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my city ISSN 1982-9922

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Milton Hatoum, arquiteto de formação e um dos maiores escritores brasileiros, comenta frase de Claudio Lembo, que chamou Brasília de cloaca, que teria “favelizado” a antiga capital Rio de Janeiro.

how to quote

HATOUM, Milton. Brasília não é uma cloaca. Minha Cidade, São Paulo, ano 17, n. 197.07, Vitruvius, dez. 2016 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/17.197/6352>.



“O maior erro do Juscelino foi transferir a capital. Destruiu o Rio de Janeiro e construiu uma cloaca”, afirmou o professor Claudio Lembo à Luiza Villaméa (Revista Brasileiros, 11/12/2016).

Quando a jornalista disse: “se a capital continuasse no Rio seria a mesma situação”, o ex-governador de São Paulo replicou: “Mas o Rio era a corte... As cortes têm mais experiência. Tinha uma sociedade muito mais estruturada. E destruiu o Rio porque favelou (sic) a cidade”.

Brasília não “favelou” o Rio. As primeiras favelas dessa cidade datam do final do século 19. Na primeira metade do século passado elas cresceram e se multiplicaram durante o processo de industrialização. Em 1960, quando Brasília foi inaugurada, havia dezenas de favelas no Rio. À qual “sociedade mais estruturada” o sr. Lembo se refere? E estruturada para quem?

A destruição do centro histórico e da paisagem do Rio e de outras cidades brasileiras começou bem antes da ditadura, quando as cidades foram administradas por interventores-prefeitos. Esses políticos, em conluio com a especulação imobiliária e as grandes construtoras, demoliram edifícios históricos e asfaltaram praças em nome da modernidade. Por trás dessa modernização manca havia interesses econômicos, ganância e corrupção. Alteraram ou criaram leis em benefício próprio. A partir dos anos 1980 foram construídos horríveis edifícios na maioria das capitais. Em Salvador, o caso recente do Condomínio “La Vue” (1) revelou-se uma mistura perfeita de péssimo projeto arquitetônico, crime contra o patrimônio histórico de Salvador e desfaçatez política.

Milhares de favelas do Rio, de São Paulo e tantas cidades nada têm a ver com o projeto urbano e arquitetônico de Lúcio Costa e Niemeyer, nem com o projeto político de JK. No último meio século, quantos prefeitos e governadores investiram seriamente na infraestrutura urbana? Os pobres e miseráveis foram alojados em unidades habitacionais vergonhosas ou, aí sim, abandonados nas favelas.

Brasília não é a causa desse infortúnio. Está certa a jornalista Luiza Villaméa: se a capital ainda fosse o Rio, a qualidade dos políticos não seria outra. Basta ver o que acontece na Assembleia Legislativa do Rio, de São Paulo... Na verdade, quase todos os Estados, saqueados e mal administrados, estão falidos. Esse desmando vem de muito longe. Áreas públicas do Distrito Federal foram griladas no governo de Roriz, que trocou votos por terrenos. A desfiguração da capital federal data dos anos 1970, quando terrenos públicos à margem do Paranoá foram ocupados para a construção de condomínios de luxo. O Setor Hoteleiro Norte virou um amontoado de torres horrendas. E por pouco Eduardo Cunha (finalmente encarcerado) não constrói um shopping de luxo para o consumo fútil e delirante de seus pares e respectivas madames da capital.

Também discordo de outras afirmações do sr. Lembo: “Brasília não tem nada. É uma cidade deserta. No final de semana é uma tragédia. Uma cidade da fuga”.

Afirmar que a capital é “uma cidade deserta, uma cidade da fuga” significa desconhecê-la por completo. Os brasilienses (nativos ou por adoção) não fogem de sua cidade, e não a consideram culpada pelo desastre do país. Um espaço urbano não explica “o lobby, a prostituição política, econômica”, como disse o sr. Lembo. É o processo histórico que explica o impasse brasileiro, nosso cotidiano violento, a falta de caráter de tantos políticos, a empáfia do presidente do senado ao desafiar e humilhar um ministro do STF, com a cumplicidade de outros ministros. É o velho e insidioso pacto do poder econômico com os poderes públicos: as três instituições que hoje se engalfinham com ares histriônicos, ridículos, pretensamente teatrais. Mais uma tragicomédia, cujos atores são bem conhecidos: têm nome, sobrenome e, alguns, até codinome.

A cloaca está em vários Estados e em muitos dos 5.570 municípios. E por toda parte há poderosos (pequenos e grandes) que, com seus representantes locais, participam impunemente da grande orgia de interesses políticos e econômicos. E o povo – a classe média e os mais pobres – que se lixe!

Concordo com uma afirmação do sr. Lembo: “O Brasil é um país reacionário, conservador, extremamente retrógrado”. Essa frase de um soberbo representante da elite política não é nada desprezível. Mas Brasília não é uma cloaca. Foi um projeto belíssimo, ousado como um sonho, e talvez ingênuo demais num país extremamente reacionário, conservador, retrógrado. E, vale acrescentar: essencialmente injusto.

notas

NA – Publicação original: HATOUM, Milton. Estado de S.Paulo, Caderno 2, São Paulo, 30 dez. 2016.

1
NE – sobre o edifício La Vue, em Salvador, ver: FERREIRA, Juca. A cultura resiste, viva o Iphan. O episódio do Edifício La Vue Barra em Salvador. Minha Cidade, São Paulo, ano 17, n. 196.06, Vitruvius, nov. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/17.196/6297>.

sobre o autor

Milton Hatoum, arquiteto formado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU USP, é escritor, autor de um Relato de um certo Oriente, Dois Irmãos, Cinzas do Norte e Órfãos do Eldorado e diversos outros livros, ganhadores do Jabuti e outros prêmios importantes.

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