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português
Entre ao direito à privacidade e o processo de verticalização temos inevitáveis conflitos. José Roberto Fernandes Castilho comenta os antagonismos e a tendência da justiça privilegiar os interesses coletivos em detrimento dos individuais.
CASTILHO, José Roberto Fernandes. Os prédios altos e a vizinhança. Decisões recentes do Tribunal de Justiça de São Paulo afirmam a prevalência das normas urbanísticas sobre direitos individuais. Minha Cidade, São Paulo, ano 17, n. 200.02, Vitruvius, mar. 2017 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/17.200/6439>.
A privacidade é um valor constitucional. A ordenação urbana também o é. O que fazer, então, quando, num caso concreto, um valor se coloca em conflito com o outro? Trataremos aqui exatamente de um caso desses em referência à matéria urbanística. Decisões recentes do Tribunal de Justiça de São Paulo, de setembro de 2016 e de fevereiro de 2017 – ambas de Comarcas do interior do Estado – enfocaram problema comum das cidades brasileiras médias e grandes: a construção de prédios altos que afetam a qualidade de vida dos vizinhos, notadamente no que concerne à privacidade, à segurança e até a salubridade por causa do sombreamento. Então, a questão a ser posta – respondida de modo unívoco pelos acórdãos – é a seguinte: terão os vizinhos o direito de impedir ou limitar a construção de prédios altos em razão do impacto que estes acarretarão nos lotes do entorno? Em outras palavras, os proprietários destes lotes podem interferir na construção posto que esta, à evidência, desvalorizará suas propriedades? E, então, poderão pretender alguma indenização?
A resposta é negativa. O caso julgado em 2016 é de São Carlos. Vizinhos entraram com ação de indenização contra condomínio edilício alegando danos materiais e morais (“danos à intimidade e à vida privada”). Pediam ainda o reembolso das despesas com aquisição de alambrado para sustentação de cerca viva que foi colocado no seu imóvel com o intuito de “vedar a visualização pelos ocupantes do edifício”. A ação foi julgada improcedente, nas duas instâncias, porque não houve violação do direito de construir por parte do condomínio, que obedecia todas as normas urbanísticas locais. “Não havendo posturas edilícias municipais que impeçam tal construção, não poderiam os autores postular indenização em razão da invasão da sua privacidade pela visão que os ocupantes do imóvel vizinho possam ter da sua propriedade, já que não há limites verticais para construção em relação ao seu imóvel”, diz o acórdão que afirmou o uso normal do lote do condomínio porquanto a lei de zoneamento o autorizava.
E acrescenta: “Aquele que reside em uma casa com amplo quintal, notadamente em cidades de médio e grande porte, deve ter a consciência, de antemão, que corre o risco de ter sua privacidade reduzida a qualquer momento, diante do notório processo de verticalização dessas cidades, onde, cada vez mais, os terrenos são utilizados para a construção de edifícios com múltiplos pavimentos, não sendo legítimo admitir a imputação de responsabilidade ao proprietário por eventuais anos materiais ou morais decorrentes da edificação no seu imóvel, em face da natural circunstância de ocasionar a redução de privacidade e/ou insolação nos prédios vizinhos” (Ap. 1001412-12.2014.8.26.0556).
Mais complexo, o outro caso, julgado em fevereiro de 2017, é de Valinhos. Trata-se de demanda pela nulidade da licença edilícia, formulada contra a Prefeitura Municipal e contra a incorporadora por associação de moradores de loteamento fechado, visando impedir a construção de um prédio de 12 pavimentos na vizinhança. A ação visa atingir a aprovação do projeto pelo Poder Público, desfazendo-a, o que tornaria a construção ilegal. Reconhecendo o Tribunal que não houve qualquer desconformidade do empreendimento com as normas urbanísticas, também julgou improcedente o feito, mesmo que, por exemplo, a área das piscinas pudesse ser vista a partir do edifício em construção.
E – aduzo eu –, parece claro que os moradores poderão tomar banhos nus nelas, se quiserem, porque o quintal de uma residência não pode ser considerado lugar aberto ou exposto ao público, para os efeitos do crime do art. 233 do Código Penal que pune o ato obsceno. Existirá notória diferença conceitual entre indesejada “redução da privacidade” no interior do lote e, no extremo oposto, voluntária “exposição ao público”, ensejando a atipicidade da conduta, na hipótese. O quintal é um local privado, protegido pela Constituição, que pode, eventualmente, ser visto de outro local privado. Na sociedade da informação, trata-se de tipo penal completamente anacrônico podendo-se lembrar, a respeito, o célebre caso do diretor Gerald Thomas que, em protesto, desnudou-se parcialmente no palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 2003, após a estréia de um espetáculo mal recebido. No ano seguinte, o Supremo Tribunal Federal trancaria a ação penal por ato obsceno analisando o contexto (HC 83996/RJ).
Do mesmo modo que o anterior, registrou o acórdão de 2017 que “a verticalização das construções é uma tendência irreversível, sobretudo nas maiores cidade, sendo inevitável que as edificações mais altas proporcionem visão para as mais baixas, de modo que somente a lei local poderá determinar limite de altura para as construções, tendo as construções mais baixas que se adequar para não ficarem indesejavelmente expostas em relação às construções mais altas”. E ainda averba que nenhuma das normas do Código Civil “conferem ao dono do prédio mais baixo o direito de impor ao dono do prédio vizinho aproveitamento menor da capacidade construtiva, segundo as normas urbanísticas locais, para não ter altura maior e com vista para o prédio mais baixo” (Ap. 0008419-82.2012.8.26.0650). Ou seja, os interesses dos vizinhos não se sobrepõem à competência do ente local para promover a adequada ordenação do solo urbano.
Portanto, em conclusão, pode-se dizer: a) é evidente, no caso especificado, o conflito entre privacidade, segurança e salubridade com a ordenação urbana que define índices de ocupação do solo, sendo esta competência municipal (art. 30/VIII da CF); b) mas prédios altos, se permitidos pela legislação urbanística local, não podem ser impedidos pelos vizinhos na defesa de interesses privados; c) e, além disso, a construção de prédios altos não pode ser considerada “uso anormal” – ou, no Código Civil revogado, “mau uso” – da propriedade, o que afasta qualquer pretensão seja à nulidade da licença seja à reparação de danos. Isto é o que diz a jurisprudência atualmente: os prédios altos causam sim danos ao “espaço pessoal” dos vizinhos. Porém, esta redução da privacidade é uma condição de todos os que moram em cidades grandes ou médias onde as relações de proximidade (não de interação) são muito mais intensas. Então o Tribunal consagra, como parâmetro mediano, os “níveis ordinários de tolerância aplicáveis no convívio social”, baseado nos critérios da razoabilidade e da proporcionalidade (1003087-26.2013.6.26.0281).
No entanto, nada impede que os cidadãos discutam e questionem, na elaboração do plano diretor e da lei de zoneamento, a fixação dos índices urbanísticos, o que é plenamente possível e mesmo desejável na perspectiva da participação democrática. Em seu livro Arquitetura: escolha ou fatalidade, o conhecido arquiteto Léon Krier observa que as cidades históricas raramente ultrapassam o coeficiente 2 (a área da edificação correspondente ao dobro da área do lote). Esta densidade é facilmente atingida por edifícios que não excedem de três a cinco andares, permitindo os jardins privados e os espaços públicos bem enquadrados, agradavelmente iluminados pelo céu e com proporções humanas. Ele considera, ainda, que as cidades mais belas e mais agradáveis para se viver no mundo desenvolveram-se em alturas compreendidas entre os dois e os cinco andares. O quinto pavimento constitui-se, para ele, no “ponto crítico”, que pode conduzir a um “manhattanismo insidioso” (1).
Se os cidadãos não discutirem estes temas de interesse geral quando da elaboração das normas de ordenação urbana – quando sua participação é requerida pela lei –, não poderão, ao depois, questioná-las com base em interesses ou valores privados. Além disso, na cidade atual há consolidado um dever geral de tolerância que se manifesta, por exemplo, na passagem das águas que correm naturalmente do prédio superior para o inferior. O proprietário terá de tolerar esta passagem (art. 1.288 do CC/02) como terá de permitir o alçamento do muro divisório dos lotes mesmo que isto produza prejuízos à insolação e à ventilação (há decisão, da Comarca de Botucatu, afirmando que muro de 4,10 m de altura não é abusivo – feito 4004547-21.2013.8.26.0079). Terá de tolerar também a perda da privacidade em face da construção de prédios altos, desde que estes estejam conformes com a legislação urbanística no momento da aprovação do projeto, que é ato administrativo vinculado.
nota
1
KRIER, Léon. Architecture: choix ou fatalité. Paris, Institute Français d’Architecture, 1998.
sobre o autor
José Roberto Fernandes Castilho é professor de Direito Urbanístico da graduação em Arquitetura e Urbanismo da FCT/Unesp, em Presidente Prudente.