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português
Uma reflexão sobre o processo de produção, manutenção e significado do mural de grafite produzido pelo artista Daniel Melim na área central da cidade de São Paulo.
english
A reflection on the production process, maintenance and meaning of the graffiti mural produced by the artist Daniel Melim in the central area of São Paulo.
español
Una reflexión sobre el proceso de producción, mantenimiento y significado del mural de graffiti producido por el artista Daniel Melim en el área central de São Paulo.
LASSALA, Gustavo. O Mural da Luz. Um dos murais de grafite mais representativos da cidade de São Paulo. Minha Cidade, São Paulo, ano 17, n. 194.05, Vitruvius, set. 2016 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/17.194/6195>.
Em 2007 começou a funcionar no munícipio de São Paulo a chamada Lei Cidade Limpa. A lei tinha a função de diminuir a poluição visual e organizar a paisagem urbana. A iniciativa da prefeitura basicamente bania a publicidade e comunicação visual dos espaços públicos, mudando a paisagem radicalmente até 2011, quando a lei se tornou mais flexível e houve a liberação da lateral de edifícios – conhecido como empena.
Na época, uma reportagem do jornal Folha de S. Paulo descrevia o fato chamando a atenção para a liberação de “anúncios publicitários gigantes” (1). Ou seja, as empresas que pagassem pelo espaço e a produção de uma obra no local, poderiam ter a marca exposta de forma discreta no prédio ou fazer menção indireta ao produto do patrocinador, desde que o mesmo não fosse o tema da arte.
As intervenções artísticas que passaram a ocupar esses locais, em geral, eram trabalhos executados por artistas conhecidos por seus trabalhos com grafite. Uma das primeiras intervenções autorizadas pela mudança da lei e que ainda hoje permanece na paisagem urbana da cidade é obra do artista Daniel Melim, na avenida Prestes Maia, região central de São Paulo.
O mural tem cerca de 30 metros de altura e foi executado em 15 dias pelo artista e um ajudante. A técnica usada para a construção de grande parte da arte foi o estêncil, técnica comumente utilizada em intervenções urbanas ilegais por conta da precisão e rapidez de difusão de imagens e consiste em utilizar um molde vazado como matriz e o spray para entintar.
O estilo gráfico do mural remete à linguagem visual da pop art e os grafismos são formados por um conjunto de imagens distintas, com enquadramentos ousados, organizados por linhas que dividem a imagem em três partes. Os cortes das imagens são bruscos, privando certos aspectos das imagens e dos textos que compõe o todo. Essa característica gera, para aqueles que observam o trabalho, certa incompletude que, somado ao uso de texturas, sobreposições e “sujeiras”, passa um conceito de desgaste, algo que está em processo, em uso, vivo.
O projeto foi idealizado pela galeria Choque Cultural, que representa o artista e o escolheu por possuir um trabalho de grande impacto visual (2) e ter uma linguagem compatível com a expectativa da empresa patrocinadora da empreitada, a companhia aérea KLM, por meio da estratégia de brand awareness, conforme definiu o jornal Meio & Mensagem na época (3). O objetivo do patrocínio era reforçar a imagem descontraída da marca utilizando o conceito journeys of inspiration, usando a arte de rua para tornar a viagem tão interessante quanto o destino do passageiro. A empresa abrira mão de usar a publicidade no local, optando por capitalizar imagens da obra de modo dinâmico em redes sociais na internet.
“Painel inspired by KLM – Daniel Melim”, vídeo produzido pela empresa KLM para divulgar o projeto / Divulgação
É preciso considerar que o muralismo pertence a uma linha de estudo consagrada no campo da arte, principalmente se considerarmos a pintura muralista mexicana com características políticas do início do século 20, notadamente representada pelo artista Diego Rivera (1886-1957). No Brasil, conforme observa a pesquisadora Eliane Serrano, temos a participação de artistas modernos como Di Cavalcanti, Cândido Portinari e Cícero Dias utilizando o mural principalmente como decoração de fachadas arquitetônicas a partir da década de 1940 (4). Outros casos distantes no tempo, como o mural da artista Tomie Ohtake, feito em 1984 no Anhangabaú, e o do artista Claudio Tozzi, na avenida Angélica, em São Paulo, inaugurado em 2003, tem sua importância nesse cenário, mas são obras produzidas por artistas de renome no campo da arte sem qualquer vínculo com o que vivenciamos agora com os murais em São Paulo.
A origem desse tipo de mural que presenciamos atualmente surgiu no fim do século 20 como suporte para os trabalhos de grafite, principalmente em locais autorizados, de modo individual ou coletivo. Em São Paulo temos um mural de fundo azul, com personagens de traços simples e coloridos no complexo viário Paulista com Dr. Arnaldo, conhecido como "Buraco da Paulista", mantido desde 1991 com autorização da prefeitura e desenvolvido pelo artista Rui Amaral, um dos pioneiros do grafite paulistano. Embora a existência desse mural tenha uma característica emblemática, é preciso ressaltar que este símbolo do grafite mural na cidade se mantém a partir do apoio e supervisão do poder público e de duas empresas fornecedoras de material de pintura, algo nem sempre recorrente em trabalhos que lidam com a cultura e técnica do grafite.
O grafite, como representante típico de uma categoria de intervenção urbana contemporânea –considerando sua origem americana (5) –, tem um modo de operação pautado na apropriação dos suportes da cidade de forma subversiva, transformando a paisagem urbana de modo livre e autônomo. Em outra ocasião afirmei que existem também grafites executados em lugares autorizados e sob encomenda levando alguns grafiteiros a intervir em suportes que não a rua, possibilitando a entrada no campo da arte de modo que vivam apenas de seu trabalho. Na atuação do grafite com foco na paisagem urbana, umas das diferenças do grafite em relação a outras modalidades de expressão gráfica urbana é que o resultado final da ação, em geral, se caracteriza por trabalhos com traços elaborados, uso de muitas cores e certa dose de crítica social. Em síntese, os trabalhos são feitos, portanto, de modo rápido e ilegal ou outorgado (6).
As intervenções de grafite na paisagem, feitas de forma não autorizada, tendem a ter uma vida efêmera, o que estimula o grafiteiro a intervir uma grande quantidade de vezes na cidade para difundir seu trabalho. Alguns optam por estabelecer parcerias com instituições públicas ou privadas, viabilizando espaços autorizados e, muitas vezes, patrocinados, a fim de aumentar a sobrevida da sua obra na paisagem. Essa postura ambígua para definir o suporte para obra faz parte do cotidiano de grande parte dos artistas que optam pela vertente do grafite como forma de dar vazão ao fazer artístico.
Daniel Melim é um desses artistas. Começou sua carreira em 2000 com intervenções urbanas, não autorizadas, nas imediações do município de São Bernardo do Campo, onde nasceu e foi criado. O seu trabalho é calcado na técnica de estêncil e muito relacionado com o movimento artístico Pop Art e com as obras do artista Roy Lichtenstein. Na medida que seu trabalho com grafite começou a ganhar visibilidade, ele passou também a comercializar ilustrações para publicações, painéis comissionados para empresas, trabalhar como arte-educador em projetos sociais e participar do circuito artístico com obras em galerias e museus pelo Brasil e no mundo. O seu ingresso no campo da arte tem sido intermediado pela galeria Choque Cultural, responsável pela negociação do mural supracitado. O Mural da Luz não é apenas mais um trabalho na carreira de Melim, mas um bem simbólico que tem ajudado no processo de legitimação artística do artista no campo da arte e pensar o papel do grafite e do mural atualmente, como veremos a seguir.
Em folheto publicado pela Prefeitura de São Paulo, em 2012, com o objetivo de divulgar um roteiro temático de Arte de Rua na cidade, o Mural de Melim fazia parte da sugestão de obras a serem visitadas, com destaque para a biografia do artista na página 34 (7). No mesmo ano, um ano após a inauguração do Mural, Melim recorre a um site de financiamento coletivo com o seguinte texto:
“Meu projeto é um presente para a cidade de São Paulo: um mural de 30x25 metros feito em uma empena cega de um prédio onde antes da lei cidade limpa havia um grande outdoor de propaganda. Pintei esse mural há um ano e meio e agora ele está prestes a ser apagado. Hoje ele já é um cartão postal da cidade. Para mantê-lo vivo por mais um ano, preciso da sua ajuda. Como recompensa preparei uma gravura especial com a imagem do mural. Contribuindo com 260 reais você vai receber esta gravura, um adesivo e mais um certificado de autenticidade em seu nome e assinado por mim” (8).
O objetivo da proposta era arrecadar R$ 26.000, mas foram arrecadados R$ 34.473 com a ajuda de 162 pessoas em 61 dias, encerrando a campanha em 17 de fevereiro de 2013. A gravura preparada por Melim para o site de financiamento coletivo que poderia ser adquirida pela quantia de R$ 260,00, atualmente, quase três anos depois, é vendida por R$ 1.200,00 num site que comercializa gravuras originais pela internet (9). Ou seja, a gravura baseada no Mural da Luz, fruto de uma tiragem limitada e numerada, assumiu um valor cinco vezes maior do que o oferecido no período da campanha. A gravura que mimetiza o mural se tornou uma peça de consumo, além de multiplicar a atuação e divulgação do próprio mural. Outra constatação do mural como bem simbólico legitimado veio por meio de votação popular. A revista Veja SP, em 23 de agosto de 2013, fez uma lista com cinco murais em São Paulo e os leitores escolheram o Mural de Melim com 40% dos votos como o mais representativo (10).
Pensar o mural como bem simbólico a partir da teoria de Pierre Bourdieu é atribuir a obra uma espécie de valor mercantil para adentrar em um mercado de bens simbólicos, regido por aqueles que possuem códigos historicamente constituídos e socialmente reconhecido, como condição para apropriação simbólica da obra de arte oferecida em um dado momento do tempo para uma sociedade específica. A aceitação e circulação da obra pelos atores que possuem os instrumentos que possibilitem essa recepção faz parte do processo de legitimação (11). Na obra analisada, a legitimidade se dá por ocupar um espaço reconhecido, autorizado e com lugar de destaque na paisagem urbana, pela curadoria de uma galeria de arte, reconhecimento pelo poder público, patrocínio inicial de uma empresa e num segundo momento por apoio e reconhecimento popular.
É possível também pensar o mural como elemento para entender o processo de criação na paisagem urbana. A socióloga americana Sharon Zukin, a partir do que define como “paisagem de poder”, concentra seus esforços em entender a paisagem urbana como construção material e também representação simbólica das relações sociais e espaciais. Para Zukin, a circulação de imagens para consumo visual é inseparável das estruturas centralizadas de poder econômico (12). Desse modo, a paisagem urbana pode ser pensada como construção, ordenação e imposição, mediada pelo poder das instituições dominantes (igreja, fábrica, franquia corporativa, estado etc.) de modo a criar contraste com o que é construído e vivenciado pelos desprovidos de poder, criando uma espécie de conflito. Essa assimetria de poder modela o sentido dual da paisagem. Nesse sentido, é possível pensar o Mural da luz como uma estilização da paisagem para fruição, estrategicamente posicionada e trabalhada para formar um ícone na cidade. A obra passa a ser também uma oferta de consumo visual a moradores e visitantes do espaço urbano.
A obra, entendida a partir do conceito definido por Zukin, é um objeto de disputa na construção da paisagem para formar um ícone na cidade. Ela é adotada como estratégia de marketing corporativo, usando a empena do prédio como uma espécie de mídia publicitária, com o objetivo de atingir brand awareness, conceito que David Aaker define como notoriedade da marca, capacidade de um potencial comprador reconhecer que uma determinada marca faz parte de uma certa categoria de produtos (13). O mural como imagem para consumo visual, seja na sua primeira aparição financiada por uma empresa ou na permanência por financiamento coletivo, é um elemento de disputa de espaço que embora colida com a paisagem construída pelos donos do poder fortalece a persona do artista como uma marca a ser lembrada por diferentes tipos de pessoas frente a gama de trabalhos de grafite que disputam o espaço urbano de modo autorizado ou contraventor.
Para a professora e pesquisadora Célia Ramos, a produção de uma obra de grafite com data marcada, material doado, local previamente determinado e interditado, mantém uma certa cumplicidade com o sistema, pois perde liberdade, expressão, surpresa, transgressão e capacidade de renovação criativa. A autora acredita que é uma maneira de domesticar o grafite ao esvaziar o ritual de risco do processo de produção da linguagem, uma vez que coloca o praticante como alguém que está sujeito às regras de quem o contrata. Ela acredita que o mural reivindica uma maior atenção à arquitetura da cidade e pretende o monumental como obra de arte durável e apreciada levando em conta o distanciamento do receptor e o entorno da cidade que se integra a obra, diferente do grafite transgressor, que é vontade de interferir no ambiente como suporte de expressão e comunicação para chamar atenção para si, onde importa mais o lúdico, a conquista do espaço hoje, no aqui e agora (14).
Não obstante, Melim trabalha em sua obra imagens relacionadas a anúncios publicitários anacrônicos, formando uma espécie de questionamento ao consumo, ao passo que, na parte superior da obra; seu nome, embora cortado, aparece dentro de um balão de fala muito usado em histórias em quadrinhos, uma clara referência ao grafite transgressor que tem na base o ato de chamar atenção para si.
Nessa perspectiva, é possível pensar o Mural da Luz como parte de uma campanha publicitária na medida em que serve como matéria prima para a criação de uma estratégia de comunicação que absorve significados, constituintes do reportório cultural e estético de uma determinada sociedade, em benefício de uma empresa patrocinadora e até mesmo da própria persona do artista. Por outro lado, essa estrutura possibilita a produção e a permanência de um trabalho de grafite de grande dimensão e custo em uma conjuntura acostumada a lidar com obras em menor escala, ausência de recursos e participação efêmera no cenário urbano. Conforme constatado, a obra também passa a ser reconhecida como um bem simbólico legitimado o que lhe confere uma posição no campo da arte. Essa multiplicidade interpretativa permite a oportunidade de pensar a obra de modo que o grafite, de base transgressora, não possibilita. A mistura entre grafite, publicidade e mural nos deixa um convite a pensar a paisagem urbana e sua estilização no processo de comunicação e fruição nas ruas da cidade de São Paulo na atualidade.
notas
1
CORREA, Vanessa. São Paulo libera grafites patrocinados. Folha de S. Paulo, Caderno Cotidiano, São Paulo, 17 ago. 2011.
2
Depoimento de Eduardo Saretta, Diretor da Galeria Choque Cultural, em vídeo promocional sobre o Mural, para a empresa KLM <https://youtu.be/0cD2o4t0HQ8>. Acesso em 29 de outubro de 2015.
3
<www.meioemensagem.com.br/home/marketing/noticias/2011/06/28/20110628KLM.html>. Acesso em 26 de outubro de 2015.
4
SERRANO, Eliane P. G. A cultura muralista na América Latina: os painéis de Di Cavalcanti. IFCH Unicamp, IV Encontro de História da Arte, 2008.
5
Para maiores detalhes sobre a origem do grafite americano, ver: STEWART, Jack. Grafite Kings. Nova York, Abrams, 2009.
6
LASSALA, Gustavo. Pichação não é pixação. São Paulo, Altamira, 2010.
7
SÃO PAULO. Roteiro arte urbana. São Paulo, Site Oficial de Turismo da Cidade de São Paulo <http://www.cidadedesaopaulo.com/sp/br/o-que-visitar/roteiros/roteiros-tematicos/roteiro-arte-urbana>. Acesso em 30 de novembro de 2015.
8
COLETIVO RUA PRODUÇÕES ARTÍSTICAS. Mural da Luz: uma pintura de Daniel Melim. São Paulo, Catarse <https://www.catarse.me/mural_da_luz_daniel_melim>. Acesso em 19 de novembro de 2015.
9
GALERIA DE GRAVURA. Daniel Melim – Mural da Luz – Serigrafia – 66x48 <http://www.gravura.art.br/daniel-melim-1383.html>. Acesso em 30 de novembro de 2015.
10
REDAÇÃO. Obra de Daniel Melim é eleita a mais representativa de São Paulo. São Paulo, Veja São Paulo, 23 ago. 2013 <http://vejasp.abril.com.br/materia/grafite-de-daniel-melim-eleito-mais-representativo-sao-paulo>. Acesso em 19 de novembro de 2015.
11
BOURDIEU. Pierre. A economia das trocas simbólicas. Introdução, organização e seleção de Sérgio Miceli. São Paulo, Perspectiva, 2004.
12
ZUKIN, Sharon. Paisagens urbanas pós-modernas: mapeando cultura e poder. In ARANTES, Antônio Augusto (org). O espaço da diferença. Campinas, Papirus, 2000, p. 80-103.
13
AAKER, David A. Marcas: brand equity gerenciando o valor da marca. 13a edição. São Paulo, Elsevier, 1998.
14
RAMOS, Célia M. Antonacci. Grafite, pichação & Cia. São Paulo, Annablume, 1993.
sobre o autor
Gustavo Lassala é professor e pesquisador na Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo, Brasil. Doutor em Arquitetura e Urbanismo e Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela mesma instituição, Bacharel em Design pela Universidade São Judas Tadeu e Técnico em Artes Gráficas pelo Senai “Theobaldo De Nigris”. É autor do livro Pichação não é pixação.