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my city ISSN 1982-9922

abstracts

português
Utilizando a fotografia como fonte documental da memória urbana de Campos RJ, objetivamos analisar as mudanças ocorridas em seu espaço físico, a fim de contribuir para o debate sobre a questão de preservação do patrimônio histórico das cidades.

english
Using photography as a documentary source for the construction of urban memory in Campos RJ, we aimed to analyze the changes in their physical space in order to contribute to the debate on the issue of preservation of historical heritage of cities.

español
Utilizando la fotografía como fuente documental de la memoria urbana de Campos RJ, objetivamos analizar los cambios ocurridos en su espacio físico, a fin de contribuir al debate sobre la cuestión de preservación del patrimonio histórico de las ciudades.

how to quote

PRATA, Maria Catharina Reis Queiroz; NÓBREGA, Claudia Carvalho Leme. Fragmentos da cidade e da memória. Minha Cidade, São Paulo, ano 18, n. 212.02, Vitruvius, mar. 2018 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/18.212/6915>.


Praça São Salvador, detalhe
Foto Maria Catharina Reis Queiroz Prata


O passado arraigado na cidade do presente representa a nossa herança patrimonial. Através dessa herança nós estabelecemos uma relação com o acontecido, conhecemos nossa realidade presente e caminhamos na procura da perenidade, guardando memórias que nos identificam e testemunham a nossa vida. Ela nos confere identidade, orientação e estimula a nossa cidadania e o viver em comunidade (1).

Para uma cidade ou nação, esta herança é constituída pelos bens materiais e imateriais referentes à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade. Em sua dimensão coletiva, ela se revela e se materializa no patrimônio arquitetônico: a forma edificada da identidade de um povo, da memória das técnicas construtivas históricas e de suas manifestações artísticas num determinado período do tempo (2).

A intenção deste artigo é refletir sobre as transformações e perdas patrimoniais do espaço urbano de Campos dos Goytacazes, situada ao norte do estado do Rio de Janeiro (3). Elegemos nesta comunicação a Praça São Salvador, área identificada como região embrionária e polo de irradiação de crescimento da cidade, objetivando discutir as transformações morfológicas numa das faces da praça, utilizando a fotografia urbana como principal fonte documental.

“Conhecer” a cidade de Campos dos Goytacazes é se deparar com um acervo representativo de vários períodos da história da arquitetura brasileira. O estudo de sua memória local representa, portanto, uma experiência extraordinária de pesquisa, devido principalmente à escassez de estudos na área, além de que a questão da preservação constitui responsabilidade a ser assumida não apenas por pesquisadores, arquitetos, ou outros profissionais interessados em cultura, mas por todos os cidadãos.

Registrando a memória da cidade através da fotografia: um método

Avaliar as transformações de um “lugar” através de suas imagens fotográficas é tentar ir além do que apreendemos à primeira vista. Peter Burke (4) reflete sobre o desafio na utilização de imagens para compreender outras épocas, por entender que estas são testemunhas mudas, sendo difícil “traduzir em palavras o seu testemunho”.

A fotografia possui ainda a habilidade, diante da história, de expor as lembranças dos indivíduos. Ela é um fragmento do mundo, podendo ser o registro da materialidade de uma cidade em determinado período e local, trazendo importantes informações ao estudo da historiografia das urbes.

Tomando como embasamento teórico os conceitos de José Manuel Lamas e de Maria Elaine Kohlsdorf, reinterpretados por Maria Helena de Andrade Azevedo (5), este artigo busca aplica-los à leitura da forma histórica e morfológica de uma das faces da Praça São Salvador, no início do século e em sua situação atual – através de fotografias –, explicando esta evolução pela conformação urbana característica da cidade, voltada para o Rio Paraíba do Sul e em contínuo crescimento em torno da dita praça.

Usaremos, portanto, como ferramenta metodológica de análise de fotografias do centro histórico da cidade fluminense, o método desenvolvido por Maria Helena de Andrade Azevedo (6) em sua dissertação de mestrado, que indica a aplicabilidade das categorias kohlsdorfianas aos estudos morfológicos desenvolvidos a partir de fotografias antigas urbanas. No quadro abaixo destacamos as seis categorias e os elementos analíticos a serem observados:

Categorias morfológicas e elementos analíticos
Imagem divulgação [Adaptado de KOHLSDORF apud AZEVEDO]

Pela Praça São Salvador: fotografias da memória

No momento embrionário de sua gênese urbana, a vila colonial é implantada a partir de dois pontos de irradiação: a praça principal, denominada inicialmente por Praça, e o rio Paraíba do Sul. Segundo Heloiza Manhães Alves, “é desses dois polos que saem as principais ruas; partindo desse centro é que a cidade se expande” (7).

Precisamente no ano de 1835, a então vila de Sam Salvador dos Campos é elevada à categoria de cidade, num período de grande prosperidade econômica, e passa a contar com várias intervenções urbanísticas, tais como construção de canais, de estradas de ferro, instalação de água, esgoto e luz elétrica, realizadas por engenheiros militares.

Está datado de 1858 um registro cartográfico da cidade de Campos, realizado pelo engenheiro militar, Pedro D’ Alcântara Bellegarde (8). Este mapa compõe a “Carta Corográfica da Província do Rio de Janeiro”, onde identificamos algumas permanências urbanas, arquitetônicas e paisagísticas daquele período na atualidade, como por exemplo, a Rua Direita. Walter Rossa, discorrendo sobre cidades de origem portuguesa, nos adverte sobre os largos e sua importância numa mínima estrutura urbana, ressaltando este como o espaço para onde conduziam as principais ruas da cidade, provenientes dos seus principais acessos, podendo possuir em seu perímetro uma igreja importante, “a casa do concelho, do senhor, do almoxarife ou do alcaide” (9).

Ao buscarmos essa configuração espacial para a cidade de Campos dos Goytacazes, enxergamos o papel protagonista do antigo largo, hoje Praça São Salvador, como item fundamental de composição urbana da cidade, visto possuir em sua gênese os elementos definidos por Walter Rossa (10) como estruturantes do mesmo, tais como a frequente dualidade existente entre praça civil, dotada de Pelourinho e Câmara, e praça religiosa, com a igreja Matriz e a Misericórdia.

Detalhe da “Carta Corographica da Provincia do Rio de Janeiro...”, Pedro D’Alcântara Bellegarde, 1858
Desenho de Maria Catharina Reis Queiroz Prata sobre cartografia [Arquivo Digital da Biblioteca Nacional]

No detalhe destacado no mapa acima, podemos observar o largo da praça, identificado com o número 1; o quarteirão que será analisado posteriormente através das fotografias – número 2; o rio Paraíba do Sul – número 3; a “praça” religiosa, com a igreja Matriz e o Hospital da Misericórdia – número 4; a “praça” civil, dotada de Pelourinho e Cadeia – número 5; e o percurso da Rua Direita – número 6, destacada em seu tortuoso caminho de interligação da praça, o centro da nascente cidade, ao sul da província.

Inicialmente vamos destacar a sua “forma”, indicada por Maria Helena de Andrade Kohlsdorf (11) como sendo uma característica de imediata percepção. No caso específico de nossa análise, usaremos algumas fotos da cidade buscando apreender a sua forma em vários momentos históricos construídos ao longo do tempo.

Praça São Salvador, com edifício dos Correios em destaque e sobrados ecléticos destacados pela elipse
Foto ANI, 1930 [Domínio Público]

Através da cartografia elaborada por Bellegarde em 1858, confrontada com a fotografia da praça em 1930, confirmamos a manutenção do desenho regular, de forma retangular, onde nas faces menores da figura geométrica encontramos o Rio Paraíba do Sul, em sua parte superior, e a Igreja Matriz de São Salvador, em sua face inferior. Os lotes que ocupam os dois lados foram ocupados por sobrados, alinhados à face da rua, sobre os limites do terreno, onde se destacam os edifícios da “Associação Commercial, Repartição dos Telegraphos, Lyra de Apollo, Camara Municipal, templo da Misericordia, Banco do Brasil, palacetes Bastos Pimenta, Bartholomeu Lyzandro, Dr. Godofredo Tinoco, Hotel Gaspar e demais magníficos edifícios, coroados pela sumptuosidade da Cathedral do Padroeiro” (12).

Apreendida a “forma”, passemos para a aplicação do método e análise de duas imagens de uma das faces da Praça São Salvador, determinada pelo mapa abaixo quanto à posição de tomada das fotos e quarteirão a ser analisado.

Mapa da região onde se insere a Praça São Salvador, destacando a posição, ângulo de tomada das fotos
Desenho de Maria Catharina Reis Queiroz Prata sobre mapa da cidade [Prefeitura Municipal de Campos dos Goytacazes, 2008]

As fotografias da Praça São Salvador aqui apresentadas são da face 2, destacada em cor cinza no mapa, e foram tiradas em dois momentos distintos: 1930 e 2016.

Praça São Salvador, com edifício dos Correios em destaque e sobrados ecléticos destacados pela elipse
Foto Maria Catharina Reis Queiroz Prata

Ao compararmos as imagens após a aplicação do método de análise das categorias morfológicas e elementos analíticos presentes no quadro, observamos que a foto de 1930 retrata uma cidade eclética, inspirada notadamente na capital da República do período, o Rio de Janeiro. Os sobrados permeiam toda a face do quarteirão, destacando-se cada fachada em particular, dotada de personalidade própria. O primeiro imóvel é a Repartição dos Telégrafos, inaugurado na cidade em 1875, indicado pela letra A, seguido pela Associação Comercial, letra B, e o Banco do Brasil, letra C.

A foto de 2016 é o retrato da contemporaneidade. Os antigos sobrados ecléticos não mais existem, com exceção das três menores edificações existentes, destacadas pela figura geométrica da elipse. A Repartição dos Telégrafos, letra A da figura, mantém-se no mesmo local apesar da demolição do antigo prédio para outro de linhas modernistas construído em 1948. A Associação Comercial, letra B, teve a mesma postura para com seu imóvel: demoliu a antiga sede para a construção de um edifício moderno, totalmente envidraçado, dotado de mais de 12 pavimentos. O Banco do Brasil, letra C da figura, também teve sua antiga sede demolida e a nova construção foi edificada um pouco mais a frente do local original, na esquina do quarteirão, frontal ao Rio Paraíba do Sul, nos mesmos moldes arquitetônicos da Associação Comercial.

De toda a arquitetura eclética vislumbrada na foto de 1930, somente as três menores edificações assinaladas com a figura geométrica da elipse se mantêm, funcionando como estabelecimentos comerciais, hoje descaracterizadas por grandes letreiros que escondem suas fachadas, destituídas do “diálogo” com a outra face da praça, intitulada neste trabalho por “face 1” no mapa, onde ainda sobrevivem várias construções do período.

Praça São Salvador, face 1
Foto Maria Catharina Reis Queiroz Prata

Considerações finais

A análise de cartografias ou fotografias históricas, documentos-imagens de uma cidade ou país, é uma forma de tentarmos enxergar a cidade do passado nos estratos temporais acumulados desde sua gênese e que, por vezes, sobrevivem nos usos, no traçado urbano, nos elementos arquitetônicos. Entender suas mudanças morfológicas, decifrar seu imaginário e o processo histórico da qual se originou, pode nos ajudar a compreender seu momento atual, contribuindo para alcançarmos conhecimentos essenciais para posteriores ações de reabilitação dos espaços públicos e do edificado, gerando um diagnóstico crítico e independente para melhorar a qualidade das intervenções, quer na sua perspectiva mais geral e estratégica, quer no projeto urbano. O objetivo é que esses exames sejam instrumentos de trabalho, de reflexão e sirvam diretamente ao projeto de reabilitação urbana.

Não restam dúvidas sobre a perda patrimonial da Praça São Salvador, iniciada na década de 1940, através da demolição do prédio dos Correios, seguido pelo destombamento e posterior demolição do conjunto formado pela Igreja Mãe dos Homens e Santa Casa de Misericórdia, sucedidos por outras demolições na área. Refletindo sobre elas, e relacionando-as com as transformações urbanas do período, fazemos um questionamento: todas essas ações serão devidas ao desejo de constante novidade que a sociedade busca, apontada por Alois Riegl? Desde o início do século 20, o filósofo austríaco apontava que o “valor de novidade”, como intitula, “está tão solidamente ancorada [na sociedade] que não poderá ser extirpada no espaço de alguns decênios” (13).

Se assim ocorreu, entendemos que a face eclética do início do século 20 não mais representava os ideais modernos de urbanização na cidade e, tal qual a capital do Brasil no período, Campos buscou se modernizar, trazendo para a região os cânones pregados pelo nascente movimento moderno. Assim, a cidade tornou-se um palimpsesto de histórias contadas durante o tempo de sua formação, e a sua materialidade de hoje nos revela grandes transformações morfológicas ocorridas até seu presente.

Concluímos, por fim, que a memória coletiva ou social, considerada uma reconstrução do passado de qualquer cidade, é formada através das contribuições de diversas gerações. O legado dessa memória é transmitido, ao longo do tempo, por meio de suportes de memória. Sem os suportes materiais, representações e vestígios da cidade preexistente, não existe materialidade física e, consequentemente, só restarão fragmentos da cidade, fotografias de sua memória.

notas

1
Sobre o tema, ver: HALBWACS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo, Vértice, 1990.

2
Sobre o tema, ver: CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo, Editora Unesp, 2001.

3
Sobre o plano diretor da cidade, ver: CAMPOS DOS GOYTACAZES (cidade). Lei n.º 7.972, de 31 de março de 2008. Institui o Plano Diretor do Município de Campos dos Goytacazes. DIÁRIO OFICIAL DO MUNICÍPIO, de 11 de dezembro de 2007. Republicado no D.O.M, de 20 de dezembro de 2007.  Disponível em: www.campos.rj.gov.br/listaPlano.php. Acesso: 14 out 2013.

4
BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Tradução Vera Maria Xavier dos Santos; revisão técnica Daniel Aarão Reis Filho. Bauru, Edusc, 2004, p. 18.

5
LAMAS, José Manuel R. G. Morfologia urbana e desenho da cidade. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2000; AZEVEDO, Maria Helena de Andrade. A Rua Direita em preto e branco – cidade da Parahyba (1870-1930): Fotografias de arquitetura numa leitura histórico-morfológica da paisagem urbana. Dissertação de mestrado. João Pessoa, UFPB, 2010. Disponível em: <http://tede.biblioteca.ufpb.br/handle/tede/304?locale=pt_BR>.

6
AZEVEDO, Maria Helena de Andrade. Op. cit., p. 48.

7
ALVES, Heloiza Manhães. A Sultana do Paraíba. Reformas urbanas e poder político em Campos dos Goytacazes, 1890-1930. Rio de Janeiro, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2009.

8
FARIA, Teresa Peixoto. Gênese da rede urbana das regiões norte e noroeste Fluminense à luz do relatório do engenheiro Henrique Luiz de Niemeyer Bellegarde. In: Anais do X Encontro Nacional da Anpur. Cidade, planejamento e gestão urbana: história das ideias, das práticas e das representações. Belo Horizonte, Anpur, 2003. Disponível em <http://unuhospedagem.com.br/revista/rbeur/index.php/anais/article/viewFile/2264/2212>.

9
ROSSA, Walter. A urbe e o traço: uma década de estudos sobre o urbanismo português. Coimbra, Almedina, 2002, p. 226.

10
Idem, ibidem, 226.

11
KOHLSDORF, Maria Helena de Andrade. Apud AZEVEDO, Maria Helena de Andrade. Op. cit., p. 32.

12
SOUSA, Horácio (1935). Cyclo Aureo: história do 1º centenário da cidade de Campos 1835 – 1935. Reedição da obra original. Campos dos Goytacazes, Essentia, 2014, p. 25

13
RIEGL, Aloïs. Le culte moderne des monuments. Son essence et sa genèse. Tradução Daniel Wieczorek. Paris, Seuil, 1984, p. 96.

sobre as autoras

Maria Catharina Reis Queiroz Prata é arquiteta (UFES, 1989), mestre em Artes (UFES, 2010). É doutoranda em arquitetura no Proarq UFRJ e professora de arquitetura no Instituto Federal Fluminense (IFF) na cidade de Campos dos Goytacazes.

Claudia Carvalho Leme Nóbrega é arquiteta (FAU UFRJ, 1986), mestra em História e Crítica da Arte (EBA UFRJ, 1996), doutora em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR UFRJ, 2003). Ocupa atualmente o cargo de Professor Adjunto na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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