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my city ISSN 1982-9922

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O canal artificial do Valo Grande, em Iguape, litoral sul de São Paulo, foi construído no século 19, durante o Império, e com o tempo se tornou em desastre ambiental sem precedentes, implicando no fechamento do porto da cidade e sua decadência econômica.

how to quote

SANTOS, Álvaro Rodrigues dos. Valo Grande, uma ferida aberta de enorme carga didática. Desastre ambiental do século 19. Minha Cidade, São Paulo, ano 19, n. 228.05, Vitruvius, jul. 2019 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/19.228/7427>.


Igreja e área portuária, Iguape SP, anos 1930
Foto divulgação [Blog Fotos de Iguape / Domínio comum]


Tal como uma ferida aberta e latejante, ainda hoje lá está o canal artificial do Valo Grande, em Iguape, litoral sul de São Paulo, com que a ambição, o descuido e a prepotência humana, para encurtar caminhos, pretenderam um dia ligar o Rio Ribeira ao Mar Pequeno, mas que na verdade constituiu o gatilho de um dos mais trágicos e eloquentes desastres ambientais e econômicos já ocorridos no Brasil. Ao menos exploremos o didatismo desse triste evento.

Nas primeiras décadas do século 19, Iguape, município do litoral sul de São Paulo, rivalizava com o Rio de Janeiro em importância portuária e em vida social e cultural, com suas famílias mais ricas brindadas com constantes espetáculos europeus de arte e até com a presença de um Consulado Francês. Toda essa riqueza e ostentação deviam-se à especialização de seu porto na exportação de vários produtos agrícolas da província paulista, destacadamente do famoso “arroz de Iguape”, o que ensejou a instalação no município de perto de uma centena de engenhos de beneficiamento desse produto agrícola.

Vapor Itaipava atracado no cais de Porto Grande, Iguape SP, 1939
Foto divulgação [Blog Fotos de Iguape / Domínio comum]

O arroz e demais produtos agrícolas chegavam ao porto marítimo de Iguape (contíguo à área urbana que faz frente para o Mar Pequeno, esse separando o continente da Ilha Comprida) carregados em canoas que desciam o Rio Ribeira. A partir do porto fluvial de Iguape, duas alternativas eram então utilizadas. Ou os produtos eram descarregados no próprio porto fluvial de Iguape, de onde vinham em carroças e carroções por terra até o porto marítimo, em um percurso de perto de 3 km, ou as canoas seguiam adiante pelo Rio Ribeira entrando no oceano através de sua foz e volteando para o interior do Mar Pequeno até o porto marítimo, em um percurso de algumas dezenas de quilômetros.

Estava assim logisticamente colocada a pragmática ideia de se escavar um canal de algo em torno de 2 km ligando diretamente o porto fluvial ao porto marítimo. Essa reivindicação, com a força da elite política e econômica de Iguape, foi levada a D. Pedro I e em 1827 eram iniciadas as obras do “Valo”, que por projeto teria pouco mais de 4 metros de largura e 2 km de extensão.

Em 1855, com pompa e circunstância o “Valo” era inaugurado, com o que Iguape se tornava geograficamente uma ilha.

Canal do Valo Grande, Iguape SP
Luciano Faustino [Wikimedia Commons]

Em menos de 50 anos o pequeno “Valo”, pensado para dar passagem a uma canoa por vez, atingia 200 metros de largura, e mais à frente um pouco, 300 metros, sugando 2/3 do volume hídrico do Rio Ribeira. Era agora já o “Valo Grande”. A força erosiva das águas solapava e carreava os barrancos, invadia e destruía áreas agrícolas e urbanizadas. Os sedimentos carreados para o Mar Pequeno assorearam por completo o porto marítimo inutilizando-o para operações portuárias já ao final do século 19. As mudanças na dinâmica fluviomarinha da região introduziram radicais variações ambientais na temperatura, salinidade, correntes e turbidez das águas. Formam-se várias novas ilhas de sedimentos no Mar Pequeno. Escasseiam radicalmente a maior parte das espécies de peixes e mariscos que sustentavam uma segunda forte atividade econômica no município e em toda a região. Por sua vez, a foz original do Rio Ribeira, agora dando vazão a apenas 1/3 das águas originais, é também vítima do assoreamento e de outras tantas modificações decorrentes da alteração de sua dinâmica fluviomarinha. Enfim, uma radical transformação geológica de toda a região. Como se poderia esperar, já sem seu porto Iguape entra em franca decadência econômica, social e cultural. Sua população escasseia e empobrece. Acabava-se melancólica e tragicamente a época áurea.

Em 1978, em atendimento aos reclamos locais, o governo do estado providencia a construção de uma barragem (terra e pedras) para o fechamento do Valo Grande. Com a construção dessa barragem não se deu, no entanto, o milagroso retorno às condições de equilíbrio anteriores à abertura do “Valo”. Muitas décadas correndo com apenas uma pequena parte de sua vazão natural o Rio Ribeira, a jusante da embocadura do “Valo”, assoreou-se e deixou de inundar sazonalmente vastas áreas baixas limítrofes. Essas áreas foram então ocupadas para a cultura da banana, a alternativa econômica que sucedeu a operação portuária/agrícola anterior. A partir dos anos 1980 uma sequência de grandes inundações causou prejuízos enormes aos bananais (e também ao cultivo do chá) e a outras atividades agrícolas e sítios urbanos da região.

Igreja e área portuária, Iguape SP, anos 1930
Foto divulgação [Blog Fotos de Iguape / Domínio comum]

A retirada da barragem, apontada então como a responsável pelas grandes enchentes, era agora a reivindicação que se colocava a uma população cruelmente vitimada em suas atividades, economias e patrimônios. As próprias sucessivas enchentes, com o auxílio de ferramentas manuais utilizadas por moradores locais, incumbiram-se do rompimento total da barragem.

Técnicos debruçaram-se sobre o problema e propuseram como melhor, e bem pensada, solução para o complexo problema a construção de uma nova barragem, mas agora com vertedouro e comportas de controle de vazão e com eclusa para possibilitar a navegação. A proteção das margens e do fundo do canal contra a erosão constituía parte integrante desse mesmo projeto. Em 1993 as obras civis da nova barragem foram concluídas, porém as instalações hidráulicas (vertedouro, comportas e eclusa) não foram executadas por alegada escassez de recursos financeiros para tanto (quantos votos tem Iguape?). Boa parte dessas obras civis já foi hoje também comprometida.

O Valo Grande continua como uma ferida aberta, de uma pungente carga didática a técnicos e governantes (que incrivelmente continuam a ser tão maus ouvintes): não se intervém na natureza sem antes compreender todas as leis, processos e fenômenos naturais geológicos e biológicos que vão sofrer alguma interferência. Essa compreensão é essencial para a correta adequação de projeto e plano de obra, de tal forma que não se tenha que inexoravelmente arcar com as consequências de violentas respostas da natureza. Esta, frente a uma agressão estúpida, buscará sempre, por seus próprios meios, uma nova harmonização de suas forças e agentes naturais. E pobres daqueles que se colocarem à frente dessas forças.

Vista geral de Iguape SP
Foto Carla Bueno / divulgação [blog Essencial Consultoria e Turismo]

Vale a propósito lembrar duas sábias afirmações que já lá num tempo bem distante traziam para a humanidade o âmago dessa mesma mensagem didática. Francis Bacon, em 1620, e Leonardo Da Vinci, em torno de 1500, respectivamente nos alertavam: “A Natureza para ser comandada precisa ser obedecida”; “Se tiveres que tratar com água, consulta primeiro a experiência e depois a razão”.

sobre o autor

Álvaro Rodrigues dos Santos, geólogo, ex-Diretor de Planejamento e Gestão do IPT e Ex-Diretor da Divisão de Geologia, autor dos livros Geologia de engenharia: conceitos, método e prática, A grande barreira da Serra do Mar, Cubatão, Diálogos geológicos, Cidades e geologia, Enchentes e deslizamentos: causas e soluções, dentre outros. Atualmente é consultor em Geologia de Engenharia, Geotecnia e Meio Ambiente.

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