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português
O presente artigo é uma análise da variedade das práticas sociais do espaço urbano que abarca a relação arquitetura, gentrificação, ocupação e cotidiano na cidade contemporânea com foco no entorno da região do chamado Baixo Centro em Belo Horizonte
english
This article is a study about the variety of social practices of urban space that embraces the architecture relationship, gentrification, occupation and daily life in the contemporary city focusing on the environment of Belo Horizonte, MG, Brazil.
español
Este artículo es un estudo de la variedad de prácticas espacio urbano social que incluye la relación de la arquitectura, la gentrificación, la ocupación y la vida cotidiana en la ciudad contemporánea en el medio ambiente del Belo Horizonte, MG, Brasil.
LUZ, Fernanda Mingote Colares. Deslocamento do olhar. Análise das práticas sociais da região do Baixo Centro em Belo Horizonte. Minha Cidade, São Paulo, ano 17, n. 193.05, Vitruvius, ago. 2016 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/17.193/6160>.
Pode-se dizer que a produção atual do espaço é acentuadamente um processo desigual devido às forças econômicas, sociais e políticas. As transformações políticas, sociais e culturais nas áreas centrais são frequentemente intensas e são certamente importantes no que diz respeito à experiência imediata da vida cotidiana, mas elas estão associadas ao desenvolvimento de um sistema econômico. A cidade, desde sua constituição, configurou-se como a mais complexa manifestação dos anseios, necessidades, crenças, virtudes, malícias, valores e poderes que a humanidade já construiu. O espaço que ela encerra, ou encerrava, já que teve sua influência ampliada, situa, caracteriza e referencia toda uma comunidade. Segundo Neil Smith, a gentrificação, a renovação urbana e o mais amplo e complexo processo de reestruturação urbana são todos partes da diferenciação do espaço geográfico na escala urbana; e, embora estes processos tenham sua origem em um período anterior à atual crise econômica mundial, sua função hoje é reservar uma pequena parte do substrato geográfico para um futuro período de expansão (1) associadas à acumulação e expansão do capital. Desse modo podemos pensar que as revitalizações quase sempre se materializam em hipervalorização, impulsionada (e muitas vezes mascarada) por modelos estereotipados que levam à elitização do espaço, ou na retomada dos centros por uma nova classe média, e, que com o passar dos anos transforma o espaço urbano em espaço gentrificado, eliminando assim, a cultura local, e consequentemente, bens materiais e imateriais que originalmente conformaram estes espaços.
O presente artigo é o referencial teórico fruto da disciplina Aspectos Contemporâneos do Planejamento Urbano e Metropolitano, ministrado pela professora Jupira Gomes de Mendonça (2) do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFMG para do 2º semestre de 2015. A disciplina ementou a revisão bibliográfica sobre o debate internacional contemporâneo relativo aos atuais desafios para o planejamento urbano, decorrentes das alterações produzidas pela reestruturação produtiva sobre os processos de estruturação urbana e metropolitana. Bem como as concepções atuais de planejamento e gestão urbana e metropolitana no Brasil, os princípios e práticas de planejamento territorial urbano-metropolitano após a Constituição de 1988.
Nos últimos trinta anos houve o crescimento do pensamento neoliberal sobre o processo de organização da economia, sobre a relação da economia com o Estado e sobre a relação do Estado com a economia e a sociedade. O Estado que era, ou deveria ser, responsável por garantir o bem estar da sociedade, deixa de ser aquele que captura o excedente produtivo e distribui em benfeitorias e passa a ser aquele que potencializa a livre circulação e acumulação do capital. O valor de mercado é colocado como estruturante das relações sociais, das relações políticas e das diferentes formas de troca da sociedade, em contraposição aos princípios do estado do bem estar social e dos direitos fundamentais do homem elaborados e postos em prática durante o século 20 em grande parte da Europa e nos países da América do Norte, e existindo apenas enquanto utopia em países da África, da Ásia e da América Latina.
Segundo Ermínia Maricatto, no âmbito das cidades, a edificação de um Estado neoliberal intervém diretamente nas políticas urbanas, “de maneira que os recursos antes advindos do poder público passam a ser canalizados pelo mercado financeiro e as cidades começam a competir entre si pela atração destes recursos” (3). Essa competição estimula o aparecimento de uma identidade padronizada de cidade, com arquitetura e espaços públicos de grande escala, homogêneos, limpos, seguros, que valorizam uma cultura internacionalizada. Isso tem gerado formas de urbanismo de caráter funcionalista e planejamento de viés estratégico ao atender essa tendência globalizante que importam” ideias e métodos formulados internacionalmente em que os planejadores e/ou políticos, como no caso brasileiro, tentam implementar nas cidades de maneira desconectada com a nossa realidade social, cultural e ambiental. Isso implica uma ordem que engloba apenas uma parcela da cidade sem comprometimento com o ideal de cidade completa privilegiando formas especulativas de gerir o espaço público, gerando planos clientelistas, excludentes, segregadores e favorecedores das classes dominantes; consequentemente, reforçando as desigualdades sociais, além de impactar negativamente o meio ambiente. E é exatamente aí na realidade das favelas (cidade ilegal) que segundo Ermínia Maricatto são “lugares fora das ideias”, ou seja, não são abarcadas no planejamento e regulação urbanística da cidade. Segundo Paola Berenstein Jacques, “geram diferentes processos urbanos como a estetização, culturalização, patrimonialização, turistificação, gentrificação, privatização, entre outros” (4). Essas práticas de gentrification empreendem o que se poderia chamar de “embelezamento estratégico” – termo utilizado por Walter Benjamin (5) para comentar as reformas urbanas de Paris, feitas por Haussmann pós-1848.
Correntes urbanas aparentemente distintas, como o planejamento estratégico, o new urbanism, o ou urbanismo corporativo chegam ao mesmo resultado: nos termos de Ermínia Maricatto, a mercantilização espetacular das cidades (6).
Na discussão de Fernanda Sanchez (7) o fortalecimento da imagem da cidade no cenário nacional e de sua própria imagem de homem moderno no cenário político federal, e a política promocional de revitalização do espaço é executada dentro de uma abordagem da cidade-espetáculo (city-marketing) e sua conseqüente promoção e consolidação como figura pública. Caracterizam-se por uma forte estrutura empresarial ancorada em alianças estratégicas e fusões, internalizando lucros. O city-marketing visto por Sanchez é um conjunto de “planos estratégicos [...] que busca[m] recuperar a legitimidade [governamental] quanto à intervenção pública e à centralidade de ações que perseguem a promoção da cidade dentro de um novo planejamento urbano”; esse novo planejamento é agora financiado pelas parcerias com a iniciativa privada, numa sinergia própria do capitalismo globalizado, altamente competitivo e estratégico: “a atração dos novos investimentos é realizada mediante um conjunto de fatores que procuram marcar a singularidade: infraestrutura física e comunicacional, regulação política e social, e qualidade de vida” (8). A competição estabelecida entre destinos de investimentos, inerente ao planejamento estratégico, se dá através de novas políticas comunicacionais de imagem das cidades, ou seja, do “urbanismo-espetáculo” utilizado para realizar a “venda” das cidades. Assim, o city-marketing se transforma em instrumento de primeira ordem para a administração pública. Desta forma verifica-se que os espaços urbanos de vários centros populacionais do mundo vêm sendo gradativamente transformados em mercadoria, privilegiando a maximização da taxa de lucro espacial, o valor de troca em detrimento ao valor de uso. Com o neoliberalismo urbano, a cidade passa a ser vista, sobremaneira, como máquina de produzir riquezas.
O planejamento estratégico de cidades chega à América Latina, passando a ser adotado em cidades brasileiras, desde a década de 1990. Difundido pela dupla Jordi Borja e Manuel Castells (9) e por Horacio Capel a partir do sucesso de Barcelona, o modelo defendia que as políticas públicas urbanas – por meio da parceria público-privada – teriam a capacidade de resolver os problemas urbanos e tirar as cidades da crise, como Barcelona, Cidade do México, Quito. No Brasil o que se vê é uma espécie de “empreendedorismo periférico – imitação do modelo estrangeiro, sem participação popular e favorecimento da elite local” (10). O planejamento estratégico tem como um dos seus pilares a associação dos diversos atores urbanos através de parcerias público-privadas. Entretanto, as parcerias entre as esferas pública e privada vêm sendo criticadas pelo modo como muitas vezes são conduzidas, tendo em vista que tem provocado profundas e questionáveis mudanças na atuação dos governos municipais com relação às suas prioridades na alocação de recursos e compromissos na implementação de políticas, com tendências cada vez maiores a uma mercantilização da vida urbana.
David Harvey diz que o objetivo principal dessas parcerias é “muito mais o investimento e o desenvolvimento econômico através de empreendimentos imobiliários pontuais e especulativos do que a melhoria das condições em um âmbito específico” (11). Teriam sido estabelecidas visando à criação, execução e gestão de projetos em que, na maioria das vezes, o Estado (e, indiretamente, os cidadãos pagadores de impostos) assumem todos os riscos e custos, e o setor privado fica com a gestão e os benefícios (os lucros dos projetos). Dessa forma a cidade aparece também como uma empresa – daí o termo empresariamento ou empreendedorismo urbano usado por ele – que precisa agir estrategicamente coesa, para atingir os objetivos propostos. O que causa a despolitização da cidade e uma mudança do conceito de cidade, transformando-a em um sujeito econômico.
Assim as consequências negativas são particularmente evidentes na organização espacial da cidade, o espaço é homogeneizado e controlado.
As intervenções em curso têm revelado a incapacidade do Estado em se pautar por critérios universalistas, centrados no objetivo da inclusão social dos diferentes grupos sociais à cidade, e a crescente adoção de um padrão de intervenção centrado na exceção, focado em certas áreas da cidade com capacidade de atração de investimentos, subordinando as políticas, implementadas de forma discricionária, aos interesses de grandes grupos econômicos e financeiros que comandam a nova coalizão empreendedorista neoliberal.
No Brasil desse mesmo período, correspondente ao estado democrático de direito, assistimos à implantação contraditória de dois tipos de política urbana. De um lado a ampliação da participação dos cidadãos nos processos decisórios, a criação do Estatuto das Cidades e do Ministério das Cidades - que atribuem o futuro da cidade e a função social da terra urbana ao conjunto maior da sociedade. De outro lado a construção de uma governança empresarial, onde gestores de grandes empresas assumem cargos de representação política e os discursos de uma administração eficiente se sobressaem aos de uma gestão pública, entenda-se, política. Nessa ótica as decisões sobre a cidade passam a ser tomadas por grandes empresas e por grandes corporações. O que coloca em questão a efetividade e a desconstrução desses espaços de participação na compreensão do papel e significado do Estatuto da Cidade para desenvolvimento urbano brasileiro. Neste sentido, Luiz Felype Gomes de Almeida (12) coloca duas posições antagônicas que se sobressaem: a primeira enxerga na legislação uma verdadeira mudança de paradigma e a segunda compreende que a lei trouxe atrasos e dificuldades na execução da política urbana nacional. Outro limite é que os instrumentos presentes no Estatuto ainda não se mostram efetivos de fato no território, sendo restritos à mera previsão nos planos diretores. Desta forma, as tentativas de elaboração de planos diretores como pactos sócio territoriais revelaram claramente o descolamento das propostas em relação a realidades sociais, políticas e territoriais muito diversas, com uma gestão do solo urbano desenhada para explorar ao máximo as possibilidades de sua valorização. Soma-se ainda a existência de um modelo neoliberal de desenvolvimento urbano promovedor de imperativos diferentes daqueles existentes no Estatuto. Almeida muito bem denominou como processos de homogeneização das cidades e de complexificação do planejamento as limitações presentes na própria legislação tanto em aspectos específicos, como em questões de cunho mais geral. O que gera o enfraquecimento de diversos espaços de participação conquistados pelas gerações anteriores e intensifica uma crise de representação política
É neste contexto que há pelo menos três anos é visto, em diferentes países do mundo, uma reorientação dos movimentos de ocupação do espaço público, com impulsos diversificados, mas com questionamentos comuns sobre a forma com que a sociedade tem se estruturado, sobre a forma de organização política, sobre a forma com que as decisões são tomadas e sobre a forma de ocupação dos espaços da cidade. São ações políticas da sociedade civil que apresentam como diferencial a possibilidade de rápido acesso à informação e ampla divulgação da mesma através da internet e das mídia sociais. Tais ações podem ser incluídas nos modelos comunicativos ou colaboradores do planejamento. O que leva à discussão de Rainer Randolph (13) a um novo nível de reflexão política reformulando a proposta colaborativa para que se torne mais “radical” e, assim, de alguma maneira “subversiva” por meio da incorporação de novas lógicas e racionalidades, perspectivas, tarefas e formas do processo de planejamento. O autor, a partir de Boaventura de Sousa Santos, acredita na possibilidade da realização dessa proposta do planejamento subversivo e na sua potencialidade a partir das manifestações e do reconhecimento crescentes da riqueza social (14); da formação e do exercício do poder comunicativo, nos termos de Jürgen Habermas (15), que se opõe à real submissão a lógicas abstratas da sociedade de consumo; e da busca, por parte dos habitantes das grandes cidades, pelo valor de uso dos seus espaços vivenciados e de sua defesa contra os efeitos de abstração que o capitalismo (financeiro) tenta impor progressivamente na medida em que avança na produção do espaço social, seguindo Henri Lefebvre (16).
Faranak Miraftab (17) mostra que as cidades falam através de seus conflitos. Para ele diferentes cidades falam diferentes linguagens através de diferentes conflitos, e através de diversas retóricas e símbolos, movimentos sociais organizados e grupos eventuais, temporários ou permanentes dos cidadãos expressam a diversidade entre e no interior de cidades. De um lado, estas linguagens oferecem rico material para estudos urbanos comparativos. De outro lado, aqueles interessados em planejar a cidade teriam muito a aprender se estivessem preparados – interessados e capacitados – a ouvir e compreender as vozes da cidade, dos agentes sociais e de seus conflitos. O planejamento insurgente – ou conflitual – sugere que, ao invés de sinal de alguma patologia urbana, conflitos devem ser vistos como expressão da dinâmica e vitalidade urbanas. Em conseqüência, haveria aí um poderoso repertório de conceitos e instrumentos que poderia abrir espaço para políticas e práticas de planejamento contra-hegemônicos. O planejamento insurgente representa a possibilidade de confrontar, no campo das teorias e das práticas, as fundadas em modelos de planejamento competitivo (estratégico), parcerias público-privadas, revitalizações de áreas centrais, grandes projetos urbanos e megaeventos.
Em outro viés pode-se ainda destacar os movimentos de oposição e resistência ao poder exercido pelo Estado, o corpo colocado no centro da experiência urbana, e a cidade enquanto condição de possibilidade de uma experiência determinada. O que é muito bem colocado por Rita Velloso (18) onde o papel da cidade como lugar privilegiado da luta política, da disputa por legitimidade de práxis socioespaciais diversas ou por concepções rivais de institucionalidade. Mostra é por meio da apropriação e da contraconduta que a cidade pode se colocar contra o Estado. São modos renovados de oposição e resistência da sociedade e que já operam num âmbito renovado de institucionalidade. O foco está em compreender de que modo os habitantes estão articulados coletivamente para além das instituições do Estado que atuam em sua região.
O panorama não é diferente em Belo Horizonte. Há alguns anos é possível acompanhar em algumas regiões intervenções associadas à Operação Urbana Consorciada do Vale do Arrudas e a tentativa (mas até então cancelada) de implementação do “maior edifício da América Latina” (19) na Rua Conselheiro Rocha no bairro de Santa Tereza, são indícios da entrada de Belo Horizonte na corrida para atração de recursos do mercado financeiro da qual decorrem a espetacularização de seu espaço urbano com processos (que serão citados abaixo) de patrimonialização, privatização do espaço público, turistificação e gentrificação.
As mudanças visíveis na paisagem e, a exemplo da deteriorização da região periférica do Baixo Centro de Belo Horizonte (MG), onde a presença de tais agentes e fatores nessa área é reflexo de políticas públicas mais recentes, datadas a partir da década de 1980. Essas políticas acabam interferindo nas apropriações deste espaço pelos diversos segmentos da sociedade, além de modificar as formas espaciais nesta região. Tais intervenções podem trazer consigo intenções de revitalizar a paisagem a ponto de serem capazes de lhe imprimir novos usos (principalmente cultural).
A Praça da Estação, onde anteriormente funcionava a estação de metrô central e o ponto de parada do único trem de passageiros de rota de Minas Gerais, Belo Horizonte – Vitória, hoje abriga uma coleção particular de objetos e ferramentas de trabalho, o Museu de Artes e Ofícios. Na sua vizinhança imediata funciona um ponto de concentração da juventude da periferia e do centro da cidade, de diversos grupos culturais, comerciantes, trabalhadores, moradores de rua e movimentos sociais; o Viaduto Santa Tereza e o entorno da Praça da Estação são importantes lugares de resistência e luta pelo direito à cidade. Mas essa região vem sendo pressionada por propostas de intervenções pelo Governo de Minas e a Prefeitura de Belo Horizonte – PBH que parecem descaracterizar a dinâmica social que se estabeleceu ali. A reforma do Viaduto Santa Tereza parecem trazer no lastro das Operações Urbanas Consorciadas, projetos de higienização, exclusão e desmobilização de grupos e movimentos que resistem atuando na cidade. Com pouca (ou nenhuma) participação popular, o projeto de reforma foi inicialmente desenhado supostamente para atender às necessidades das pessoas que frequentavam o viaduto, no entanto, não foi dada voz à elas. Diante de modificações no projeto inicial, que incluía espaços como quadra de basquete cercada e pista de bicicross, o poder público pretende transformar o lugar em um Circuito de Esportes Radicais, o que é completamente dissonante da ocupação existente no espaço. Estas modificações não foram aprovadas pela Diretoria de Patrimônio Cultural da PBH, mas, conforme divulgado na imprensa , as obras começaram sem divulgação ampla e muitos grupos que ali frequentam foram surpreendidos com tapumes enormes cercando todo o vão livre do viaduto e impedindo a visibilidade e o acesso à obra.
Porém, se são os grandes centros urbanos o local em que a lógica da cidade liberal atua de forma mais enraizada, é lá que as multidões se articulam às quais o capital já não oferece alternativas. Estabelece formas de sociabilidade, identidade e valores.
É nessa conjuntura que alguns cidadãos articularam, a partir da internet, uma mobilização para a ocupação política e performática da Praça da Estação de Belo Horizonte. Por meio da experiência lúdica, essa praça, localizada no hipercentro da cidade, foi transformada em Praia da Estação, movimento que se repetiu durante os sábados do verão de 2010 a 2016 desdobrando-se em outras manifestações e encontros. Surgiu como uma reação a um decreto da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte que proibia a realização de eventos de qualquer natureza na Praça da Estação, um dos pontos turísticos mais antigos da capital mineira. É um movimento horizontal, sem lideranças, auto-organizado, sem porta-voz. É um ato político de apropriação do espaço público que propõe uma nova forma de experimentar a cidade: mais livre, democrática e sem repressão. Neste mesmo período, ou um pouco anterior a ele, potencializaram-se, surgiram e se ressignificaram outros movimentos e ações na cidade, especialmente na área em estudo como:
- Carnaval Rua BH: desde 2009, o Carnaval de rua de Belo Horizonte vive a olhos nus uma intensa transformação que, de forma independente, sem chancelas ou patrocínio, reinventa tradições e faz pensar a cidade desejada.
- o Duelo de MCs que acontece sob o Viaduto de Santa Teresa desde 2007 e desde então reúne diversas manifestações artísticas que incluem música, rimas, dança e arte urbana em torno da cultura do Hip Hop;
- a retirada dos tapumes os tapumes que cercavam o vão livre do viaduto e a ocupação do espaço embaixo do Viaduto Santa Tereza compartilhando informações e desafios sobre as intervenções previstas no espaço em fevereiro de 2014.
Esses movimentos abrangem uma diversidade de reflexões, no entanto, há vários pontos que se tangenciam, dentre eles a ação política performática de ocupar o espaço público, a apropriação do espaço virtual através da mobilização realizada por meio das redes sociais e a espontaneidade com que colocam em prática outras formas de cidade.
Nesse contexto, a ocupação do espaço público configura-se como uma ação política, um gesto de resistência à transformação da cidade em mercadoria, que propõe novos usos ao espaço urbano, cria zonas de tensão e, segundo Paola Berenstein Jacques, “é exatamente da permanência da tensão instaurada por eles que depende a construção de uma cidade menos cenográfica (espetacular)” (20). É também através dessa diversidade de movimentos de ocupação urbana, que a sociedade civil transforma o potencial libertário da ação política em urbanismo espontâneo e, como bem coloca Ana Clara Torres Torres, “o resultado pode ser experimentar alguma coisa nova, experimentar a dignidade, experimentar se expressar em um espaço público, experimentar de alguma maneira compartilhar o outro, a dor do outro, ou buscar no outro uma compreensão de si” (21).
Considerações finais
Esse artigo buscou um aprofundamento e um tratamento antropológico do tema sob a lógica etnográfica, histórica. Foi analisada a dimensão cultural e social das pessoas e grupos que conformam o universo da região do Baixo Centro Cultural analisando suas diversas atividades a fim de se atingir uma compreensão global das mesmas. A ideia foi exercitar o deslocamento do olhar, associado a um deslocamento geográfico, abrindo o trabalho para as mais diversas perspectivas. A pretensão não foi construir um retrato fiel dessas espacialidades, mas explicitar suas diversas camadas constitutivas, abrindo lugar para as diferenças e para os conflitos que geram as formas de apropriação históricas, atuais e desejáveis.
notas
1
SMITH, Neil. Gentrification and uneven development. Economic Geography, vol. 58, n. 2, abr. 1982, p. 139-155.
2
Jupira Gomes de Mendonça é professora associada III da Universidade Federal de Minas Gerais, no Departamento de Urbanismo e no Núcleo de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Escola de Arquitetura.
3
MARICATTO, Ermínia. As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias – planejamento urbano no Brasil. In: ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis, Vozes, 2000, p.121-192.
4
JACQUES, Paola Berenstein. Patrimônio cultural urbano: espetáculo contemporâneo? Revista de Urbanismo e Arquitetura, América do Norte, n. 6.
5
BENJAMIN, Walter. Paris, capital do século XIX. In FORTUNA, Carlos (org.). Cidade, cultura e globalização. Ensaios de sociologia. Oeiras, Celta Editora, 1997.
6
MARICATTO, Ermínia. Op. cit.
7
SANCHEZ, Fernanda. Políticas urbanas em renovação: uma leitura crítica dos modelos emergente. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais. n. 1, maio 1999, p.115-132.
8
Idem, ibidem, p. 118, ambas.
9
CASTELLS, Manuel; BORJA, Jordi. As cidades como atores políticos. Novos Estudos, n. 45, São Paulo, p. 152-166.
10
CAPEL, Horacio. El debate sobre la construcción de La ciudad y el llamado “Modelo Barcelona”. Scripta Nova, vol. XI, n. 233, 2007, p. 1-57.
11
HARVEY, David. Do administrativo ao empreendedorismo: a transformação da governança urbana no capitalismo tardio. In: HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. 2ª edição. São Paulo, Annablume, 2006, p. 163-190.
12
ALMEIDA, Luiz Felype Gomes de. O estatuto da cidade e o cumprimento da função social da propriedade: o que ficou, para onde vai? Anais do XVI Encontro Nacional da Anpur. Belo Horizonte, maio 2015, p. 1-17.
13
RANDOLPH, Rainer. Subversão e planejamento como “práxis”: uma reflexão sobre uma aparente impossibilidade. In: LIMONAD, Ester; CASTRO, Edna. Um novo planejamento para um novo Brasil? Rio de Janeiro, ANPUR/SBPC/Letra Capital, 2014.
14
SANTOS, Boaventura de Sousa. A critique of lazy reason: Against the waste of experience. In WALLERSTEIN, I. (Ed.), The Modern World-System in the Longue Dureé. Londres, Paradigm Publishers, p. 157-197, 2004. Disponível em <www.ces.uc.pt/bss/documentos/A critique of lazy reason.pdf>.
15
HABERMAS, Jürgen. Theorie des kommunikativen. Volumes I e II, Frankfurt, Surkamp, 1981.
16
LEFEBVRE, Henri. La producción del espacio. Madrid, Capitán Swing, 2013.
17
MIRAFTAB, Faranak. Insurgent planning: situating radical planning in the global south. Planning Theory, vol. 8, n. 1, 2009.
18
VELLOSO, Rita. A cidade contra o Estado: ensaio sobe a construção política de escalas e institucionalidades. In: COSTA, Geraldo Magela; COSTA, Heloisa Soares de Moura; MONTE-MÓR, Roberto Luis de Melo (Org.). Teorias e práticas urbanas: condições para a sociedade urbana. Belo Horizonte, C/ Arte, 2015.
19
Palavras retiradas do título da matéria veiculada no jornal Hoje em Dia em 25/03/15 que informava que “Lançado com estardalhaço em 2012, o projeto da Torre Gigante ficará só no papel. [...] diante das barreiras da legislação e em busca de maior viabilidade econômica, a mineira PHV Engenharia e o escritório de arquitetura Farkasvölgyi, idealizador do edifício, abandonaram a ideia original e já traçam um plano B para a área ao longo da avenida dos Andradas.” Disponível em <www.hojeemdia.com.br/noticias/economia-e-negocios/projeto-do-maior-edificio-da-america-latina-em-bh-e-cancelado-1.307185>.
20
JACQUES, Paola Berenstein. Op. cit.
21
RIBEIRO, Ana Clara Torres. Nós temos hoje uma espécie de contenção do imaginário político. Entrevista. Marimbondo, v. 1, 2011, p. 73. Disponível em <www.revistamarimbondo.com.br>.
sobre a autora
Fernanda Mingote Colares Luz é arquiteta e urbanista formada pela PUC Minas em julho de 2013.