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português
Este artigo trata sobre impressões pessoais de quem viu as divergências sociais do Jardim Nicéia da cidade de Bauru SP, um bairro precário que apresenta uma peculiaridade: ao seu limite há um condomínio de classe média.
english
This article is about the personal impressions of those who noticed the social divergencies from Jardim Nicéia, Bauru SP, a precarious neighborhood that shows one particularity: in their boundary has a middle income condominium.
español
Este artículo se ocupa de las impresiones personales de los que vieron las diferencias sociales de Jardín Nicéia en Bauru SP, un barrio pobre que tiene una peculiaridad: su límite es un condominio de clase media.
SILVA, Tainá Maria. O muro que nos separa. Uma visita ao Jardim Nicéia. Minha Cidade, São Paulo, ano 16, n. 191.07, Vitruvius, jun. 2016 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/16.191/6084>.
Quantas realidades o espaço urbano pode abrigar? A cidade é talvez o maior palco das diversidades, mas nem sempre esse palco é democrático: quem tem maior poder de compra se instala, quase sempre, em melhores locais e quem tem menos fica com o que poder público puder lhe doar. Mas quando essas duas realidades se encontram, basta resolver com um muro?
Como parte do programa da oficina Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social – ATHIS, um evento realizado pela ONG Peabiru em março de 2016, foi efetuada uma visita técnica à dois locais na cidade de Bauru SP. Divididos os participantes, fui ao Jardim Nicéia com aproximados trinta alunos e profissionais, tanto da área de Arquitetura quanto de áreas distintas. O bairro eu sequer tinha ouvido falar nesses quatro anos como moradora de Bauru. Tive que procurar no mapa a localização e para minha surpresa o mesmo se encontrava relativamente perto de minha casa.
Para chegar ao bairro pegamos a Rodovia e logo nesse momento imaginei que o destino me guardaria grandes surpresas, pois eu que gosto de andar a pé pra ver a cidade jamais me imaginaria tendo que pegar uma via expressa pra se ter acesso a qualquer ponto do meio urbano. Logo a rodovia se transformou numa estradinha de terra, esburacada e esculpida pelas famosas chuvas estarrecedoras de Bauru e pela janela já pudemos notar a gritante segregação entre classes: um muro de condomínio marcava o limite entre rico e pobre e deixava claro até onde o Jardim Nicéia podia crescer.
Estacionamos na praça, um espaço idealizado e concretizado pela equipe da ArqHab (1) com apoio de instituições e empresas privadas. Se percebia, pelo grande esmero que a população tinha com aquele local, que ela fora uma grande conquista. Logo o grupo foi apresentado ao sr. Adalto, o morador com maior representatividade e que juntamente com sua equipe lutava muito pela melhoria do bairro. Com um certo brilho nos olhos ele foi contando a história do local e nos passando os números mais relevantes. Pedreiro, falava com orgulho de toda a ajuda que deu para construir algumas casas dali; contava, com a rapidez de quem já contara várias outras vezes, toda a luta que foi para conseguir os postes de luz, o asfalto, até a vitória de se conseguir ônibus escolar para as crianças por meio do abaixo-assinado. Mas falava também, meio envergonhado, do preconceito que aquele bairro passava e deixou bem claro:
“aqui nós somos humildes, mas não somos favela. Essas casas fomos nós quem construímos, favela não tem isso”.
O Jardim Nicéia é um exemplar da especulação imobiliária: seus lotes foram doados por uma pessoa que não era proprietário da terra, forçou-se assim a englobar a área loteada ao perímetro urbano, valorizando as terras e pressionando o poder público a trazer infraestrutura adequada ao local. O problema é que, enquanto a infraestrutura não estava nos planos da Prefeitura, muitas famílias sofreram.
A união do bairro é notória: ali tudo se resolve na conversa. Até a quadra da praça, único lazer do entorno, possui um “estatuto”: horários de utilização foram definidos pelos moradores de forma a não deixar ninguém de fora. Essa organização toda foi atingida pelo Centro Comunitário que detinha reuniões regulares para tratar dos assuntos de interesse geral e que inclusive servia de local para atendimentos médicos semanais. A edificação do Centro acabou dando lugar a um novo uso, não menos importante: uma creche que hoje atende cerca de 90 crianças. Agora, sem local certo para se reunirem e muito menos um local adequado para os antigos atendimentos médicos semanais, os moradores do Jardim Nicéia clamam por uma edificação que atenda este tipo de necessidade:
“Se alguém aqui ficar doente, tem que atravessar a rodovia e andar mais uns 2 km até o Jardim Europa”.
O grande embuste do bairro fica por parte do condomínio fechado que ali resolveu se instalar. Como prevê a Lei nº 6.766/79, o condomínio foi obrigado a deixar uma parcela de solo para a cidade para uso institucional e de área verde (essa referida parcela de solo com forma de triângulo obtuso descansa à espera de um projeto que caiba nela). Mas quando eu o nomeio de embuste não me refiro tão somente ao seu conceito feudal anti-cidade excludente e segregador, me refiro ao seu artifício que dá sentido ao seu espírito: o muro. O grande e rude muro.
Construído e acabado com tanto primor, quase como uma devoção ao capitalismo, não bastasse seu tamanho imponente ainda precisava se adornar com arames. Nós, membros do grupo que o avistamos pela primeira vez na vida, tivemos uma reação em conjunto: paramos e o admiramos por alguns minutos, olhando de um lado água e de outro óleo. As casas que estavam ali dentro como algo que deva ser preservado da realidade tinham esquadrias de alumínio, sacadas de vidro, pintura em dia, telhado claro. Já as casas de autoconstrução, do lado de fora do muro, por vezes mal tinham revestimento.
Para amenizar o pesado do concreto, pois não deve ser fácil abrir sua porta e dar de cara com um ícone da sociedade doente, os moradores daquela rua do Jardim Nicéia embelezavam o muro por conta própria, fazendo poesia naquilo que lhes virou as costas: desenhavam rostos, coloriam frases e se aproveitavam do espaço para até pendurar roupas.
Hoje, com seis ruas e aproximadamente 90 mil metros quadrados, as 350 famílias do Jardim Nicéia contam com infraestrutura parcial: algumas ruas carecem de asfaltamento e sistema de drenagem, uma das ruas ainda não conta com esgoto e metade dela ainda não possui rede elétrica. A regularização fundiária está encaminhada e a Associação de Moradores da cidade de Bauru vem lutando junto com o Sr. Adalto pelas condições mínimas de moradia.
É preciso que toda a população de Bauru se incomode com essa situação e abrace a causa, como tantas pessoas vem abraçando, para juntos melhorarmos o espaço urbano que dividimos. Além disso: é preciso destruir este muro de preconceitos que segrega tantas vidas.
nota
1
ArqHab é um programa de extensão da FAAC Unesp de Bauru SP que desenvolve pesquisas e ações referentes a habitações de interesse social.
sobre a autora
Tainá Maria Silva é recém-formada em Arquitetura e Urbanismo e apoia causas sociais.