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O incêndio ocorrido no domingo na Favela do Cimento, capital paulista, explicita o descaso não só do poder público frente à população sem teto, mas também da sociedade como um todo.
SAMPAIO, Celso Aparecido. A favela do cimento. O incêndio como fruto do descaso do poder público e da sociedade. Minha Cidade, São Paulo, ano 19, n. 224.06, Vitruvius, mar. 2019 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/19.224/7304>.
Um sábado quente e uma noite fria, bom para comer uma pizza. Trafego entre a Bela Vista, onde moro, até a casa onde mora minha mãe. O eixo radial Leste-Oeste nos separa por não mais que vinte minutos. Ontem (23 mar. 2019), por volta das vinte horas, já passados quarenta minutos no percurso, ainda não percorri um terço do caminho. O dial não ajudava nada, rodei por várias sintonias, do futebol ao culto e nada, mas algo de novo anunciava um evento ainda desconhecido, mas previsível em sua tragédia: chegam muitos carros de polícia e com isso o trânsito começava a andar; eu só pensava nos curiosos que poderiam atrapalhar o trânsito cuidando de olhar para algum acidente à frente.
Na noite escura nada se via entre o viaduto Alpargatas e o viaduto Bresser, quatro quadras com trânsito lento e nenhum sinal do problema à vista. Feito um portal, o viaduto Bresser abre a cena da tragédia, com a fumaça subindo ao céu. A pista na direção contrária, em sentido ao centro, interditada, tornou-se estacionamento de ambulância, carros do corpo de bombeiros e da polícia militar de São Paulo; por trás, uma cortina de fumaça e alguns sinais de focos de fogo. Procurando compreender o que estava acontecendo, imediatamente me lembrei que havia uma reintegração de posse para a Favela do Cimento localizada no Belenzinho, zona leste da cidade de São Paulo, às margens da Radial Leste, na Rua Pires do Rio, programada para a manhã do domingo (24 mar. 2019).
Ocupando as calçadas e parte do leito da Rua Pires do Rio há uma década, um contingente de quinhentas pessoas – entre elas cento e cinquenta crianças e vinte e cinco idosos, seis deficientes e seis grávidas. A decisão judicial da 13ª Vara da Fazenda Pública (1) determinou a reintegração de posse forçada no domingo, apontando risco à vida para os moradores por ocupação em madeira na Radial Leste. A decisão judicial impõe aos moradores da Favela do Cimento até o sábado para se apresentarem ao Centro Temporário de Acolhida – CTA, do Canindé, na região central, com vagas garantidas, pois, no domingo a reintegração de posse será forçada.
No final da tarde do mesmo dia, o fogo tomou conta da favela acabando com todos os barracos entre a alça de acesso ao viaduto Bresser, até então estava amalgamado, fundido, aos barracos, agora solto em meio a restos de fogo e carvão que se estendiam até as paredes da fábrica de cimento. Neste dia, a favela que se instalou nos dois lados do prolongamento da Rua Pires do Rio foi incinerada e a rua limpa pela força do fogo. Prometeu, no mito grego, entrega o fogo ao homem como forma de simbolizar a consciência e a razão, mas nós perdemos de vista a noção desta alegoria, agora o fogo apenas apaga nossas mazelas.
Em 23 de fevereiro de 2019, a Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo – Cohab SP, entregou 34 unidades habitacionais que devem beneficiar setenta e uma pessoas oriundas da população em situação de rua da cidade (2). O empreendimento Asdrúbal do Nascimento, inserido no Programa de Locação Social Municipal, iniciativa atípica, teve iniciada suas obras em julho de 2012, que só foram concluídas sete anos depois. O Casarão do Carmo, conjunto de moradias também localizado na área central da cidade, foi construído para atender famílias oriundas de um cortiço, que ocupou o mesmo endereço e foi desalojado em 1990, trinta anos atrás. Com treze anos de obras, foram entregues em janeiro de 2018 (3), 21 novas unidades habitacionais. São números que expressam uma velocidade que perde de longe da demanda.
Enquanto o Estado age em ritmo lento, o déficit habitacional cresce e o número de pessoas em situação de rua só aumenta. Em 2015, segundo indica a pesquisa da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas – FIPE, a população em situação de rua na cidade de São Paulo era da ordem de 15.905 pessoas. Atualmente, o Planeja Sampa (4), estima entre 20 mil a 25 mil pessoas nas condições de rua, dados de julho de 2018. O problema da população em situação de rua será resolvido com políticas públicas bem construídas, como o Serviço de Moradia Social, previsto no Plano Diretor Estratégico – PDE de 2014 e detalhado no Plano Municipal de Habitação – PMH de 2016, que tramita na Câmara Municipal de São Paulo desde dezembro de 2016, que visam contribuir apresentando alternativas à casa própria, com atendimento habitacional digno e com boas condições de habitabilidade e segurança.
Em notas no processo de reintegração de posse, a prefeitura garante que antes ofereceu alternativas aos moradores da favela do Cimento, como, a saída voluntária antes da força policial programada e que nem todos os moradores aceitaram tais condições propostas.
Foram dez anos para se promover uma negociação pacificada, um entendimento com os moradores e os vizinhos, e a incorporação dessa demanda a projetos locais; fomos ineficientes em resolver a situação com políticas públicas e enquanto sociedade não entendemos o que significa fortalecer as relações sociais e ações colaborativas; uma pessoa ou família só toma a iniciativa de partir para a rua em situações limites, onde imperam o desespero e a desesperança. A combinação cruel entre um estatal omisso e uma sociedade displicente com a pobreza tem ceifado os sentimentos de solidariedade, se desdobrando algumas vezes, de forma inesperada e desmedida, em sentimento de desprezo – alguns motoristas buzinaram e gritaram impropérios ao passarem pelo incêndio –, sentimento que corrói as possibilidades de uma vida coletiva solidária. Na contracorrente, grupos de resistência e redes de solidariedade têm se formado e vem aparando a luta de vários grupos sociais.
Um galpão próximo ao local na Rua do Hipódromo foi ocupado por alguns dos moradores expulsos pelo fogo da Rua Pires do Rio, que se organizam para receber as doações; uma rede de solidariedade se estrutura para apoiar, ajudar e proteger os necessitados neste momento difícil. Enquanto isso, as suspeitas de limpeza social são reforçadas pelo clima de hostilidade observado pelos vídeos e comentários em redes sociais que relatam o ocorrido. Nossa sociedade precisa de um sentido coletivo: é o que nos revela essa tragédia.
O domingo acaba triste, com o gosto amargo da fumaça que consumiu uma experiência vivida em dez anos por quinhentas pessoas na radial Leste-Oeste. Na manhã da segunda feira a rotina faz a cidade voltar ao normal, a pista duplicada leva um milhão de pessoas pelo eixo da Radial e, no trecho fábrica de Cimento, o muro cinza dos blocos de concreto voltam a aparecer sem a presença da vida que havia ali desapareceu.
notas
1
DIAS, Paulo Eduardo. ‘Não sou tratado como cidadão’, afirma morador da Favela do Cimento (SP). São Paulo, Ponte – direitos humanos, justiça, segurança pública, 23 mar. 2019 <https://ponte.org/nao-sou-tratado-como-cidadao-afirma-morador-da-favela-do-cimento-na-zona-leste-de-sp>.
2
SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS, Prefeitura de São Paulo entrega primeiro empreendimento de habitação para população em situação de rua. Prefeitura de São Paulo, 25 fev. 2019 <https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/direitos_humanos/poprua/noticias/?p=271945>.
3
LOPES, Nathalia. Conjunto habitacional. Casarão do Carmo é entregue em São Paulo. São Paulo, AECweb, 17 jan. 2018 <https://www.aecweb.com.br/cont/n/conjunto-habitacional-casarao-do-carmo-e-entregue-em-sao-paulo_16814>.
4
PLANEJA SAMPA. Assegurar acolhimento para, no mínimo, 90% da população em situação de rua. Programa de Metas 2017-2020, meta 9. São Paulo, Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social/Prefeitura de São Paulo, jun. 2018 <http://planejasampa.prefeitura.sp.gov.br/meta/1>.
sobre o autor
Celso Aparecido Sampaio é arquiteto (FAU Mackenzie, 1988), mestre (IAU USP São Carlos, 2000) e doutorando pela FAU Mackenzie. Foi Diretor do Instituto dos Arquitetos do Brasil Seção São Paulo (2010-2011), diretor técnico da Cohab-SP (2015-2016), diretor de habitação na Prefeitura Municipal de Santos André (2005-2006), gerente de projetos na Cohab-SP (2001-2004), membro titular do Conselho Municipal de Habitação – CMH no município de São Paulo (2013-2015; 2016-2018). Atualmente é membro titular do Conselho Municipal de Política Urbana CMPU, do município de São Paulo (2017-2019) e professor de Projeto na FAU Mackenzie.