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português
Relato de experiência do trajeto percorrido até a Divisão de Estrangeiros do Departamento de Polícia de Roma em busca de oficialização da permanência no território Italiano. Encontros e agenciamentos com o conceito de hospitalidade de Jacques Derrida.
ROCHA, Eduardo. Roma temível. Por uma sinfonia dissonante da cidade e da hospitalidade. Minha Cidade, São Paulo, ano 19, n. 228.03, Vitruvius, jul. 2019 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/19.228/7436>.
Prelúdio (o que vem antes)
Este ensaio foi organizado como uma sinfonia. Uma sinfonia dissonante sobre o caminhar na cidade. O caminhar por lugares não esperados, quase desesperados, lugares muitas vezes temidos e não hospitaleiros – hostis.
Durante minha estada pós-doutoral em Roma (1), fiz diversas caminhadas na companhia dos grupos Stalker (2) e de Arti Civiche, ambos de Francesco Careri (3), mas nenhuma se constituiu como experiência de maneira tão forte quanto a caminhada em direção à Divisão de Estrangeiros do Departamento de Polícia de Roma, localizada na zona leste da capital italiana.
Depois de entrar com uma documentação nos correios de Roma, o imigrante passa por uma entrevista, através da qual terá seu pedido de residência numa cidade italiana aprovado ou reprovado. Essa entrevista acontece na capital, na Divisão de Estrangeiros, um lugar longínquo, de difícil acesso. Para chegar lá, é necessário sair do centro de Roma, deslocar-se de ônibus, trem, metrô e a pé por um trajeto de aproximadamente 12km ‒ cerca de uma hora e meia de viagem.
A ideia deste ensaio é relatar essa experiência de transporte, comum aos milhares de migrantes e refugiados que chegam a Roma. “Todos os caminhos levam a Roma” (4) ou como são os caminhos que levam à Roma da contemporaneidade?
Interlúdio (o entre)
Um lugar sinistro. Hoje encontrei outra Roma: a dos imigrantes e refugiados. Depois de pegar ônibus, metrô, trem e caminhar. Caminhar por ruas sem calçadas, vazias e abandonadas. Encontrei a caravana que vai me levar a um edifício moderno. Uma fila enorme me espera. Todos caminham em fila indiana. Brancos de um lado. Pretos do outro. Aqueles, imigrantes; estes, refugiados. Línguas e vestimentas diversas. Travessia. Silêncios. Poucas vozes. Nenhuma conversa. Espera. Uma mulher chora porque não pode entrar com o marido na entrevista. Os policiais são “amáveis”. Bebês migram em carrinhos, crianças brincam. Outros lagarteiam ao sol… Eu escrevo e fotografo, não sei por quê. Uma chinesa de grife Chanel, uma árabe de burca, um africano com suas roupas coloridas. E eu com uma meia dos Beatles. Todos com celulares. Máquinas de café, de água, fototessera (5). Ninguém percebe que escrevo e fotografo. Meu horário é às 11h30. Agora chamam os de 10h. Muitos fumam durante a espera. Os policiais italianos fumam. Não acreditava no não-lugar. Algumas pessoas, todas negras, são revistadas na porta. Branco, sou poupado. Faz frio nesse descampado. O termômetro marca 11 graus, parece o pampa. Estamos, de novo, perdidos no Uruguai (6). Estou na corda. No Aeroporto de Roma. Sou chamado. Nova fila. Detector de metais. Policial pede para ver meu chaveiro, que está dentro da mochila. O chaveiro é um abridor de garrafas no qual está escrito “Roma”. Mais um brete, três lances de escada para subir. No escuro. Mais um check-in. Sala de espera com tela digital, com sobrenomes. Não sei por que as primeiras fotos que publiquei se apagaram do Facebook, não aparecem mais para mim, talvez seja um lapso de memória ou de vigilância. Fico só à espera do meu sobrenome. Penso em fotografá-lo na tela. O policial diz: “Não pode fotografar aqui!” Todas as pessoas sentadas, com o seu celular em punho, olham-me. Todos guardam os aparelhos. Sou chamado no box 2, vou até lá, o policial me manda voltar e aguardar. Em seguida outro vem gritando “Rocha, box 11”. Vou atrás. Todos os policiais conversam sobre futebol, todos os imigrantes estão em silêncio. Línguas que não se falam, olhares que divergem e pensamentos que se tocam. Fazem-me lembrar das conversas entre médicos e enfermeiros, durante uma cirurgia. Sou atendido de forma seca e rápida, impressão digital, foto. O policial pergunta meu telefone e o bairro onde moro? Respondo: Trastevere. Ele faz cara de espanto. Do tipo “oooooh”. Carimbos. Ele fala várias coisas que não entendo. Vou embora, meio sem entender tudo que acaba de acontecer. Chego à estação de trem vazia, quase abandonada. Espero o trem que me leva de volta a Roma. Mi guardo indietro e dico addio (7).
Poslúdio (encerrando a peça musical)
Depois de alguns meses, encontro-me novamente em frente à Divisão de Estrangeiros do Departamento de Polícia de Roma. Dessa vez, com um grupo de caminhantes do curso Master Studi del Territorio (8). Formado por estudantes, mestrandos, professores, pesquisadores, imigrantes e curiosos, o grupo vinha caminhando da Porta Maggiore em direção à zona leste, ao encontro do selvático de Roma.
O selvático é aquele que habita a selva ou vive longe da civilização, contemporaneamente pode designar aquele território abandonado que atravessa a cidade e o urbanismo. Para o grupo Stalker (9), a negentropia e o selvático são dois termos – um vindo da linguagem científica e o outro do humanismo – que buscam reconstruir a noção de “paisagem” a partir de espaços gerados pela criativa da natureza e da comunidade, em reações não-lineares e espontâneas que podem fazer surgir ecossistemas evoluídos.
Talvez o mais selvático seja esse encontro, esse pequeno caminho entre a estação Tor Sapienza e o edifício moderno da Polícia de Roma. Sentimos o frenesi do reencontro e muitos sentimentos embaralhados. Somos convidados a ler, em frente ao edifício moderno, o relato da experiência passada no mesmo lugar – as caminhadas se encontram, presente-passado-futuro. Um misto de protesto e performance.
Ouvido por todos, silenciado por outros, emociono-me juntamente com aqueles que comungam da mesma experiência. Experiência coletiva e subjetiva, sentida somente por imigrantes e refugiados, mas hospitalizada (10) pelos nativos, italianos e romanos.
Esse relato de experiência do caminhar por um pequeno trajeto na periferia de Roma, experimentando a expectativa da chegada ao longo de extensos percursos de ônibus e metrô, nos faz vislumbrar um túnel de emoções, uma espécie de passagem estreita entre hospitalidade-hostilidade-hospitalidade, a grande cidade Roma – a passagem pela divisão de estrangeiros – e a saída novamente para a cidade.
Uma espécie de experiência de hostipitalidade derriana (11), a hospitalidade hostil, própria do estrangeiro, que se sente um estranho perante a língua do outro (não consegue se comunicar no idioma local), a cultura do outro (as cores, os costumes, o cotidiano etc.) e os caminhos da cidade (confunde-se nos trajetos para chegar ao destino, “não sabe como voltar para casa”). No lugar da lei da hospitalidade, do lugar – edifício moderno – define-se um direito, mas por outro lado dá-se por regras e leis, percursos definidos e sem incondicionalidade. Um simulacro de hospitalidade.
Essa cidade – Roma – da coexistência de territórios sobrepostos, arranhados uns sobre os outros é descoberta, mapeada e caminhada, por meio de narrativa e imagens. Cartografia urbana do estrangeiro e do nativo, duas cidades que se tocam e se repelem ao mesmo tempo e no mesmo espaço.
notas
1
Estágio Pós-doutoral, realizado no 1º semestre de 2019, com bolsa PDE CNPQ, intitulado “Entre Encontros e Espaços: travessias interculturais em processos projetuais”, realizado na Università degli Studi Roma Tre e sob a supervisão do Prof.º Dr. Francesco Careri.
2
Stalker é um grupo ativista urbano da cidade de Roma, organizado em 1995, que se dedica a pesquisas e ações na paisagem das margens e espaços urbanos abandonados. Ver mais em Stalker <http://articiviche.blogspot.com/>.
3
Francesco Careri é arquiteto e professor na Università degli Studi Roma Tre, autor de Walkscapes: o caminhar como prática estética, editado no Brasil pela Gustavo Gili em 2002. Este livro, considerado um clássico do urbanismo contemporâneo, entende o ato de caminhar como um ato criativo e cognitivo capaz de transformar os espaços.
4
A expressão “Todos os caminhos levam a Roma” remonta ao século 1, quando Roma era considerada o centro do mundo ocidental. Naquela época, o Império Romano tinha 80 mil quilômetros de estradas (cursus publicus) que iam da Bretanha à Pérsia e se encontravam em Roma.
5
Fototessera é uma forma particular de fotografia utilizada principalmente para fins institucionais, geralmente em documentos de identidade, com o tamanho de 40x35mm e habitualmente feitas em pequenas cabines espalhadas pela cidade.
6
Em agosto de 2018, um grupo de pesquisadores do Laboratório de Urbanismo, da Universidade Federal de Pelotas – UFPel, se perdeu em uma viagem pelo Pampa uruguaio, numa noite fria e escura, errando o trajeto da viagem e adentrando planícies e coxilhas, nos perdemos carregados de melancolia e mistério. Travessias na fronteira Brasil-Uruguai <https://wp.ufpel.edu.br/travessias/>.
7
“Eu olho para trás e digo adeus”. Tradução do autor.
8
Na edição de 2019 do Master Studi del Territorio, está sendo desenvolvido o tema “topos”, o lugar e suas declinações, entre política, estética, arquitetura, técnicas de investigação e reconhecimento. Master Studi del Terrirorio. Envirommental Humanities 2019 <http://www.master-territorio-environment.it/>.
9
N, come negentropia. Esplorare, comprendere e aver cura del selvatico a Roma est. Eureka! Roma 2019 <http://www.eurekaroma.it/item/n-come-negentropia-esplorare-comprendere-e-aver-cura-del-selvatico-a-roma-est-ass-stalker/>.
10
A hospitalidade, vista por Derrida enquanto condição fundamental à ética contemporânea aponta a alteração de valor da moral, e não a sua ausência, passando da ideia de bem para a de bem estar. Diversos estilos de vida são tolerados, regras e normas são aceitas desde que se voltem para um melhor de si, sendo importantes ou necessárias para a experiência. Será esse o desafio da experiência ética da cidade que se aproxima da hospitalidade derridiana? Serão os nativos permanentes estrangeiros que nunca falam a sua própria língua ou nunca rasgam sua própria pele? DERRIDA, Jacques; DUFOURMANTELLE, Anne. Da hospitalidade. São Paulo, Escuta, 2003.
11
Idem, ibidem.
sobre o autor
Eduardo Rocha é arquiteto e urbanista (UCPel), especialista em Patrimônio Cultural e mestre em Educação (UFPel), doutor em Arquitetura pela UFRGS, pós-doutor pela Università degli Studi Roma Tre e professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFPel.