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No Rio de Janeiro, com as Olimpíadas e decorrente melhoria dos meios de locomoção, os moradores de localidades distantes começaram a usufruir da oportunidade de desfrutarem dos mesmos espaços de lazer que as classes mais abastadas.
JANOT, Luiz Fernando. A festa vai rolar. Minha Cidade, São Paulo, ano 17, n. 193.04, Vitruvius, ago. 2016 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/17.193/6153>.
Falta menos de uma semana para a abertura dos Jogos Olímpicos e os turistas já circulam por todos os lados da cidade. Além de Copacabana e Lapa – lugares preferidos dos visitantes – os encontraremos na nova orla marítima entre a Praça XV e a Praça Mauá onde acontecerão shows diários para todos os gostos. Espera-se que a cordialidade vivenciada durante a última Copa do Mundo prevaleça mais uma vez.
Não obstante essa perspectiva otimista se percebe a inquietude de certas pessoas intransigentes que acham que a cidade é sua propriedade particular e, como tal, rejeitam qualquer interferência que altere a sua vida cotidiana. Se no dia a dia reagem contra a presença de jovens reunidos em ruas, praças e locais aprazíveis imagina como estarão se sentindo ao perceber que esse número de frequentadores irá se ampliar consideravelmente.
Se houver um bar ou botequim por perto não há dúvida de que veremos gente reunida bebendo cerveja, caipirinha e comemorando qualquer coisa alegremente. A opção que resta para as pessoas mais estressadas é tirar férias ou permanecer em casa para não se aborrecer com as festas que irão rolar, dia e noite, por toda a cidade. Não custa lembrar que a confraternização em ambientes públicos é uma tradição da cultura carioca. Engana-se quem pensa que se trata de um hábito exclusivo desta geração.
Na década de 1950, jovens de diferentes bairros do Rio se deslocavam para os seus locais de encontro em motocicletas assumidamente barulhentas. O ruído estridente do escape livre ecoava pelas noites de Copacabana, Leme, Tijuca, Alto da Boa Vista, Grajaú e Méier, os bairros preferidos dessa rapaziada. Quando a polícia era chamada a intervir havia uma debandada geral com as motos arrancando ruidosamente em alta velocidade. Não eram encontros cordiais como os de hoje em dia. Era barra-pesada.
Apesar do convívio saudável da juventude nos espaços públicos, há que se admitir que, nem sempre, tudo são flores nesses encontros festivos. Em alguns casos, os moradores da vizinhança têm que lidar com pessoas obstruindo as calçadas, com o estacionamento irregular de veículos, com a profusão de vendedores ambulantes, com gente urinando em árvores e muros e com o barulho até altas horas. Nessas circunstâncias, compete ao poder público reestabelecer a ordem, sem, contudo, comprometer a realização do evento.
Atualmente é inimaginável pensar em territórios livres das multidões. Londres, Paris, Berlim, Praga, Dublin e outras tantas cidades pelo mundo afora, convivem permanentemente com aglomerações de pessoas em suas calçadas, praças e jardins. Além dos próprios habitantes, existem hordas de turistas circulando freneticamente pelas cidades. O turismo de massa se tornou um fator indissociável da condição urbana das grandes cidades.
No âmbito específico do Rio, além dos aspectos ligados ao turismo, percebe-se que os meios de locomoção – especialmente automóveis particulares – propiciaram aos moradores de localidades distantes a oportunidade de desfrutarem dos mesmos espaços de lazer que as classes mais abastadas. Seria ingenuidade ou ignorância de alguns imaginarem que essa população permaneceria confinada em seus bairros afastados deixando de usufruir das praias e de outros lugares aprazíveis da cidade. A postura reativa a essa proximidade revela, mesmo que de forma dissimulada, um ranço de comportamentos rancorosos de outras épocas.
Para quem vê a cidade como símbolo da existência humana e espaço agregador da diversidade cultural, é difícil aceitar qualquer modelo de sociedade assentado no preconceito e na indiferença social. Na medida em que o aspecto financeiro foi assumindo o papel de protagonista das relações humanas, percebeu-se que a educação, a cultura e a cidadania se tornaram valores secundários na formação da nossa sociedade. Se entre os mais bem aquinhoados encontramos pessoas que desprezam esses valores, o que esperar das camadas mais pobres da população que mal tiveram acesso a eles?
É preciso, portanto, que o Estado e a própria sociedade invistam efetivamente na superação do abismo que separa as nossas classes sociais, visando assegurar de maneira equânime os direitos e deveres da cidadania. Caso contrário, continuaremos a assistir ao progressivo desmantelamento da urbanidade. Cruzar os braços ou fechar os olhos diante desta realidade é uma forma inconsequente de aceitar a barbárie e a banalização da violência como circunstâncias inexoráveis das nossas cidades.
nota
NE
Publicação original: JANOT, Luiz Fernando. A festa vai rolar. O Globo, Rio de Janeiro, 30 jul. 2016.
sobre o autor
Luiz Fernando Janot arquiteto pela FAU/UFRJ e autor de inúmeros projetos de arquitetura e urbanismo. Foi professor e diretor nas Universidades Gama Filho e Santa Úrsula. Em 1987 ingressou no corpo docente da FAU-UFRJ. É mestre em Urbanismo pelo PROURB / FAU-UFRJ. Foi Conselheiro Titular do CREA/RJ e do CAU/RJ. Presidiu o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB/RJ).