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português
O Mamonas Assassinas, grupo musical que morreu tragicamente em 1996, cresceram no Parque Cecap, exemplo da arquitetura moderna paulista. A partir das reflexões de José de Souza Martins, o texto relaciona a origem de classe e a cultura vinda da periferia.
COSTA, Frederico. Mamonas Assassinas e o subúrbio. Os meninos pobres da Cecap vão ao Chopis Centis. Minha Cidade, São Paulo, ano 17, n. 200.01, Vitruvius, mar. 2017 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/17.200/6438>.
José de Souza Martins pergunta e responde:
“Como a Sociologia analisa o conceito de periferia na atualidade?
[…]. Não só o subúrbio que se transformava e que revolucionava o urbano ficou à margem do interesse dos estudiosos das ciências sociais, mas a periferia, sobretudo, foi objeto de interesse limitado, unicamente como lugar de exclusão social e da violência, coisa que ela é apenas em parte ou nem sempre é. […]. Um ‘conceito’ pobre da pobreza.
Por que razão firmaram-se preconceitos contra os suburbanos ou contra a vida suburbana, algo, por exemplo, tão presente na música popular brasileira dos anos 50 e 60?
A instrumentalização partidária e política da concepção de subúrbio e sua redução à pobreza da noção de periferia tem muita responsabilidade nesse preconceito. […]. De certo modo, esse preconceito está associado ao importante movimento de emancipação dos distritos do que veio a ser a Grande São Paulo. A emancipação político-administrativa dos distritos era uma forma de combater o preconceito. […]. O suburbio quis e conseguiu autonomia.
Enquanto isso o subúrbio se transformou profundamente, realizou boa parte de suas virtualidades e de suas promessas. A música popular assinalava as carências do subúrbio, mas ela assinalava também virtudes humanas e sentimentos que nos falavam dos heróis da vida cotidiana e da vida suburbana: ‘Trem das Onze’, aqui em São Paulo, e, no Rio, ‘Amélia’, ‘Chão de Estrelas’, ‘Lata d’Água’ e tantas outras. Mas, nos anos 90, não nos esqueçamos, em São Paulo o subúrbio retorna na música popular através dos conjuntos suburbanos, como os Mamonas Assassinas, de Guarulhos, e o Negritude Júnior, de Carapicuíba” (1).
Há 21 anos, no dia 2 de Março de 1996, os integrantes da banda Mamonas Assassinas sofreram o acidente que encerrou a carreira meteórica do grupo de Guarulhos. Em homenagem à banda, o município instalou uma estátua com a forma da sorridente “mamona”, que simbolizava o grupo, em uma praça que passou a ser chamada de Praça Mamonas Assassinas e que está localizada no Conjunto Habitacional Zezinho Magalhães Prado, ou Cecap.
O referido conjunto habitacional, talvez não por acaso, é um dos emblemas da arquitetura moderna paulista, projetado por três importantes arquitetos do país, Vilanova Artigas, Paulo Mendes da Rocha e Fábio Penteado (2). Concebido a partir de 1968, o projeto atende aos rígidos princípios de ordenação do espaço urbano através da racionalização da forma arquitetônica, típicos da ideologia da arquitetura moderna, mas foi desenvolvido de acordo com uma noção de “freguesia”, ou seja, com relativa autonomia funcional e de atividade, com previsão de equipamentos urbanos além das unidades habitacionais. Foi justamente no Parque Cecap, como se costuma chamar o conjunto, que os integrantes da banda conviveram durante a juventude e onde, em 1990, deram início à carreira musical, ainda com o nome de Banda Utopia. Nesse caso, qualquer aproximação ente “Utopia” e “Arquitetura Moderna” não passaria de uma tentativa infeliz e diletante de humor, muito diferente do que os Mamonas Assassinas costumavam exprimir em suas canções.
Piadas à parte, o sociólogo brasileiro José de Souza Martins procura compreender as representações sociais destes “conjuntos suburbanos”, como no caso do Mamonas Assassinas, como formas de expressão das virtudes e da riqueza social referentes à vida cotidiana e (sub)urbana da população.
Estas canções se constituem como esforços de construção de uma subjetividade coletiva que parte da “proclamação das virtudes próprias” daquela condição de vida e contra as grandes generalizações que tendem a representar as populações destas regiões como aglomerados genéricos (negativos ou positivos), como pobres, marginalizados, trabalhadores. Generalizações que não condizem, ou não dão conta, nem das virtudes e nem das carências reais destes grupos e destas áreas da cidade. Nestas músicas, portanto, estão presentes tanto os dilemas e as dificuldades, como também alegrias, as qualidades e as formas de se ver o mundo a partir desse contexto.
Ironia do destino constatar que justamente a arquitetura moderna, uma das principais difusoras de certa concepção homogeneizante da cidade e da vida social, tenha sido um elemento significativo a dar forma ao espaço urbano no qual se deu o encontro, a convivência e a formação destes cinco jovens suburbanos. Nesse sentido, Mamonas Assassinas e Cecap são polos opostos de uma síntese dialética, espacial e urbana, de resultados notadamente extraordinários, explícitos pela aclamação popular e pelo reconhecimento disciplinar, respectiva e simultaneamente.
Esse suposto acaso que congrega elementos aparentemente tão dispares – de um lado, a erudição disciplinar arquitetônica e, do outro, a exuberância escrachada da banda de rock popular – demonstra a dificuldade, as oportunidades e os desafios para se encarar a arquitetura diante da realidade social e urbana brasileira, que tenderam a subverter as pretensões de ordenamento e controle social, comuns à ideologia moderna da arquitetura, convertendo-os em formas de expressão paródicas, nesse caso.
Nesse sentido, a condição aparentemente isolada e excessivamente ordenada do conjunto, que contrasta com o entorno aparentemente desordenado, não dá conta de exprimir, por si só, as vicissitudes desencadeadas pela relação entre o conjunto e a realidade social e urbana diversificada onde está inserido. Mesmo que o conjunto se refira aos símbolos mais radicais da abstração técnica da arquitetura moderna, ainda assim, estes aspectos não foram suficientes para neutralizar um sentimento de pertencimento e identificação daqueles moradores por aquela vizinhança o pela própria cidade de Guarulhos.
No entanto, sem considerar a condição de excepcionalidade do Cecap, resultado da ação limita da política pública e do caráter exemplar preconizado pela arquitetura, desprezam-se os contrastes que estabeleceu na região. Neutralizam-se os efeitos desencadeados pelo acesso aos serviços públicos, de usufruto dos espaços públicos que favoreceram os episódios vivenciados ali e que propiciaram aqueles jovens acreditar que seria possível alçar voos maiores do que se esperava deles mesmos e de seus semelhantes (3).
Esse emaranhado de situações resultou em uma percepção afiada, sensível, bem-humorada e provocativa da realidade urbana por parte dos integrantes da banda e se exprimiu em uma de suas músicas mais conhecidas, na qual encontramos uma leitura fina e sarcástica de um fenômeno da pós-modernidade arquitetônica: o “Chopis Centis”.
Eu dí um beijo nela
e chamei pra passear.
A gente fomos no shopping,
pra mó de a gente lancha.
Comi uns bicho estranho, com um tal de gergelim.
Até que tava gostoso, mas eu prefiro aipim.
Quantcha gente,
E quantcha alegria,
A minha felicidade
É um crediário
Nas Casas Bahia.
Esse tal Chopis Centis é muito legalzinho,
Prá levar as namorada e dá uns rolêzinho.
Quando eu estou no trabalho,
Não vejo a hora de descer dos andaime
Prá pegar um cinema, do Schwarzeneger
e também o Van Damme.
Quantcha gente,
E quantcha alegria,
A minha felicidade
É um crediário
nas Casas Bahia.
A música explicita com humor, e com destaque para as variantes linguísticas, o estranhamento frente aos novos paradigmas da modernidade urbana que pouco se relacionam com aspectos familiares à vida urbana e suburbana local. Deixa claro, no entanto, que apesar de abruptas (considerando a escala de um shopping center em relação aos equipamentos urbanos convencionais) e sedutores, essas mudanças não são nem completamente disruptivas em relação aos gostos e costumes locais (na oposição entre o Gergelim, em referência aos fast-food, e o Aipim, facilmente encontrado em tradicionais botecos por toda a cidade), nem completamente rejeitadas ou indesejáveis. Encontramos também, já nesse momento, o papel significativo dos shoppings na sociabilidade urbana em detrimentos dos espaços públicos, com referência explicita ao termo “rolêzinho”, recentemente polemizado. Por sim, são assinaladas as coerções econômicas que inviabilizam essa sociabilidade e que garantem acesso aos bens de consumo, sobretudo, mediante endividamento, ou seja, a felicidade condicionada ao “crediário nas Casas Bahia”.
Essa breve lembrança, além de uma singela e oportuna homenagem, serve também de estímulo para tantas pesquisas e iniciativas que buscam na música, na literatura e nas demais manifestações culturais populares formas de compreender e traduzir as representações sociais e espaciais, de modo a nutrir o imaginário arquitetônico e aprimorar nossa apreensão das cidades brasileiras (4).
Mamonas Assassinas (1995-1996)
Dinho (Alecsander Alves), vocalista
Bento Hinoto (Alberto Hinoto), guitarrista
Samuel Reoli (Samuel Reis de Oliveira), baixista
Sérgio Reoli (Sérgio Reis de Oliveira), baterista
Júlio Rasec (Júlio César), tecladista
notas
1
MARTINS, José de Souza. Subúrbio e periferia, antinomias do urbano. In: MARTINS, José de Souza. A aparição do demônio da fábrica. São Paulo, Editora 34, 2009. Entrevista publicada originalmente em Espaços & Debates (Revista de Estudos Regionais e Urbanos), ano XVII, n. 42 (“Periferia revisitada”), São Paulo, Núcleo de Estudos Regionais e Urbanos, 2001, p. 75-84.
2
O conjunto recebeu o nome de Conjunto Habitacional Zezinho Magalhães Prado, mas ficou conhecido como Parque Cecap, em referência à Caixa Estadual de Casas para o Povo, uma autarquia tutelada pelo governo do estado de São Paulo. Alguns artigos com informações sobre o conjunto: SALDANHA DE AVILA, Débora; CANEZ, Anna Paula. Habitações coletivas verticais de Paulo Mendes da Rocha (1962 a 2004). Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 194.05, Vitruvius, jul. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.194/6127>; VIOLA, Assunta. A formação da paisagem na periferia da cidade de São Paulo. Arquitextos, São Paulo, ano 08, n. 088.04, Vitruvius, set. 2007 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.088/207>.
3
Nesse sentido, ver o vídeo memorável de 6 de Janeiro de 1996, pouco antes do acidente, em que o vocalista da banda, Dinho, se dirige ao público durante um grande show realizado no Ginásio Poliesportivo Pascoal Thomeu, o "Thomeuzão". O episódio marca o momento em que os Mamonas Assassinas se apresentam nesse grande equipamento público de Guarulhos, que normalmente recebia atrações nacionais consagradas. Na fala do vocalista, ele relembra a impossibilidade de tocar naquele espaço anteriormente e seu desabafo dá sentido ao que acontecia ali naquele momento, ou seja, um momento de identificação do subúrbio consigo mesmo, mas de um modo excepcional no qual a forma de expressão “local” ocupava o protagonismo junto às formas “centrais”, “hegemônicas”, “centrais” de expressão. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=iIFv-J6fmEo>.
4
Destaque para o artigo recentemente publicado: LEONELLI, Gisela Cunha Viana; BALDAM, Rafael. Cidade ausente: interdisciplinaridade de um sentimento urbano entre a música e a migração brasileira. Pós, v. 23, n. 41, São Paulo, PPG-FAUUSP, 2016 <www.revistas.usp.br/posfau/article/view/115387>. Ver também: VIRGÍLIO, Marcos. São Paulo, 1946-1957: representações da cidade na música popular. São Paulo, Biblioteca 24x7, 2011; VIRGÍLIO, Marcos. Debaixo do 'Pogréssio': urbanização, cultura e experiência popular em João Rubinato e outros sambistas paulistanos (1951-1969). Tese de Doutorado. Orientadora Maria Lucia Caira Gitahy. São Paulo, FAU USP, 2011.
sobre o autor
Frederico Costa é arquiteto urbanista formado pela Unicamp em 2011, mestrando na área de História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo na FAU USP, pesquisador e assistente de curadoria em exposições de Arquitetura e Pensamento Urbano.