In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.
português
O Conjunto Arquitetônico do Jockey Club de São Paulo conta diversos elementos incluídos na extensa lista de proteção estabelecida pelo tombamento do Condephaat, quase todos relativos ao lazer de elite, desconsiderando as dependências de funcionários.
ROSSI, Luis Guilherme Alves. Parque Chácara do Jockey. Um ponto de inflexão no patrimônio cultural. Minha Cidade, São Paulo, ano 16, n. 191.05, Vitruvius, jun. 2016 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/16.191/6077>.
Em novembro de 2010, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo – Condephaat decretou, mediante decisão por 11 votos a 4, o tombamento do Conjunto Arquitetônico do Jockey Club de São Paulo. O bem tombado trata-se do conjunto inaugurado em 25 de janeiro de 1941, construído em terreno doado pela Companhia Cidade Jardim, às margens do Rio Pinheiros. Em 2013, praticamente acatando às resoluções anteriores do Condephaat, o bem é inserido na lista de bens tombados do município, de acordo com resolução do Compresp (1).
São considerados atributos do conjunto para seu tombamento a “qualidade e inovação arquitetônica”, a “representatividade de uma prática cultural da elite paulista”, seu “papel nos novos rumos da urbanização da cidade”, e finalmente “sua dimensão simbólica” que em duas fases de construção e intervenção remetem respectivamente à “monumentalidade exigida pela Capital Bandeirante” e ao “requinte e sofisticação demandados no pós-guerra” (2). Isto posto, são consideradas partes integrantes do tombamento: a) a área total ocupada pelo hipódromo, incluindo o terreno adjacente onde situado o edifício escolar; b) uma lista detalhada de edifícios; c) elementos artísticos específicos realizados por Victor Brecheret.
É importante destacar que dentre a relativamente extensa lista de partes que integram o tombamento, é extremamente recorrente a atenção e importância dada aos revestimentos, esquadrias e fachadas, que em parte significativa do patrimônio edificado acabam sendo os principais artefatos valorizados. Destaco a titulo de ilustração “os auto-relevos de autoria de Victor Brecheret, incorporados ao prédio da arquibancada social e ao prédio do antigo vestiário de jockeys, este último não incluído no tombamento” (3). Uma lista de outras nove edificações são consideradas alvo de cadastro sistemático, o que inclui fotografias, demarcações e desenhos. Não recebem, contudo, a mesma relevância dos edifícios anteriormente listados como patrimônio edificado. Nesta lista, destaca-se a presença marcante de edificações cujo uso está relacionado às atividades laborais de segunda ordem na hierarquia da instituição, a exemplo do vestiário de jockeys, das cocheiras e das residências de empregados.
A “representatividade de uma prática cultural da elite paulista” expressa na ocasião do tombamento, parece ser um lugar defendido à exaustão. São os interesses desta restrita elite (também heterogênea em seus objetivos e bases), portanto, que regem – sobretudo quando convocam o tombamento como argumento para impedir transformações e diversificações de usos e públicos do hipódromo – o futuro de uma memória que não diz respeito somente à ela. Do ponto de vista da memória do trabalho, o tombamento do conjunto do Jockey Club de São Paulo é marcado por um assumido caráter elitista, que destaca as práticas e objetos capazes de significar e reiterar o poder e importância desempenhados por atores sociais de grande influência econômica. Nesta direção, são silenciadas vozes de diversos outros agentes, cuja participação na construção da história e da memória não ocupam a mesma posição no discurso elaborado.
Muito pouco aproveita, o tombamento, para referenciar toda a estrutura basilar indispensável para sustentar a existência do Jockey Club e da atividade do turfe. Para os órgãos do patrimônio, através de seus pareceres de tombamento, pouca ou nenhuma diferença fazem as atividades laborais e a extensa trama social que as acompanham. Não figuram nas menções dos órgãos os importantes fluxos migratórios da América Latina impulsionados pela atividade do turfe. Não emana do tombamento do Hipódromo de Cidade Jardim, quando referencia o processo de urbanização da Zona Oeste de São Paulo, aquela porção não relacionada às elites. Não é preocupação deste tombamento iluminar as relações pessoais travadas entre sócios, jóqueis, proprietários, famílias. Enfim, não está no ceio do ato de tombar e decretar patrimônio do Estado o Jockey Club de São Paulo a finalidade de posicioná-lo democraticamente na memória do Estado e da sociedade, referenciando à diversidade de atores e espaços envolvidos na história da entidade.
Do ponto de vista da cultura, o processo de tombamento do Jockey tem uma leitura visivelmente “concebida como um segmento da vida à parte, embora nobilitado e nobilitante, e que, por isso, deve receber atenção e uso compatível” (4). “Tem-se assim uma pirâmide sem base (que seria precisamente o universo do trabalho e do cotidiano), apenas com o topo isolado, concentrado fora do alcance dos espaços vitais, que poderiam irrigá-lo” (5). A cultura a qual se refere o tombamento em questão é restrita e específica, o lazer da elite paulista; e do limite para fora desta compreensão são colocados como coadjuvantes elementos tão fundamentais para a realização desta prática social. Aproveitando as palavras de Ulpiano Meneses sobre o Mercado Velho e a Vila Itororó: “é como se as qualidades reconhecidas nesses edifícios não pudessem ser contaminadas por usos ‘menos nobres’ atribuídos ao trabalho e ao cotidiano” (6).
“É sintomático, a esse respeito, como tal conceito de cultura e o de lazer se entrelaçam para excluírem o trabalho – que não pode ser julgado passível de vir qualificado pela cultura!” (7) A cultura e o lazer em questão são aqueles da elite paulista, que quando isolados e intocáveis, não tem interesse em fazer referência a nada que não agregue valor. Tudo, no tombamento do Jockey Club, visa enaltecer o poder e valor do conjunto arquitetônico e dos agentes financiadores das práticas realizadas: seja o minimamente reconhecido arquiteto Elisário Bahiana, sejam as obras de arte do reconhecido Victor Brecheret, ou as fachadas revestidas em mármore, o mapa mural da escola e até as esquadrias. São esses os signos aos quais se atribui valor no tombamento, e é a eles que se pretende dar voz no discurso sobre o lugar da instituição na história.
Se por um lado o tombamento do Jockey Club é um exemplo da ampliação positiva do campo de atuação e do espectro de bens do patrimônio do Estado, por outro é também exemplo substancial do silenciamento de vozes e atores. Não são os jóqueis, filhos de famílias pobres do interior do país ou de outros países, que migraram para a capital paulista em busca de oportunidades de vida, contribuindo na ocupação – com caráter então simples e popular – de bairros do Butantã, Pinheiros ou Vila Madalena que ganham voz para discursar sobre a história do Jockey Club. Do ponto de vista da política de patrimônio, a história é outra e somente uma.
Apesar desta trajetória, no final de semana do trabalhador, do dia primeiro de maio, a história teve um ponto de inflexão e começou a mudar. Com a inauguração do Parque Chácara do Jockey a memória coletiva e individual de todos aqueles cuja história se vincula de algum modo com o Jockey Club de São Paulo ganha um novo lugar. De alguma forma, paralelamente aos instrumentos de preservação do patrimônio que dispomos, a cultura e a memória foram contempladas pela política praticada pela Prefeitura de São Paulo.
A partir de um processo longo e complexo travado entre o Jockey Club e a Prefeitura, envolvendo entre os elementos a propriedade da Chácara do Jockey (há algum tempo subutilizada em função da decadência do turfe em São Paulo) e a dívida de IPTU da instituição (que por sua vez relaciona-se com o processo de tombamento da sede em Cidade Jardim) viabilizou-se o processo de transferência de propriedade da chácara à municipalidade. É em função deste acerto de contas realizado no âmbito da política urbana – evidenciando aqui a distância das operações realizadas às práticas da política de preservação do patrimônio – que se entrega à população um novo espaço capaz de sediar a cultura e a memória. Podemos dizer que trata-se portanto de uma outra (8) possibilidade de gestão do espaço e do patrimônio da cidade que não depende de instrumentos convencionais para considerar e respeitar a cultura, tratando-as como um componente indissociável das políticas públicas. A título de comparação, cabe relembrar o uso do tombamento como instrumento para a afirmação do Parque Augusta.
Sobre este trabalho, coordenado principalmente pela Vice-Prefeita Nádia Campeão, não se pode deixar de mencionar o esforço de mobilização de diversas secretarias municipais. É sem dúvidas nesta prática que reside grande parte do êxito que tem e terá o Parque Chácara do Jockey. É pela participação conjunta das secretarias do Verde e Meio Ambiente, da Cultura, da Educação, dos Direitos Humanos, entre outras, que se garante o reconhecimento do espaço como palco de múltiplas manifestações do patrimônio cultural, imaterial, que reside em cada cidadão. Além disso, uma das principais qualidades do projeto reside justamente na manutenção dos edifícios existentes, que variam entre cocheiras antigas em tijolos aparentes até um edifício recente revestido em vidros pretos. Todo este patrimônio edificado, que não é alvo de tombamento, foi incorporado às novas atividades do parque (muitas delas demandadas pela comunidade), garantindo sua conservação e atribuindo ao parque um caráter histórico. Minimiza-se ainda a replicação dos modelos edilícios utilizados nas obras públicas, como é o caso da CEI construída à entrada do parque e do mobiliário altamente estandardizados, sem personalidade e por vezes mal executado.
Deste modo, o resultado da transformação da chácara em parque é a devolução do espaço do trabalho, este que não podemos esquecer foi muitas vezes um espaço de opressão e reiteração das diferenças de classe, ao trabalhador, sob o formato de espaço democrático e público. O Parque Chácara do Jockey se transforma, indubitavelmente, em uma nova referência para toda uma região que por quase toda sua história foi identificada à linearidade sem marcos das avenidas Eliseu de Almeida e Francisco Morato. Se o tombamento do hipódromo pouco ou nada se importa com a função do Jockey Club no crescimento dos bairros de classe média e baixa de além pinheiros, a criação do parque atua na direção de reconhecer a existência deste mundo que vai além das elites da arquibancada social, este mundo das cocheiras e alojamentos instalados na distância do olhar. Este espaço, que habitou a memória de todos, seja pelo vinculo do trabalho ou apenas pela sua marcante presença na paisagem e no tecido urbano, hoje é transportado para a condição de marco urbano. Estamos falando, portanto, de um marco da identidade do lugar, um marco da memória.
Não podemos deixar de comentar sobre o que fica para o futuro. Conforme comentou o próprio prefeito durante a cerimônia de inauguração, o parque não está pronto. E isso não diz respeito somente ao fato de que falta um projeto de pavimentação para os longos caminho de terra que não passarão imunes à primeira chuva ou ao tempo que será necessário para a consolidação do novo projeto paisagístico e para a apropriação plena da comunidade. O novo status impresso sobre a Chácara do Jockey significa também uma reinserção deste espaço na cidade, que virá tanto pela transformação das dinâmicas comerciais e de mobilidade, pela diversificação dos usos quanto pelo interesse imediato dos agentes do mercado imobiliário que ampliarão sua já presente atuação nesta região. Será preciso muita atenção e um trabalho continuado para garantir que o parque siga na direção de manter o trabalho e o cotidiano no universo da cultura.
notas
1
Resolução nº 5 Compresp/2013.
2
Trechos extraídos da Resolução SC 97/10, de 19 nov. 2010. In Diário Oficial do Estado – DOE, 30 nov. 2010, p. 57.
3
Idem, ibidem, p. 57.
4
MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A cidade como bem cultural: áreas envoltórias e outros dilemas, equívocos e alcance na preservação do patrimônio ambiental urbano. In: IPHAN: Patrimônio: atualizando o debate. São Paulo, IPHAN, p. 38.
5
Idem, ibidem, p. 38.
6
Idem, ibidem, p. 38.
7
Idem, ibidem, p. 38.
8
Uma outra possibilidade de intervir sobre o patrimônio cultural, o que não significa ser a melhor, tampouco útil para todas as circunstâncias.
sobre o autor
Luis Guilherme Alves Rossi é aluno de graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, com graduação sanduíche pela Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Madrid. Foi pesquisador do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade e bolsista Fapesp (2014) e Fupam (2012).