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Lincoln Paiva lembra como convenceu o prefeito Fernando Haddad a adotar prática urbanística de baixo impacto em bairro de São Paulo ao plantar árvores diretamente no asfalto, sem a necessidade de construção de ilhas de proteção.
PAIVA, Lincoln. Afastar pedras do caminho e plantar árvores no asfalto. Quando Fernando Haddad adotou solução urbanística de baixo custo. Minha Cidade, São Paulo, ano 18, n. 212.03, Vitruvius, mar. 2018 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/18.212/6919>.
“Onde houver uma árvore para plantar, planta-a tu. Onde houver um erro para emendar, emenda-o tu. Onde houver um esforço de que todos fogem, fá-lo tu. Seja tu aquele que afasta as pedras do caminho”.
Gabriela Mistral, Prêmio Nobel Literatura
Numa cidade com 17 mil km de vias asfaltadas e pouquíssimo verde – apenas 2,6m2de área verde por pessoa onde o padrão mínimo internacional é 12,6 m2por pessoa –, para o paulistano que vive literalmente com o pé no asfalto, a vida é cinza (1). Por isso, toda gente que vive na cidade de São Paulo sonha em plantar uma árvore pelo menos uma vez na vida. E quem nunca pensou? Se não pensou deveria pensar, porque é preciso aproveitar todos os espaços que temos para produzir o que não temos: áreas verdes, nem que seja no asfalto. No asfalto?
Antes de explicar porque teríamos que plantar árvores no asfalto é preciso explicar como eu convenci o ex-prefeito Haddad. Durante uma reunião de discussão sobre projetos de espaços públicos que aconteceu no primeiro ano de sua gestão numa sala da prefeitura, logo depois das jornadas de junho de 2013, com a presença de várias organizações sociais e ambientais, eu consegui no final da reunião entregar um cartão de visitas ao prefeito e sugeri uma reunião para tratar de um outro assunto. Foi tudo meio no automático, com expectativa zero de que ela fosse realmente acontecer algum dia.
Para minha surpresa, dias depois recebo uma ligação; do outro lado da linha, uma voz vai direto ao assunto, querendo saber quando eu gostaria de fazer a reunião solicitada. Meio perdido, pergunto que reunião era essa e com quem eu estava falando. A resposta foi “Fernando”. “Fernando? Fernando da onde?”, pergunto. “Fernando Haddad” responde a voz e emenda: “você não pediu uma reunião? Estou te ligando pra saber pra quando marcamos”. Essa era a forma direta com que o Prefeito Haddad atendia as pessoas, sempre curioso, paciente e interessado em escutar. Foi desta forma que eu marquei uma audiência, ou melhor, como o prefeito da sexta maior cidade do mundo marcou uma reunião comigo para escutar o que eu tinha pra falar sobre espaços públicos.
Sabia que neste tipo de encontro eu precisava ser bem direto, chegar logo ao ponto, ser claro, conciso, afinal o prefeito tem outras coisas para fazer além de falar comigo. Mas eu também sabia que ele gostava de escutar soluções urbanísticas inteligentes de baixo custo ou sem custo algum, inovações que incentivava a participação da sociedade civil e estimulava, sobretudo, a criação de novas formas de gestão comunitária criativa, que pudessem promover ou aumentar a participação social. Estava claro que naquela sala tínhamos um mesmo objetivo: despertar o sentido de pertencimento na população da cidade de São Paulo, incentivar a ocupação dos espaços públicos e desenvolver a noção do direito que todos nós temos sobre a cidade.
Levei uma apresentação inspirada no trabalho de autogestão comunitária baseado no conceito de governança de “bem comum”, de Elinor Ostrom, prêmio Nobel de Economia de 2009. A economista argumentara, em seu trabalho “O governo dos bens comuns” (2009), de maneira convincente, que se poderia criar instituições estáveis de autogestão comunitária.
Para ilustrar minha apresentação eu mostrei exemplos da cidade de Freiburg, situada no sudoeste da Alemanha, que eu havia visitado em 2011, durante uma missão técnica sobre mobilidade e desenvolvimento urbano. Lá tive o prazer de conhecer como os gestores alemães estavam incentivando a construção de bairros inteiros sem circulação de carros, apenas com transporte público, caminhadas e bicicleta. As ruas estavam virando parques lineares, estacionamentos viraram praças e arvores eram plantadas onde antes havia uma camada de asfalto... No bairro inteiro as ruas viravam jardins e a vida estava em toda parte. Seria possível repetir esta experiência na cidade de São Paulo.
O prefeito escutou atentamente a minha apresentação por 30 minutos; no final ele fez duas ou três perguntas, agradeceu com um aperto de mão e foi para seu gabinete.
Árvores no asfalto
Três meses se passaram e recebo outra ligação inesperada; da mesma forma, do outro lado da linha a pessoa se apresentou como “Fernando”, como ele gostava de se apresentar... Nunca respondia como “Prefeito Haddad”...
Ele me contou estar implantando a ideia que eu havia dado meses antes. Pensei comigo mesmo: qual ideia eu havia dado ao prefeito? Ele continuou: “as árvores no asfalto”. Meio atordoado, retruco: “como assim, prefeito, que ideia é essa de arvores no asfalto?” Ele estaria retirando de algum bairro a circulação de carros? “Estou plantando árvores no asfalto, não era essa a ideia daquela sua apresentação?” E continuou: “em uma avenida com volume enorme de acidentes na Cidade Patrocínio, zona leste, plantamos árvores no meio da pista em uma extensão de 1km. Eu gostaria que você desse uma olhada, conversasse com as pessoas, verificasse se tudo está ok... Foi assim que eu e a Giulia Piero nos tornamos informalmente os embaixadores do projeto “arvore no asfalto”, e desde então, há quatro anos, temos acompanhado semana a semana, mês a mês, até hoje, o crescimento das árvores.
Mas não foi tão fácil; o projeto recebeu milhões de críticas. E como estávamos fazendo o acompanhamento do plantio de forma independente da prefeitura, as críticas vieram todas para nós... As principais eram que os carros iriam bater nas árvores e provocar acidentes, moradores reclamavam que ficaria mais difícil para retirar os carros das garagens... Mas a avenida era larga e tinha duas faixas de rolamentos em cada uma das vias que era de mão dupla... As árvores – pequenas mudas na ocasião – foram plantadas no centro da avenida e tomaram pouco espaço; ao redor foram pintadas marcas de canalização de cor amarela no chão para orientar o novo fluxo de automóveis.
Sem nenhuma faixa de pedestres, sem nenhum semáforo, aquela avenida larga era terra de ninguém; idosos e crianças eram atropeladas, rachas de carros e motos eram constantes, assim como os acidentes.
A escolha do local
Segundo Priscila de Medeiros Sordi, no artigo “Cidade Patriarca” (2), o bairro era uma antiga fazenda que pertencia a um certo Banco, que tinha a ideia de lotear e construir um bairro nobre como os Jardins. Por esse motivo suas ruas são largas, seus terrenos são grandes, mas como era distante, o negócio não vingou e o banco resolveu oferecer os lotes para imigrantes, na sua maioria italianos, portugueses e espanhóis. Assim se formou a Cidade Patriarca, nome em homenagem a José Bonifácio, bairro com muitas praças, mas com ruas de poucas árvores, nenhuma sinalização e com alta taxa de impermeabilidade; um bairro cinza, com pouco verde nas ruas.
O bairro de Cidade Patriarca e a rua Patrocínio Paulista seriam a primeira (e ainda única) experiência de arborização de baixo custo realizado pela prefeitura de São Paulo. Nós – eu e Giulia – acompanhamos o projeto desde o início, conversamos com moradores, explicamos o que era a experiência, como as árvores de pequeno e médio porte, na sua maioria constituída de ipês amarelos, foram plantadas para dar sombra e melhorar a paisagem do bairro, que suas raízes profundas não iriam danificar o asfalto, que quando elas estivessem adultas os moradores iriam experimentar uma redução do calor, que o conjunto de árvores iria trazer mais segurança para a travessia, que a CET implantou faixas de pedestres e tachões ao longo das marcas de canalização... A ideia era não ter canteiro central, fazer arborização de baixo custo em toda a cidade, uma experiência que poderia se desdobrar no futuro na retirada dos automóveis do bairro todo, na retirada do asfalto, na transformação de ruas em parques lineares...
Por incrível que pareça, a resistência ao projeto não foi dos moradores, mas de pessoas de outros bairros, que duvidavam que as árvores fossem resistir. O projeto está completando quatro anos e todas as árvores resistiram, o bairro ganhou outra cara, os carros baixaram a velocidade pois as árvores também funcionam como Traffic Calming (moderador de tráfego), diminuindo o número de acidentes. De fato, não houve mais nenhum acidente na via.
notas
1
RODRIGUES, Artur; DEODORO, Juliana. SP tem só 2,6 m² de verde por pessoa. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 14 maio 2012 <http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,sp-tem-so-2-6-m-de-verde-por-pessoa,872978>.
2
SORDI, Priscila de Medeiros. Cidade Patriarca. Blog São Paulo Minha Cidade, São Paulo, 10 fev. 2011 <www.saopaulominhacidade.com.br/historia/ver/4749/Cidade%2BPatriarca>.
sobre o autor
Lincoln Paiva é especialista em planejamento e gestão de cidades pela Poli USP, mestre Arquitetura e Urbanismo FAU Mackenzie, foi conselheiro de políticas urbanas da cidade de São Paulo e é Board Advisor WRI Ross Prize for Cities, co-autor do livro Cidade de pedestres.