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my city ISSN 1982-9922

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José Roberto Fernandes Castilho escreve sobre as diversas fases da cidade de Paris, tomando como ponto de partida os registros literários que cristalizaram no tempo a possibilidade de conhecimento do passado.

how to quote

CASTILHO, José Roberto Fernandes. Paris no século 17. Uma cidade em desordem. Minha Cidade, São Paulo, ano 19, n. 228.04, Vitruvius, jul. 2019 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/19.228/7435>.


Paul Scarron, gravura do século 17
Imagem divulgação / domínio comum


Nicolas Poussin, “O arrebatamento de São Paulo”, encomenda de Paul Scarron
Imagem divulgação / domínio comum [Museu do Louvre]

Paris em 1615, Plan de Mérain
Imagem divulgação / domínio comum [Matheus Merian Basiliensis fecit]

 

É sabido que conhecer uma cidade hoje não é conhecer aquilo que mesma cidade foi em outros tempos históricos. A Paris do século 21 não é a Paris do século 19; a Paris de Proust não é a Paris de Balzac etc. Como dirá Baudelaire, impactado pela remodelação da cidade, “le vieux Paris n'est plus (la forme d'une ville change plus vite, hélas! que le coeur d'un mortel)” (Le Cygne). A cidade antiga pode, entretanto, ser conhecida – e revisitada – pela literatura, que a cristaliza no tempo.

Numa obra que reproduz suas conversas com Umberto Eco, Jean-Claude Carrière diz que, quando dava aula, pedia aos estudantes que reproduzissem ambientes sonoros do passado. “A partir de uma sátira de Boileau (‘Les Embarras de Paris’), eu propunha aos estudantes que estabelecessem sua trilha sonora. Esclarecendo que os calçamentos eram de madeira, as rodas das carroças de ferro, as casas mais baixas” (1).

Em suma, o que ele propunha é mergulhar no passado através dos sons – ou, mais especificamente, dos barulhos próprios da cidade. Lembre-se que este problema típico das aglomerações humanas não apresenta novidade alguma: data de 1660 a célebre Sátira VI de Nicolas Boileau-Despréaux (1636-1711) denominada “Les embarras de Paris”, esplêndido documento literário na qual o poeta lista uma série de barulhos que ouvia e que perturbavam o seu descanso. Em tradução livre, os primeiros versos dizem tudo: “Quem fustiga o ar, santo Deus, com estes lúgubres ais? É para velar que alguém se deita em Paris?”. Então ele vai reclamar das goteiras, dos gatos, da infestação de ratos etc.

Os sons mostram uma cidade que foi viva, mas que desapareceu: só permanece no livro. Um pouco antes daquela sátira, em 1654, Paul Scarron (1610-1660), num soneto muito conhecido e muito estudado, procura reproduzir a desordem que via em Paris, onde morava, e que tinha na época cerca de 400 mil habitantes. O que via e ouvia, porque, num poema que é uma longa enumeração de elementos urbanos, ele faz referência às carroças, aos cavalos e ao grande alarido (“grand bruit”). E, no final, numa interpelação sarcástica ao leitor, pergunta se não está certo naquilo que dissera e que observara. Libertino na juventude, corcunda, deformado fisicamente talvez pelo reumatismo, Scarron – antecessor, no mesmo século, de Molière – foi um autor cômico, escritor de diversos textos satíricos e burlescos.

Uma particularidade a respeito de sua biografia deve ser destacada. No ano de 1645, conheceu em Roma o pintor Nicolas Poussin, um “pintor-filósofo”, encomendando dele um quadro que será concluído em 1650 e enviado a Paris. Depois de certa hesitação em aceitar a encomenda, Poussin realiza o magnífico Le Ravissement de saint Paul, recebido desde logo como uma obra-prima. Em êxtase, São Paulo é carregado aos céus pelos anjos. O quadro permite uma “estranha associação” com Scarron, sua condição física e os “romances cômicos”, ligeiros e mundanos, que escreveu. Há outras hipóteses a respeito do episódio da remessa da tela.

Nicolas Poussin, “O arrebatamento de São Paulo”, encomenda de Paul Scarron
Imagem divulgação / domínio comum [Museu do Louvre]

Como não conheço nenhuma versão em português, procurei traduzir o soneto de Scarron sobre Paris no século 17, buscando não os efeitos literários, mas apenas o sentido básico e fundamental da peça entendida como documento histórico. E ficou assim:

Sobre Paris

Amontoado confuso de casas,
Lodo por todas as entradas,
Pontes, igrejas, prisões, palácios,
Vendas bem ou mal servidas,

Cabelos negros, brancos, ruivos, cinzas,
Mulheres puras e perdidas,
Muitos homicídios e muitas traições,
De quem, escrevendo, ganha a vida.

Muita gente fina sem nenhum tostão,
Muito pretensioso que se crê soldado,
Muito fanfarrão que se treme todo,

Pajens, lacaios, ladrões noturnos,
Carros, cavalos e grande alarido:
Isto é Paris, não te parece exato?

Para comparação, o original é este:

Sur Paris

Un amas confus de maisons,
Des crottes dans toutes les rues,
Ponts, Églises, Palais, Prisons,
Boutiques bien ou mal pourvues,

Forces gens noirs, blancs, roux, grisons,
Des prudes, des filles perdues,
Des meurtres et des trahisons,
Des gens de plume aux mains crochues,

Maint poudré qui n'a pas d'argent,
Maint homme qui craint le Sergent,
Maint Fanfaron qui toujours tremble,

Pages, Laquais, Voleurs de nuit,
Carrosses, chevaux et grand bruit:
C'est là Paris; que vous en semble?

Gostaria de fazer algumas observações rápidas sobre o texto de Scarron. Tem a forma do soneto que, de poesia de amor galante, é usado aqui para a crítica social, tal como fará, aliás, o nosso Gregório de Matos. A desordem da cidade de Paris é mostrada em três sentidos que se complementam: urbanístico, sonoro e moral.

Em primeiro lugar, veja-se que os elementos urbanos listados são, por vezes, contraditórios: palácios e prisões, mulheres virgens (“des prudes”, ou seja, com pó na face ou na peruca, portanto de alto estrato social) e perdidas – e ainda, para efeito cômico, mulheres com cabelos de muitas cores –, pajens e ladrões, etc. De outro lado, o “amontoado confuso de casas” do primeiro verso deve estar ligado à permanência, anacrônica na época, das muralhas que circundavam a cidade, causando não só uma confusão mas, além disso, um “amontoado confuso”, o que reforça a ideia inicial. Datado de 1615, no “plan de Mérain” aparecem bem tanto as muralhas – com as várias portas da cidade como S. Denis –, quanto os “faubourgs” (subúrbios), que se ampliavam em face do crescimento populacional e da falta de espaço interno.

Paris em 1615, Plan de Mérain
Imagem divulgação / domínio comum [Matheus Merian Basiliensis fecit]

Em segundo lugar, o quarto verso do segundo quarteto mostra que o conhecimento intelectual era raro e caro: quem sabia escrever cobrava caro por isso. Tal é o sentido do verso que critica a “gens de plume” com a mão torta. E não só a mão, como se imagina, mas também o caráter.

Em terceiro lugar, a cidade é mostrada como suja e desordenada, com a paisagem social composta por ladrões, fanfarrões, impostores etc. Ou seja, é uma visão ex parte populi da cidade, no apogeu do classicismo (de que o soneto é expressão), pouco antes do grande século das luzes, do século de Voltaire e Rousseau, o século 18. Em outras palavras, o soneto não fala de reis, da nobreza e seus cortejos luxuosos, mas da rua, de barulho, da sujeira – e do povo que habita a cidade. Da cidade de pedra e cal em que o povo pobre vivia e que, quase sempre, não aparece em obras artísticas do mesmo período.

A Paris de Scarron está bem longe de ser “un monde florissant”, tal como aparece inscrito no referido mapa de Matheus Mérian com “peuples et en biens puissants, qui de toutes choses abonde”. A quadra que aparece no canto inferior esquerdo do mapa (na verdade, um “plan vu d'oiseau”) diz isto:

Esta cidade é outro mundo
Lá existe um mundo maravilhoso
De pessoas e bens valiosos
Em que todas as coisas abundam

No aspecto formal, o soneto é igualmente notável pela simplicidade: uma série de frases curtas – quase sem verbos –, todas terminadas com vírgulas, menos a penúltima que termina com dois pontos para encerrar com a interpelação final, numa chave de ouro curiosa e original – a pergunta: “não lhe parece?” Ou então “que tal?” Essa pergunta final feita ao leitor terá um sentido cômico se o autor estiver imaginando que o leitor é um moralista que ele, rindo, queria desafiar por meio de sua poesia. Porém, mesmo não sendo assim, o suposto diálogo reforça o sentido concreto da peça toda, que aponta para a realidade das coisas urbanas do século 17, tão perto e tão longe de nós.

nota

ECO, Umberto; CARRIÈRE, Jean-Claude. Não contem com o fim do livro. Rio de Janeiro, Record, 2010, p. 31.

sobre o autor

José Roberto Fernandes Castilho é professor de direito urbanístico e de direito da arquitetura na FCT/Unesp.

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