobre a noção de patrimônio, o valor do espaço construído e a complexidade de gerência de sua preservação, especialmente quando envolve propriedade privada, surge em uma questão real e recentemente suscita uma série de debates na cidade de Porto Alegre. E, provavelmente, o mais positivo seja o envolvimento que está acontecendo por parte da sociedade, do mundo acadêmico, do governo e dos particulares, onde todos estão encontrando espaço para se manifestar.

Fernando Diez, em texto que trata da reutilização do passado recente, chama a atenção para o crescimento dos imóveis considerados patrimônio e as “proporções alarmantes, inclusive em termos econômicos, na medida em que essa afirmação era, em muitos casos, também paralisante, limitando consideravelmente o uso possível dos edifícios tombados, e obrigando a Estado e particulares a se responsabilizarem por eles” (1). Este impasse, aplicado a situações específicas, nos permite entender sua complexidade, desde os diferentes olhares, mas também aponta sobre a dificuldade de construir preservando as qualidades inerentes aos lugares característicos da cidade. Inclusive nos faz pensar sobre a incapacidade atual de construir novos lugares singulares dentro da cidade.

Em Porto Alegre, o problema materializou-se no conjunto arquitetônico urbanístico da Rua Luciana de Abreu, entre as Ruas Barão de Santo Ângelo e Padre Chagas, constituído por seis residências de três pavimentos (cinco delas geminadas), construído na década de 1930. Projetadas pelo “Escriptorio de Engenharia, Architectura Technico Commercial” de Theo Wiederspahn, com a participação de Franz Filsinger, teve como Empresa Construtora A.D. Aydos & Cia. Ltd. Engenheiros. O referido escriptorio foi expoente máximo da arquitetura do Rio Grande do Sul entre os séculos 19 e 20, deixando como legado, entre outras obras de primeira grandeza, os prédios do Museu de Artes do RS – antiga Delegacia Fiscal -, o Memorial RS – antigo Correios e Telégrafos -, e os prédios da antiga Cervejaria Bopp/Brahma, estes com forte ligação com as casas em questão, construídas para os mestres cervejeiros alemães que atuavam na empresa.

Portanto, o conjunto de casas da Rua Luciana de Abreu expressa a memória do bairro e da cidade. Mas o debate vai além das questões do patrimônio. Remete-nos a uma discussão ainda mais ampla: traz à tona também o desejo pela cidade humanizada, onde se reconhece a identidade da rua e se estimula a interação social através da presença de elementos que conferem vitalidade urbana e promovem a segurança do espaço público.

Ao observar com atenção, poucos são os bairros de Porto Alegre onde a vida urbana plena e constante acontece. Dos diversos bairros que compõe a metrópole, podemos destacar poucos nesse sentido, entre eles, Cidade Baixa, Bom Fim e Moinhos de Vento, que historicamente oferecem às pessoas os estímulos para o uso de seus espaços públicos e especialmente da rua. Nestes bairros, de forma espontânea, são as antigas casas as maiores responsáveis pela conformação de uma rede, que pela escala e proximidade, encoraja o caminhar promovendo o controle social do espaço público, sem depender de vigilância e grades. O movimento de ir e vir das pessoas acontece vinculado às antigas moradias que pertencem ao imaginário do bairro. Nelas, especialmente, os comércios e bares se estabelecem animando a cidade, conferindo a dimensão da escala humana às calçadas. Sob estes aspectos, a preservação destes exemplares é vital para que a qualidade urbana e a identidade destes bairros sejam mantidas e possam ser desfrutadas pela população local e pela sociedade em geral.

Porto Alegre carece de exemplos de grandes empreendimentos que tenham conseguido oferecer lugares com caráter e atmosfera convidativos capazes de promover a apropriação da cidade pelas pessoas. Na capital são recorrentes - especialmente nos bairros mais novos - situações de ruas com pouca vitalidade que geram ambientes inóspitos e impessoais, que demandam cada vez mais muros e grades. E neste ponto chegamos a um problema que é cada vez mais característico em diversas cidades brasileiras.

O conceito formulado pela precursora das reflexões urbanas contemporâneas, Jane Jacobs, em 1961 (2), sugere que a vitalidade nos espaços, entendida como a maior ou menor presença de pessoas, requer quatro condições essenciais concomitantes: a) a necessidade de usos principais combinados – diversidade de atividades; b) a necessidade de quadras curtas – as oportunidades de virar as esquinas devem ser frequentes; c) a necessidade de prédios antigos – combinação de edificações com idades, tipos e estado de conservação variados; d) a necessidade de concentração – densidade é fundamental. Fatores estes que, somados, devem garantir mais pessoas nas ruas, em horários diferentes, buscando lugares por motivos diferentes; a diversidade e a intensidade de usos e atividades, concentrados ou distribuídos, servem, portanto, como atratores para o movimento de pessoas.

A problemática das cidades e sua conformação nos leva a outro debate existente a respeito do plano diretor e de sua incapacidade de regular a forma da cidade. Também da necessidade de nos especializarmos enquanto profissionais do urbanismo e nas questões da morfologia urbana. As cidades brasileiras, de forma geral, valorizam sobremaneira os tipos arquitetônicos que quase sempre estão vinculados a fatores econômicos da construção sem se preocuparem com o resultado na paisagem urbana.

Rossi já nos alertava, no inicio dos anos 1970, sobre a importância dos tipos arquitetônicos, pois são eles que finalmente constituem fisicamente a cidade (3). E muito do que se constrói contemporaneamente valoriza ainda mais a individualidade da edificação por sua própria inserção isolada no lote. Também Nestor Goulart, quando afirma que a paisagem urbana se caracteriza pela relação entre tipo, lote e estrutura urbana, alerta que seria importante começar a questionar o ambiente urbano que estamos criando (4). Acrescentaríamos aqui a questão do quanto a sociedade se identifica com a cidade que cresce ao seu redor.

Para isso é importante entender outros sistemas de conformação urbana como alguns dos bairros de cidades como Barcelona e Amsterdã, que oferecem exemplos opostos, onde o tipo arquitetônico acaba submetido à estrutura urbana. Seguramente, entre situações tão contraditórias, devemos procurar entender o quê e como se constroem nossas cidades, observando sem a intenção de copiar e com o objetivo de buscar uma expressão própria que gere uma melhor arquitetura de cidade.

Neste ponto, voltamos à questão das casas da Luciana de Abreu e de como elas sugerem pistas para a importante relação com o ambiente urbano. Se o desenvolvimento da cidade e seu crescimento são inerentes a sua história, devem respeitar a preservação dos seus bens originais, marcas de uma época e de um modo de vida. Por outro lado, a cidade deve sim crescer, valorizando e aprendendo do legado de outrora, podendo ocupar os espaços vazios disponíveis no território urbano. São legítimos os investimentos imobiliários e a expansão da cidade que não comprometam a perda irreversível de patrimônio histórico, cultural, arquitetônico e urbanístico.

Também fica a pergunta: Devemos desenvolver cidade fazendo autofagia urbana, ou seja construir destruindo? Nossa cidade e sociedade devem aceitar a perda deste patrimônio?

Enquanto no contexto global diversas cidades discutem como se apropriar dos espaços públicos e realizam ações para revitalizar bairros, valorizando o patrimônio histórico como forma de atrair a população e investimentos, em muitas cidades brasileiras parece que não vemos refletir esta tendência. Pagamos caro para admirar a beleza de cidades distantes, sem reconhecer o valor das nossas cidades. Desde o urbanismo devemos dar nossa contribuição para a formação de cidades que permitam passear pelas suas ruas e desfrutar do seu cenário peculiar.

Construir cidade vislumbrando o futuro, aprendendo do passado e valorizando a nossa memória urbana!

notas

1
DIEZ, Fernando. Reutilizando o passado recente: ecletismo e pitoresco. Summa+, Buenos Aires, n. 128, 2013.

2
JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades (1961). São Paulo, Martins Fontes, 2000.

3
ROSSI, Aldo. Para una arquitectura de tendência. Escritos: 1956-1972. Barcelona, Gustavo Gili, 1977.

4
GOULART, Nestor. Quadro da arquitetura no Brasil. São Paulo, Perspectiva, 1997.

bibliografia complementar

AYMONINO, CARLO. El significado de las ciudades. Madrid, Blume, 1981.

CHOAY, Françoise. Alegoría del patrimonio. Barcelona, Gustavo Gili, 2007.

sobre as autoras

Ana Rosa Sulzbach Cé é arquiteta e urbanista com mestrado em Desenho Urbano na Oxford Polytechnic – Inglaterra. Atualmente é professora do curso de graduação da FAU-PUCRS. Pesquisadora do Núcleo de Estudos da Cidade.

Cibele Vieira Figueira é arquiteta e urbanista com doutorado na Universidade Politécnica de Barcelona. Atualmente é professora do curso de graduação da FAU-PUCRS. Pesquisadora do Núcleo de Estudos da Cidade.

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