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português
Os governos municipal e estadual de São Paulo demonstram-se pouco a vontade na administração da cultura em suas pastas específicas, sendo cortando verbas da área, sendo demonstrando ignorância sobre as manifestações de arte urbana.
COLI, Jorge. O roedor de verbas da cultura em São Paulo. Minha Cidade, São Paulo, ano 17, n. 200.03, Vitruvius, mar. 2017 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/17.200/6443>.
Depois de gastos que atingiram mais de R$ 100 milhões, o Estado de São Paulo abandonou o projeto do Complexo Cultural da Luz. O governador Geraldo Alckmin (PSDB) atacou também a Fapesp e suas pesquisas inúteis, segundo ele "sem utilidade prática". No concreto, restringiu a dotação orçamentária daquela instituição. Dissolveu a Banda Sinfônica do Estado. Cortou, de maneira drástica, os orçamentos da Osesp, do Theatro São Pedro e de sua orquestra, assim como o da Jazz Sinfônica.
Não é preciso mais. Tudo converge. É uma valorosa cruzada sob o estandarte do obscurantismo. A crise é pretexto que funciona como desculpa. Cultura, conhecimento custam pouco ao Estado. Nelson Kunze escreveu, no site da revista Concerto: "Pergunto: o que justifica cortes de mais de 40% em valores reais em uma realidade de queda de arrecadação que não atinge 8%? Por que impor esse estresse à cultura, cujo investimento consome menos de 0,4% do orçamento anual do estado?" (1).
Porque a cultura, o conhecimento, tornaram-se resíduos. No passado, eram atributos de classe. As escadarias e saguões cenográficos do Teatro Municipal, seus espelhos, formavam o lugar em que os mais ricos ofereciam-se a si mesmos como espetáculo.
A classe média tinha também uma crença nos poderes, um pouco misteriosos, dos livros, das obras de arte, das ciências. Raras eram as casas que não possuíam uma estante de livros, por pequena que fosse.
Essa valorização, essas crenças, essas convicções simbólicas, diminuíram a ponto de se tornarem irrelevantes. Para quem, hoje, Beethoven é essencial? Para uma minoria insignificante. O Estado pode continuar roendo as verbas destinadas à cultura, o impacto eleitoral disso será mínimo. Mesmo a extinção de uma grande instituição como a Osesp não causaria indignação a muita gente. É verdade que, nesse último caso, há alguns santos fortes que a protegem, limitando os estragos. Mas é dado circunstancial.
O governo é pragmático. Trata de eliminar aquilo que interessa a pouca gente. Que o conhecimento e a cultura incorporem a inteligência de uma sociedade na escolha de seus destinos, quantos se importam com isso?
A Prefeitura de São Paulo decidiu perseguir os grafiteiros. Com eles, também os pichadores. Não estou convencido de que a distinção seja grande entre os dois. O grafite é elaborado, suas imagens são caprichadas, e consegue mais simpatia, mais reconhecimento como "arte", por causa do "bem feito". A pichação vincula-se à escrita, ao hieróglifo, ao grafismo urgente, à assinatura.
Tal como entendida hoje, a pichação sempre existiu, desde a Antiguidade: Pompeia está cheia de inscrições de nomes, datas, mensagens, desenhos sumários, tantas vezes obscenos. Quem faz a história da arte de rua contemporânea busca origens recentes no desenhinho de um homem careca com nariz comprido acompanhado pela inscrição "Kilroy was here" (Kilroy esteve aqui), que pipocou nos Estados Unidos durante os anos de 1940.
Keith Haring criou uma grafia com seus bonequinhos; nisso está próximo do pichador. Pelo caráter sumário, tosco, de suas imagens, Basquiat deriva diretamente da pichação, que ele praticava. Os Gemeos começaram pichadores, antes de adquirirem a grande celebridade como grafiteiros.
O grafite é mais domesticado, o picho – ou pixo – é guerrilheiro e transgressor. Ambos, porém, são manifestações artísticas. Arte que atinge um público muito vasto, que tem claro impacto político e exprime conflitos de classe. Arte que brotou em situações não artísticas de reconhecimento. O mercado das artes, que é tudo, menos bobo, já recuperou essas produções.
Mas os burocratas da prefeitura não entendem assim. Não é tão espantoso: os burocratas da Bienal de São Paulo também perseguiram na Justiça a pichadora que se manifestou contra aquela patética Bienal do Vazio. É triste.
Que grafiteiros e pichadores tenham que ser limitados pelos poderes públicos, não há dúvida. Há que se proteger monumentos e o que mais for. Sabendo conviver, ao mesmo tempo, com essas pulsões criadoras que brotam fortes com tanta energia.
São Paulo é um grande centro planetário da arte de rua e produziu alguns de seus mais brilhantes artistas. Aqui, a arte das ruas impôs imagens que, por assim dizer, tornaram-se clássicas. Um desses museus públicos era o túnel sob a avenida Paulista, que a prefeitura mandou apagar. Isso me parece mais bárbaro do que pichar o Monumento às Bandeiras, por exemplo. Porque o pichador está na coerência de sua transgressão subversora. Enquanto a prefeitura só está na coerência da sua inépcia.
nota
NE – publicação original do artigo: COLI, Jorge. O roedor de verbas da cultura em São Paulo. Folha de S.Paulo, São Paulo, 05 mar. 2017.
1
KUNZE, Nelson. Nação civilizada (ou seria incivilizada?). Concerto, São Paulo, 18 jan. 2017 <www.concerto.com.br/facebook/textos.asp?id=687>.
sobre o autor
Jorge Coli é professor titular e diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, Campinas SP, Brasil.